Voz, três solos: re-fluxo

Nora Turato: fala automática

Imaginem que tentamos recordar um nome esquecido. O estado da nossa consciência é peculiar. Há ali uma lacuna; mas não uma mera lacuna. Trata-se de uma lacuna extremamente ativa. (JAMES, [1842], 542)

Imaginem agora um maremoto de ideias, citações, comentários, elocuções, boatos, interjeições, lamentos, conjeturas, preconceitos…, um chorrilho de informação que parece tudo menos lacunar. O auto-atropelamento do discurso advém de um jogo insaciável de memória e mastigação, de tal forma intensa e verborrágica que a sensação auditiva é, pelo contrário, a de uma transparência, a de uma “branca” ou esquecimento.
Lacuna e preenchimento tendem a confundir-se, como se depreende da citação de William James (1842-1910, EUA), , em cujos Princípios Psicológicos (1892) surge a noção de stream of consciousness, que alimenta e encontra na performance de Nora Turato a sua vocalização. 
O quase oxímoro enunciado por James – “lacuna ativa” – ganha presença em “I’m happy to own my implicit biases [Feliz com os meus preconceitos tácitos], performance de Nora Turato inserida na programação de O museu como performance do Museu de Serralves, no Porto, a 8 e 9 de Setembro de 2018.

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Voz, três solos: gorjeio

Ute Wassermann: chilrear humano

Bird talking sintetiza em si a esfera de influência sonora que presidiu ao concerto de Ute Wasserman — “fala de pássaro” no Vale do Ave:

Ute Wassermann, 11 de setembro de 2018: “Canções estranhas & assobios de pássaro”. Concerto no MIEC, em Santo Tirso.

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Tosse

Alkantara Festival 2018

A tosse de uma senhora palestiniana

Na sala grande do S. Luiz , preenchendo todo o volume do palco, desce do topo o desenho em perspetiva de três naves (uma central e duas laterais, mais estreitas) definidas por colunas rendilhadas de nervuras cinzentas arabescamente alçadas em ogiva, numa encenação tridimensional de um esboço arquitectónico, à imagem dos desenhos de Giovanni Carlo Galli-Bibiena (1717-1760, IT).  Continue reading

Overtones

Na véspera da lua vermelha, quatro enviados da República Federal Russa de Tuva apresentaram-se no Castelo de Sines . Toda a formalidade foi cumprida, desde a saudação respeitosa à cuidadosa afinação antes de cada música, sem esquecer a devida contextualização do local de cada prece: montanha, rio, cavalo, guerreiro… “Devem viver num sítio muito bonito”, dizia alguém no público. Com lua cheia em fundo, em arrebol escurecente, quando as quatro vozes arrancaram no subgrave, nós vibrámos também:

Huun Huur Tu – Ancestors (2010)

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Alvin Lucier: os Casulos do Tempo

Ponto de Escuta

 

Jaap Blonk. 1993. “Flux-De-Bouche”. Fundação Eugénio de Almeida, Évora: Viso-Vox.

O primeiro Ponto de Escuta deu-se a ouvir no dia 25 de Julho de 2018 na Fundação Eugénio de Almeida em Évora, com as vozes de Nuno Miguel Neves e Tiago Schwäbl, no âmbito da exposição VisoVox.

Na primeira parte, Nuno Miguel Neves traçou o esqueleto histórico e concetual da poesia sonora numa vibrante série de RRRRR…
Na segunda — meio ponto de escuta —, construiu-se a ponte a partir de dois autores representados na exposição: Alvin Lucier e Charles Dodge.

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Yapp Yapp!!

Jaap Blonk (born 1953 in Woerden, Holland) is well-known in the rich niche of strange voices. 
Ursonate (1986) and Flux De Bouche ‎(1993) launched him in the international world of vocal experimentation. The turn of the century heard him turning-tables and mixing electronics…

Despite all the commitment, sound poetry is still a strange place:

Vox Media  through HIPOGLOTE — had the chance to hear Blonk’s testimony and the privilege of some live-improvised pieces.
Let’s hear him:

Voz ao Canto

Afinal, por que é a voz extraordinária?

…a voz — tal como na fábula de Esopo —subjetiva aquele que a emite, mesmo que seja um animal. A voz pertence aos vivos; ela comunica a presença de um ser em carne e osso; assinala uma garganta, um corpo em particular.
Adriana Cavarero (2005: 177) [trad.TS]

É de facto admirável que um instrumento com características em geral semelhantes — pulmões, traqueia, laringe, boca…— possa ser representado por tantas faces e tomar simultaneamente um lugar tão específico na nossa perceção. A sua presença ou emissão adquire tal amplitude que se torna necessário atribuir um enquadramento. Quão amplas são as facetas do esgar vocal? Quantos ouvidos tange à sua passagem? Quais os limites de um órgão tão velho quanto a existência humana? 

O lugar da voz emana diferentes paisagens; no sentido “azguimiano”, a voz extraordinária resulta de um desafio lançado a compositores e intérpretes, ao rolar da ‘música erudita contemporânea’, das obras que colocam o elemento extraordinário (piano, percussão, voz… consoante a temporada) em destaque ou em cheque. O seu lado oculto é (com)posto a nu pela mão do programador da temporada, Miguel Azguime.

São quatro as vozes extraordinárias, 4 recitais integrados nas Festas de Lisboa 2018 durante o mês de Junho, nos dias 22, 23, 29 e 30 às 21h30 no O’culto da Ajuda, protagonizados por Katia Guedes, Marina Pacheco, o Duo Savina Yannatou e a pianista Joana Sá, e o Duo Tágide com Inês Simões e o pianista Daniel Godinho.
No O’culto da Ajuda, Travessa das Zebras, 25.

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(a-)sincronias ao despique

Flora Détraz: Muyte Maker 

Quatro raparigas sentadas a quatro mesas, tampos no escuro, pernas reluzindo oito meias brancas em V. Ajeita-se o público, inverte-se a iluminação e o ângulo, agora circunflexo, dos braços às palmas das mãos nas bochechas. Na cabeça, ‘chapéus’ de fruta prolongando-se na trança de cabelo puxada por uma corrente ao alto das barras da iluminação, pendendo mais atrás em contrapesos sui generis: um martelo, um cutelo, uma foice e um saca-rolhas gigante.

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No dia 9 de Maio de 2018 a britânica Hannah Silva  lançou no café Oto em Londres o seu álbum de estreia com o título Talk in a bit.

Contribuíram ainda Julian Sartorius na percussão, Luca “Xelius” Martegani nos sintetizadores e Zeno Gabaglio no violoncelo de cinco cordas.

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O Som e o Corpo: Duas Partituras Paralelas

FLORA DÉTRAZ ou A Bailarina Com Voz

Luz encadeando o público, fundo preto raiado a entreluz que uma silhueta faz oscilar e entrechocar ao entrar, procuramos no escuro, emerge sentada uma figura de amarelo que nos fixa. Um contínuo som [canto multifónico] grave e a sua repartição em harmónicos situa-se/-nos — quase coincide — algures na rapariga sentada, mas ela permanece imóvel. Subitamente inclina o corpo e vira a face, como se ela própria escutasse, procurasse a fonte sonora; a garganta revela o ataque à nota fundamental, mas todo o rosto queda impassível. Esta cena é lenta, protocolar, como o exige a ritualidade musical. A nota acelera, a língua interfere em jogo oclusivo e alveolar,  e do corpo inclinado para a frente pinga um fio de saliva, a exteriorização líquida e aprumada do caos interior.

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