EchoManAfonso

Cada geração tem o seu filme de domingo à tarde e respetiva febre de sequelas avidamente comentadas e reproduzidas nos recreios da escola mais próxima. A Academia de Polícia é um daqueles filmes sem explicação, de repercussão retardada (um sleeper hit), sem realizador que se lembre (Hugh Wilson), com uma paleta de heróis desengonçados (no Brasil chamou-se a Loucademia de Polícia) que não obstante deixaram a sua marca — hoje basta uma busca rápida para identificar o cadete gigante Moses Hightower (Bubba Smith), o cadete tarado pelas armas Eugene Tackleberry (David Graf), o frustrado Tenente Thaddeus Harris (G.W. Bailey), o senil Comandante Eric Lassard (George Gaynes), a esganiçada Cadete Laverne Hooks (Marion Ramsey), o vilão de voz brutalmente irregular Zed (“Bobcat” Goldthwait) e, claro, o delírio dos putos, o Cadete Larvelle Jones (Michael Winslow):

Poucos miúdos daquela geração não devem ter imitado o alarme daquele aspirante a polícia que baralhava todos os sistemas. O Afonso foi um deles.

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Doda Lingua en Limalandia

Como se o verbo obrigasse, rever a faixa áudio fez disparar inadvertidamente uma sequência de imagens: literalmente, Irse de lengua a partir de Doda Lingua.

grafismo por Héctor Delgado

Ao escutar de novo a recolha de Poesía sonora peruana por Luis Alvarado, esse duplo gesto de afastamento e chegada da língua à (ponta da trampolínea) língua — irse de lengua — destapou outro disco da Buh Records: Doda Lingua.

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Podcast Vox Lit – Episódio 3

Vox Lit – um podcast que põe a literatura a falar

Vox Lit é o podcast que dá a ouvir a voz das materialidades da literatura. Um desafio entre exploração e divulgação da nossa constelação matliteana.

Vox Lit é uma iniciativa Vox Media com participação ativa de outros estudantes e doutorados do Programa Doutoral FCT em Materialidades da Literatura.

Episódio 3:
carta falada (Elizama Almeida)
Técnica e Utopia (Ana Marques)
Hipoglote (Tiago Schwäbl)
Comprimido de Leitura (Mafalda Lalanda e Elena Soressi)
Vozes de Gil Vicente (Nuno Meireles)

A voz na escrita ou “um belo ritmo alfa” – Os ‘casos’ de Herberto Helder e Gonçalo M. Tavares, por Raquel Gonçalves (ensaio convidado)

A voz na escrita ou “um belo ritmo alfa1” por Raquel Gonçalves

(Texto elaborado a partir da investigação em curso na minha tese de doutoramento em Materialidades da Literatura sobre as máquinas literárias de Herberto Helder e Gonçalo M. Tavares)

Cada boca pousada sobra a terra

pousaria

sobre a voz universal de outra boca

Herberto Helder

As obras de Gonçalo M. Tavares e de Herberto Helder são fortemente marcadas pelo corpo. Não há apenas uma mão que escreve, mas todo um corpo que se envolve num mecanismo onde a inscrição na página é o último movimento a ser concretizado. Neste sentido, a voz, enquanto manifestação desse corpo e enquanto produtora de linguagem, assume também um lugar cimeiro.

São múltiplas as formulações e realizações da voz nas obras de Helder e Tavares. Não se trata aqui de evocar as vezes em que os dois autores deram voz aos seus textos, lendo-os. Gonçalo M. Tavares fê-lo recentemente na performance Os Animais e o Dinheiro, numa curiosa encenação da oficina literária: o escritor sentado a ‘produzir’ texto, não escrevendo mas de viva voz, à medida que uma série de folhas de papel vão sendo descartadas ao seu lado.

Os Animais e o Dinheiro – Gonçalo M. Tavares e os Espacialistas

Herberto Helder também emprestou a voz aos seus poemas por três vezes, mesmo sendo um autor que reduziu ao mínimo a sua presença em prol de uma espécie de existência textual. A primeira foi em 1968 quando editou um single em vinil, no qual lê alguns dos seus poemas, entre os quais “Havia um homem que corria”. Mais tarde, editou um outro intitulado Poemas de Herberto Helder, hoje acessível através do YouTube.

Recentemente voltámos a ouvir a sua voz num CD que acompanhou a edição de um dos seus últimos livros, A morte sem mestre (2014).

Apesar da relevância que estas manifestações possam ter, dado que a leitura pelo próprio autor, acompanhada ou não de uma encenação da oficina literária, revela o que se poderia designar como o verdadeiro e pessoalíssimo ritmo dos textos, o que aqui pretendo ensaiar é uma tentativa de ir mais a fundo no papel que a voz desempenha no mecanismo da escrita, na definição dos seus ritmos, ou, como veremos, até na definição de um estilo, como é reclamado por Herberto Helder.

Tomo de empréstimo a noção de “um belo ritmo alfa” de Helder para ensaiar a possibilidade de a voz ser esse ritmo primeiro da produção literária, a primeira experiência da linguagem na sua vertente mais humana e ainda intocada pelas convenções.

Lembro, por me parecer relevante, que os três livros em prosa de Helder, apresentados como uma espécie de exegese da obra, ensaios poéticos sobre poesia, ou percurso de um poeta a caminho daquele que será o profundo sentido da sua escrita, são titulados com referências ao corpo e à voz: Apresentação do Rosto, Photomaton&Vox, Os Passos em Volta.

Se a escrita envolve um rosto e um movimento em volta de algo, envolve também uma voz que, em Herberto Helder, parece ocupar esse lugar cimeiro do caminho a percorrer em direção à poesia. Leio o primeiro texto de Os Passos em Volta, intitulado Estilo:

Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já nada significa. (HELDER, 2014:9)

Curiosa a circunstância de o estilo decorrer mais de um exercício da voz, ainda que em tom baixo, do que de um exercício de escrita. A voz como possibilidade de esgotar palavras, não talvez no sentido literal, mas naquela possibilidade de através da inconstância da voz se atingir uma espécie de esgotamento no qual as palavras não se fixam num único nível de entendimento ou significação, mas adquirem uma plasticidade mais conforme a uma poesia onde o encontro sempre novo entre palavras é a marca mais visível.

Herberto Helder continua o texto, desvendando a “artimanha” (palavra usada pelo poeta) através de um poema seu: “As crianças enlouquecem em coisas de poesia. (…) – E nada mais somos do que o poema onde as crianças se distanciam loucamente.” (HELDER, 2014:9)

Crianças a enlouquecer “em coisas de poesia” e alguém de fora a reclamar ser o poema onde “as crianças se distanciam loucamente”. O encontro raro entre palavras talvez decorrente desse exercício da voz, desse esvaziamento das palavras que depois permite o inusitado encontro entre elas. Helder clarifica: “Vê-se bem que não estou louco. Eu, não. As crianças é que enlouquecem e isso porque lhes falta um estilo.” (HELDER:2014:10). Esse estilo que falta às crianças, é aquele que se ganha à noite, a repetir palavras fundamentais em tom baixo, é também essa capacidade que nasce primeiro na voz, no humano que é falar para o escuro, que permite que o estilo seja “um modo subtil de transferir a violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. (…) não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam.” (HELDER, 2014: 7).

Dizer palavras como transferência de uma violência para um plano mental, aquele que justamente permite o esvaziamento. Depois é fazer com que essas mesmas palavras, que, à força de serem repetidas pela voz, já nada significam, atinjam uma outra unidade de significação, que permite não a própria loucura, mas a loucura das crianças ou o poema onde estas se distanciam loucamente. Aceito, então, que esta unidade de significação em Herberto Helder seja múltipla e plástica. Cito Roberto Juarroz: “A poesia não é mais do que a luta pela expressão, levada ao seu extremo: extremo do homem, da linguagem, da realidade. A luta pela expressão, adquirindo para a palavra, a liberdade da palavra.” (JUARROZ, 2020:7). Uma escrita que começa pela voz, pela criação de um estilo através da voz, reclama essa liberdade da palavra ou a liberdade para as palavras. Não fixá-las logo, dizê-las, deixar que oscilem na voz, que se modifiquem pela voz. Volto a Juarroz:

O mundo da poesia é o mundo da pura heterodoxia. Ou melhor: da pura heresia. Todo o verdadeiro poeta é um herético. E o herético é aquele que adere o “proceitos” e não a preceitos, a resultados e não a premissas, a criações, a poemas e não a decretos. (JUARROZ, 2020:10)

Que a poesia, ou o estilo em poesia comece com a voz ou com algo que se torna audível, com algo que se repete é uma heterodoxia, à qual Herberto Helder dá continuidade ao estabelecer um paralelo entre este movimento de criação de um estilo pela voz, com um outro movimento que é o de ouvir música e estudar matemática:

João Sebastião Bach. Conhece o Concerto Brandeburguês nº5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações a três incógnitas. Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o à noite. (HELDER, 2014: 9)

A harmonia, o primário, o rudimentar, o ouvir música e resolver equações, é isto que leva ao estilo que depois se exercita na simples repetição de palavas à noite até perderem o significado para poderem ganhar um outro, ou outras possibilidades. Porque, afinal, e cito Helder, os tópicos comuns do Amor ou da Morte são “uma dessas abstrações que servem para tudo” (HELDER, 2014:8). A não ser, é claro, que se exercite o estilo, ou a liberdade de Juarroz, que se use a voz nesse mecanismo de fazer ascender as palavras “como se a tua frase fosse um buraco brilhando até os pulmões, com o sangue e a língua na minha garganta”. (HELDER, 2015:9). Intuo, por fim, que só a frase que toca pulmões, garganta, língua e sangue – a voz na sua mais ampla capacidade – pode criar uma poesia que evite a abstração que serve para tudo. E, neste exercício, teríamos então a poesia de Helder como plena concretização dessa “escrita exercida como caligrafia extrema do mundo, um texto apocalipticamente corporal” (HELDER, 2015:10) e um texto que nasce da voz enquanto manifestação audível desse corpo.

É, em suma, uma poesia que rejeita o facilitismo milagreiro. Até porque, “é sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente”. (HELDER, 2015:11). A Herberto Helder não interessa apresentar-se, mesmo podendo fazê-lo, “como uma vítima da escrita, da inocência, da neurose e suas instâncias psiquiátricas e psicanalíticas”. (HELDER, 2015: 11). O seu trabalho é outro, um trabalho físico, uma utilização da voz, e, através dela, da plasticidade das palavras. “Escrever é literalmente um jogo de espelhos, e no meio desse jogo representa-se a cena multiplicada de uma carnificina metafisicamente irrisória.” (HELDER, 2015:12). Sublinhe-se o metafisicamente irrisório para destacar o trabalho físico e pessoal da escrita, o trabalho que envolve pulmões, garganta, língua e sangue e que participa da criação de um estilo. Reafirme-se novamente a voz como o “belo ritmo alfa” da poesia. Não se trata de admitir que “qualquer poeta que tenha atravessado os túneis pode assinar a palavra “merda”” (HELDER, 2015: 12). Trata-se, antes, de construir esses próprios túneis por onde se vai passar, e as regras para os atravessar.

A primazia da voz sobre a escrita, ou a voz como garante de uma escrita que evita a abstração de tudo, que cria o esvaziamento das palavras e a sua unidade múltipla, que sustenta um estilo, é também defendida por Gonçalo M. Tavares ao fazer a distinção entre linguagem escrita e linguagem verbal, na máxima de que a voz ainda é corpo.

A voz ainda é corpo, apesar de fazer linguagem; a voz ainda é, pois, algo que não se domina por completo: não se domina a voz como se domina o sujeito, o predicado e o complemento directo. (…) A voz é um significado que treme ou, pelo menos, tem essa possibilidade; a voz pode tremer, elevar-se, baixar de tom, hesitar, ser sólida ou não (…), A linguagem, quando dentro da voz, torna-se orgânica: com variações próprias de um organismo, com a sua debilidade e a sua força, com a sua expressão”. (TAVARES, 2013:150,151)

Impossível não ler aqui a utilização da voz como uma garantia para evitar as abstrações que servem para tudo. Ao ser organismo, a voz impede aquilo que se pode perder quando se escreve: “Escrever, pelo contrário, é roubar organismo à linguagem, é desumaniza-la, é, de facto, retirar individualidade” (TAVARES, 2013: 151).

Então, que se pode fazer para não desumanizar a escrita? Tavares não deixa de responder a estas questões ao defender uma escrita que envolva o corpo, um exercício de corpo inteiro, um posicionamento desconfortável face às palavras e à linguagem.

“Uma águia é feita da mesma matéria que o verso. Para os observar (à águia e ao verso) o homem terá de levantar a cabeça até que o pescoço lhe doa; e para os respeitar terá de curvar a cabeça, até que, de novo, o pescoço lhe doa” (TAVARES; 2008: 52).

O texto tem de obrigar a que o corpo não se posicione de forma confortável. Há que “levantar a cabeça até que o pescoço doa” e esta não é uma posição de quem está a olhar para algo comum, ou para uma generalidade que serve para tudo, como diria Helder. O texto, poesia ou prosa, tem de valer o esforço, tem de ser esse voo de águia pelo qual vale a pena levantar a cabeça e aguentar a dor. Se assim não for, o texto é território já percorrido, percurso que não vale nem o desconforto, nem o espanto.

Gonçalo M. Tavares declara mesmo que a linguagem é um objeto que deve ser olhado por todos os lados:

Devemos olhar para a linguagem como se olha para um objecto – para uma mesa, por exemplo, e ver, por vezes, a linguagem de baixo para cima, de modo respeitoso, de cima para baixo, de modo altivo, observar depois um dos perfis da palavra, depois o outro; ver. os sapatos da palavra e o seu chapéu; a sua nuca e o seu rosto. Porque pensar também é mudar de posição relativamente à própria linguagem. Não olhar sempre da mesma maneira para as palavras. (TAVARES, 2013: 46).

Este exercício de Tavares é correlato ao exercício da criação de estilo de Herberto Helder. Às palavras ditas em tom baixo no escuro até que percam o seu significado para ganhar um outro que vá além das generalidades, Tavares contrapõe o posicionamento desconfortável do corpo face à linguagem e às palavras para que aquilo que a palavra ganha na voz, quando a palavra ainda é corpo, possa permanecer no texto, essa capacidade de tremer, baixar, ser sólida ou não, elevar-se, tornar-se orgânica com a sua debilidade e a sua força.

Por caminhos diversos, a criação do estilo numa escrita não convencional é, nos dois autores, a manutenção da humanidade de um corpo e de uma voz. A escrita como a concretização desse “belo ritmo alfa” que inicia o movimento de escrever e o estilo. Como postula Tavares: “estamos portanto no reino da mistura entre linguagem e corpo; fisiologia como base da linguagem e linguagem como meio de interferir na fisiologia”. (TAVARES, 2013: 455). Afinal, esta afirmação é análoga a essa “mão experimental (…) ao serviço escrito das vozes” (HELDER, 2015a: 438), ou à premissa de que “todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão da voz.” (HELDER, 2015a: 273).

BIBLIOGRAFIA

HELDER, Herberto (2014) Os Passos em Volta, Porto Editora

HELDER, Herberto (2015) Photomaton&Vox, Porto Editora

HELDER, Herberto (2015ª) Poemas Completos, Porto Editora

JUARROZ, Roberto (2020) Poesia e Criação, Edições Sr. Teste

TAVARES, Gonçalo M. (2008). O Senhor Breton, Lisboa, Caminho.

TAVARES, Gonçalo M. (2013) Atlas do Corpo e da Imaginação, Lisboa, Caminho

1 Citação de Photomaton&Vox (HELDER, 2015: 30)

Outros investigadores: Raquel Gonçalves

Raquel Gonçalves é licenciada em Ciências da Cultura, tem um mestrado em Estudos Linguísticos e Culturais, com a dissertação Desenhar Palavras e Escrever Imagens – Uma Cartografia da Linguagem – Estudo Sobre Gonçalo M. Tavares. Neste momento é doutoranda no Programa Doutoral em Materialidades da Literatura, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com o projeto de tese, já aprovado, Possibilidades de Infinito – As Máquinas Literárias de Herberto Helder e Gonçalo M. Tavares.

Editou, em 2018, com Daniel Oliveira e Diana Pimental, o livro Em Minúsculas, com crónicas jornalísticas de Herberto Helder.

Introdução a Global Shakespeares: “António e Cleópatra” e um confronto com a própria memória

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Vi o espectáculo António e Cleópatra há perto de três anos (2017), no Teatro Municipal do Campo Alegre, no Porto. Estava uma tarde de sol em que me demorei depois: não deixava de pensar naqueles dois intérpretes que no palco grande tinham trocado de papeis, tinham conversado e narrado a relação entre António e Cleópatra, numa pessoal reescrita da peça de Shakesperare por parte do encenador/dramaturgista Tiago Rodrigues. Recordo o sol, as imediações do teatro, a sala cheia, o meu espanto.

Estas recordações, inextrincavelmente pessoais de um espectador, num dia, numa cidade e num momento de vida, são pertinentes por serem precisamente o que não está no registo da máquina de filmar. Entendamo-nos, refiro-me à máquina que grava o espetáculo, também ela espectadora e (re)produtora de memória. Porque o que se regista é sobretudo o objeto performativo a que assistiram inúmeras sensibilidades, com incontroláveis reconstruções posteriores.

Encontro esse espectáculo em registo videográfico, em linha, no arquivo digital “Global Shakespeares”. Enquadrado pelo arco do proscénio do (meu) computador e já não do teatro material em que o vi pela primeira vez, dou-me conta, pelo contraste, do que está e não está ali.

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi. A memória sossega-se somente ao encerrar a imagem. O que não está lá e fez parte da escrita (inscrição?) desse momento em mim: as recordações do dia em que assiti. E do ponto de vista do espetáculo, o que eu não tinha visto (nem poderia ver, pois é essencialmente capacidade técnica do medium fílmico): os planos, os cortes, o pormenor, por oposição à minha abrangente visão de tudo.

As palavras que volto a ouvir estão também legendadas, em inglês. O vídeo (sabemo-lo) não é o espectáculo, mas as vozes são as mesmas. Esta encenação, assim registada, opera uma rasura e ao mesmo tempo evidencia o que não está lá e pertence à experiência subjetiva do espectador, esse outro polo do teatro, recetor daquelas palavras e gestos. António e Cleópatra está agora resignificado entre centenas de outros (vídeos de) espectáculos, num arquivo mundial de algo que já passou, que podemos ver ou rever, incontornavelmente de modo diferente. Ou, devo antes dizer, tecnicamente de modo diferente?

Global Shakespeares – Video and performance archive, projeto do MIT, parte de algumas premissas que me parecem ser riquissimas: a combinação de investigação e registo de criações, o caráter colaborativo de um projeto de Humanidades Digitais e o alcance (redundantemente o digo) global a nível temático e material. Afirma-se uma universalidade do Bardo inglês, mas também do livre acesso e da pluralidade de contribuições, tudo em meio digital e desenvolvido (sublinho) num instituto que é referência mundial na investigação tecnológica e sua relação com as humanidades. Agora, António e Cleópatra tornou-se parte de um Shakespeare Global, passando a ser Antony and Cleopatra, falado em português, legendado em inglês, entre muitas outras produções. Deste caso destaco uma vez mais a voz, e repito a primeira sensação: era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Não se passará o mesmo com o texto vicentino e os vídeos que fixam as suas encenações (assunto da minha predileção), registando a mensagem mas não o seu meio? Voltarei necessariamente a esta questão.

A voz dos poetas: Pascoaes por Alexandre O´Neill

A voz dos poetas é designação algo habitual para poesia dita por eles-mesmos, ou eventualmente por outros que lhes dão voz.

Recentemente, a Imprensa Nacional em parceira com os Artistas Unidos, inaugurou em linha um programa assim (a examinar noutra ocasião).

No domínio da imaginação literária, ou daquilo que poderíamos chamar uma descrição da “voz na literatura”, lemos casos, trechos, passagens em que autores se referem às vozes destes ou daqueles poetas. A ritmos, conversas, ligações, timbres, escutas.

Numa recolha de textos dispersos de Alexandre O´Neill – publicados originariamente em jornais e revistas – encontramos uma invocação do poeta Teixeira de Pascoaes e da sua voz.

Refiro-me ao texto “Recordação precipitada de Teixeira de Pascoaes”, publicado inicialmente na revista Vértice, de Março de 1953 (pp.162-165), que agora leio entre as páginas 23-26 de “Coração Acordeão”, edição O Independente (2004). Recolha da responsabilidade de Vasco Rosa.

Alexandre O´Neill descreve como encontrava (e ia ao encontro de) Teixeira de Pascoaes em Amarante: “A um Café à parte, a um Café à roda de Teixeira de Pascoaes. E à sua volta nos dispúnhamos, com o gozo antecipado de quem vai aproveitar um bom fogo crepitante ou a sombra generosa duma árvore” (p.25).

E aqui sobressai a parte sonora, da voz, que nos interessa (ainda na página 25):

“Mas ouvir Pascoaes, falar com ele, ajudá-lo a encontrar o rimo inspirado da conversa, era uma tarde no Marão, era ver nascer «em rumor e cor um pinheiral» era subir até onde «as árvores se transformam em penedos»!”

Um poeta dará testemunho de outro, com reverência e uma proximidade que não se confunde com intimidade, é certo. Dá também uma alusão à sua convivência com todos através da conversa que, sabemos pela “recordação”, seria abrangente, curiosa, humana. Ficaríamos assim, a acreditar no texto, com uma ideia satisfatória da voz deste poeta. Não da voz que diz os seus poemas, mas da que fala com todos, que reflete o (seu) Marão em diálogo.

No entanto, o livro e demais textos de O´Neill acautelam esta leitura à letra do que escreve Alexandre O´Neill: capaz de uma ironia soberba, de uma brincadeira com a realidade e com as palavras que nos arranca sorrisos de cumplicidade. A sua ficcionalização é constante e deliciosa.Este autor leva-nos a desconfiar até de si mesmo, na sua ironia. O que nos leva a desconfiar se a voz e o contexto em que descreve Teixeira de Pascoaes seria facto documental e verídico, quase arquivístico.

Seria uma ficção, um discorrer imaginário inventando o convívio com o poeta? E com a sua voz, também?

Perguntando de outro modo: através desta descrição circunstancial podemos imaginar a voz de Pascoaes, mas temos a certeza de que a não imaginou O´Neill?

Uma voz, várias vozes ou “O Essencial sobre Alberto Caeiro”

  1. Remediação/condensação

A série de podcasts “O Essencial Sobre…” parte da coleção homónima da editora Imprensa Nacional. Em pouco tempo (entre 10 e 20 min. em média) é-nos lida a descrição da vida e obra de determinado autor, que pode ser Miguel Torga, José Régio, Irene Lisboa, André Falcão de Resende ou Fernando Pessoa, entre outros.

É uma óbvia condensação do texto publicado, tanto na sua extensão como nos dados que são divulgados. Procura-se um certo biografismo, abdicando de linhas interpretativas ou críticas, que caracterizam (e bem) o projeto do livro, muitas vezes escrito por especialistas como no caso de Maria José de Lancastre acerca de Pessoa, no podcast em causa.

Não sabemos quem faz a condensação ou adaptação do livro para os sucessivos podcasts, ou seja, ignoramos quem selecionará o texto a ser dito (ou lido) daquele outro texto publicado antes em página impressa.

Das duas séries de programas, primeiro em difusão pela RTP/Antena 2  e, a seguir, somente no sítio da Imprensa Nacional (e por vezes no vimeo), noto que a substância será diferente, assim como a sua mediação. Na segunda série parece ser mais valorizado o teor ensaísta dos livros de base. Por outras palavras, não se assenta unicamente na descrição do percurso de vida como se ouvia nos programas anteriores. Sem cotejar os livros com os podcasts, permaneço incerto acerca desta intuição ainda que soem diferentes as duas séries, em substância textual e vocal. Proponho que vejamos um caso em que essa diferença e mediação nos evidencia algo de relevante.

2. “O Essencial Sobre Alberto Caeiro”

Alberto Caeiro é o tema do mais recente podcast, de 3 de Novembro de 2020.

A voz da nova série pertence a Tânia Pinto Ribeiro e informa – quase no fim dos 12 minutos e 30 segundos do podcast – que o programa “teve por base” o livro de Maria José de Lancastre, acerca de Fernando Pessoa. “Teve por base” é ainda a fórmula com que terminam estas sínteses radiofónicas dos vários títulos e nada distinguirá nesse guião este programa dos anteriores. No entanto, trata-se de um biografado inexistente, pois Alberto Caeiro, como sabemos, nunca existiu. Assim como nunca existiu “O Essencial Sobre Alberto Caeiro”, senão por via deste podcast.

Esta emissão parte de “O Essencial Sobre Fernando Pessoa”, daí particularizando Alberto Caeiro: o heterónimo terá sempre que ser visto em relação com Pessoa. O podcast extrai deste modo um autor de outro autor, um “Essencial” de outro “Essencial”. Falando de Fernando Pessoa dá voz a Caeiro.

Temos portanto uma mediação bem diferente. Pessoa já tivera direito a um programa anterior, com características (vocais e textuais) bastante diferentes, em género e multiplicação. A voz narradora era de João Almeida e a voz emprestada às citações foi de André Pinto (com realização da mesma Tânia Pinto Ribeiro).

Como falar de um autor que não existe? Como dar voz à biografia de uma personagem de ficção? Temos a descrição que faz dele a autora do livro (Maria José de Lancastre) com quem se confundirá a voz de Tânia Pinto Ribeiro. Poderíamos pensar que é a mesma pessoa, ao escutarmos. O tom é informativo, declarativo, a voz é clara no seu som e passiva no seu discurso. Todavia, altera-se em partes específicas, no que será uma citação, quando um eu está presente, implicado: o enunciado por Pessoa e por Caeiro. E como será vocalmente a citação acerca de Caeiro? Ouvimos a mesma voz, mas mais próxima, numa qualidade diferente de gravação, mais presente.

Não posso deixar de pensar que aqui convergem aspetos “essenciais” de Pessoa/Caeiro. É a mesma voz afinal, mas mais clara, próxima, presente. Num outro tempo de edição, registo, gravação. De algo que não existe, nem em livro inteiro, nem em biografia como a conhecemos, surge uma voz, mais perto de nós, mais clara.

Cita-se no programa a afirmação de Pessoa a Sá-Carneiro, de que teria aparecido diante de si o seu mestre ao escrever os primeiros poemas de Alberto Caeiro. Com a reserva que nos merece a auto-ficção das declarações de Pessoa, parece-me que este podcast revela e replica isso mesmo. Uma voz com outras vozes dentro, que “aparecem” ainda mais reais e próximas que a sua.

Não será precisamente isto o seu essencial?

Traições à letra, Bruno Ministro

Apagões escritos

Veio a lume , no carbon copy da internet, mais uma obra de Bruno Ministro , uma inscrição que, de tão reiterada e queimada nas impressoras deste mundo, passou à condição de símbolo, agora reobservado e desmontado pela habitual postura zarolha do Autor, olhando de viés discursos retilíneos e claros, asséticos (embora não a ponto de o branco se confundir com o vazio). Em inglês – e “na América” –, como manda a lei, This page intentionally left blank (MINISTRO 2018b) pode ser adquirido numa plataforma online.

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