Conferência de Pedro Serra sobre a voz de Paul Celan

Como aqui anunciámos, a segunda conferência do ciclo atual de conferências do VOX MEDIA deveria ter sido a de Pedro Serra, com o título “Arqueofonia Revisitada: o caso da voz de Paul Celan”. O ataque de que este site foi vítima inviabilizou, porém, a realização da conferência na data prevista, no mês de janeiro. Informamos, pois, que a conferência terá lugar no próximo dia 8 de fevereiro, pelas 17h, via Zoom.

Eis um resumo da conferência:

É intrépida e precisa a peça textual – «L’ayant écouter lire», congregando apenas trezentas e trinta e uma palavras – que o autor de L’encre de la mélancolie, Jean Starobinski, dedicou a Paul Celan. A começar pelo título da versão original da nótula, singular na sua composição e género, onde se esperariam as determinações discursivas da necrologia. Eis a singularidade de «L’ayant écouter lire»: é e não é um obituário. Uma mudança aproximativa e literal para a língua portuguesa do título poderia ser «Depois de escutá-lo ler» ou «Depois de o escutar ler». Contudo, não satisfaz plenamente por várias razões. A forma verbal «L’ayant», particípio presente do verbo avoirter ou haver –, não já na sua inscrição escrita, mas na sua dimensão sónica, atrai outros vocábulos e semas. É o caso de ‘léant’, que significa ‘apoiado’ ou ‘inclinado’. Ou, ainda, quer ‘liant’, com o sentido de ‘aglutinante’; quer ‘lient’, podendo ser traduzido por ‘união’ ou ‘enlace’, admitindo inclusive a declinação de número: ‘enlaces’, ‘uniões’. Escrita no intervalo do luto pelo poeta que se suicidou – amigo e também confidente de Starobinski, a que não foi alheia a sua condição de psiquiatra –, a pregnância diabólica do título que lhe foi concedida, como argumentarei, é tão-só uma amostra mínima das dificuldades e emperros das 331 palavras atraídas para o campo de forças relativamente autónomo do texto.

Pedro Serra (1969) é Professor Catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira na Universidade de Salamanca, onde é responsável da Área de Filologia Galega e Portuguesa, coordenador da Cátedra de Estudos Portugueses IC/USAL e da Cátedra de Estudos Galegos XUNTA/USAL. Investigador Principal do GIR em EstudosPortugueses e Brasileiros – que integra o Colaboratório Europeu de Estudos Brasileiros COLEEB –, é membro investigador do grupo HELICOM (Autónoma de Madrid), do CRIMIC (Sorbonne), do CLP (Coimbra) e do ILC (Porto). Dirige, no Departamento de Filologia Moderna, o mestrado em Estudos da Ásia Oriental MELYCA.

Recordamos ainda que as conferências do VOX MEDIA pressupõem inscrição prévia. Segue-se o formulário de inscrição na conferência.

O som da liberdade no drama shakespeariano

O som da liberdade no drama shakespeariano

A musicalidade de Shakespeare deve-se não somente ao inglês, com seus fonemas bastante melodizáveis, com palavras mais curtas e de caráter vocálico (embora mais consonantal do que o inglês americano), sendo um idioma muito propício  às combinações de altura, por exemplo. Mas, deve-se também à mistura que o poeta produziu entre os gêneros e os afetos por meio de seus registros formais ou lexicais.

A complexidade dos sentimentos que podemos simplesmente ouvir em Shakespeare, além de vir da própria língua, vem da riqueza de situações e de personagens construídas pela combinação do alto com o baixo (tão defendida e tão habilitada por Hugo e Goethe), do sublime com o grotesco, dos versos brancos com as rimas, do metro com a prosa, dos trocadilhos e das canções com a linguagem direta. Sua estrutura e sua forma são tão variadas quanto seu conteúdo.

Do mesmo modo que não podemos dizer qual a sua visão de mundo, não podemos estabelecer regras fixas para seus efeitos sonoros.  Há uma certa imprevisibilidade no ritmo, nas alturas possíveis, no timbre ou no andamento, que poupa, da monotonia e do enfado, os seus ouvintes.

Apesar da associação imediata ao pentâmetro iâmbico, Shakespeare não escreveu somente assim. O “ritmo do coração” muda de pé, elimina ou acrescenta sílabas e desloca acentos, mesmo em peças escritas inteiramente em versos, brancos ou rimados, como Richard II e King John.

Não obstante, haja preciosos trabalhos sobre o aspecto sonoro de sua pena, indicando certa tendência das variações nas peças shakespearianas, a fortuna crítica não encontra um padrão inequívoco nas escolhas do dramaturgo.

Apesar de essa percepção abrir um campo vasto para que as pesquisas possam estabelecer sempre novas relações, não é possível ignorar que as variações formais do texto shakespeariano não contemplam, o tempo todo, nem as classes socais, nem o caráter ou o estado das personagens, nem o tom cômico ou trágico da ocasião. Metro e prosa, rima e verso branco servem a gregos e a troianos sem uma rigidez clara e distinta ou uma preferência poética.

Marlowe parece preferir os versos brancos, desfazendo-se, de certa forma, das rimas, como indica no prólogo de Tamburlaine:

From jigging veins of rhyming mother-wits,

And such conceits as clownage keeps in pay,

We’ll lead you to the stately tent of war,

Where you shall hear the Scythian Tamburlaine

Threatening the world with high astounding terms

 O Bardo, por sua vez, usa as rimas na economia do texto com diferentes funções.  Embora sejam mais recorrentes em temas altos como o amor e a morte, também as usa para chistes como a fala de Drômio de Siracusa, em The Comedy of Errors :‘Was there ever any man thus beaten out of season,/When in the why and the wherefore is neither rhyme nor reason?

E se, por outro lado, alguns dramaturgos elisabetanos também gostavam de brincar com a melodia das homofonias, como Heywood e Dekker, por exemplo, ainda assim Shakespeare tem maior riqueza timbrística, uma vez que, se não inventou palavras e expressões, levou o mérito, ou por tê-las registrado primeiro ou por tê-las recolocado em outros sentidos.

Quanto à prosa, se as cartas não costumam estar em versos, há pelo menos uma em soneto, a de Helena para a Condessa, em All’s Well That Ends Well:

I am Saint Jaques’ pilgrim, thither gone.

Ambitious love hath so in me of ended

That barefoot plod I the cold ground upon,

With sainted vow my faults to have amended.

Write, write, that from the bloody course of war

My dearest master, your dear son, may hie.

Bless him at home in peace, whilst I from far

His name with zealous fervor sanctify.

His taken labors bid him me forgive;

I, his despiteful Juno, sent him forth

From courtly friends, with camping foes to live

Where death and danger dogs the heels of worth.

He is too good and fair for death and me,

Whom I myself embrace to set him free

E do mesmo modo que vemos a prosa na loucura de Hamlet, vemo-la em seus momentos de grande lucidez ou reflexão:

Hamlet

For if the sun breed maggots in a dead dog, being a

god kissing carrion,–Have you a daughter?

Lord Polonius

I have, my lord.

Hamlet

Let her not walk i’ the sun: conception is a

blessing: but not as your daughter may conceive.

Adiante, Hamlet reflete, com beleza e num tom bastante patético e imagético, sobre a vida, ainda que falando em prosa aos amigos Rosencrantz e Guildenstern :

 I have of late–but wherefore I know not–lost all my mirth, forgone all custom of exercises; and indeed it goes so heavily with my disposition that this goodly frame, the earth, seems to me a sterile promontory, this most excellent canopy, the air, look you, this brave o’erhanging firmament, this majestical roof fretted with golden fire, why, it appears no other thing to me than a foul and pestilent congregation of vapours. What a piece of work is a man! how noble in reason! how infinite in faculty! in form and moving how express and admirable! in action how like an angel! in apprehension how like a god! the beauty of the world! the paragon of animals! And yet, to me, what is this quintessence of dust?

A célebre explicação de Jacques, em As You Like It, sobre as idades do homem, mostra a naturalidade com que Shakespeare promovia efeitos diversos na mesma fala. Nela, a um só tempo, ri das características mais corriqueiras do homem, com metro e eloquência, para no último verso, com não menos poesia, valendo-se do polissíndeto e da gradação, imprimir uma dura e triste verdade sobre o fim da vida:

All the world’s a stage,

 And all the men and women merely players;

 They have their exits and their entrances,

 And one man in his time plays many parts,

His acts being seven ages. At first the infant,

 Mewling and puking in the nurse’s arms;

 And then the whining schoolboy, with his satchel

 And shining morning face, creeping like snail

 Unwillingly to school. And then the lover,

Sighing like furnace, with a woeful ballad

 Made to his mistress’ eyebrow. Then a soldier,

 Full of strange oaths, and bearded like the pard,

 Jealous in honor, sudden and quick in quarrel,

 Seeking the bubble reputation

Even in the cannon’s mouth. And then the justice,

 In fair round belly with good capon lined,

 With eyes severe and beard of formal cut,

 Full of wise saws and modern instances;

 And so he plays his part. The sixth age shifts

0 Into the lean and slippered pantaloon,

 With spectacles on nose and pouch on side;

 His youthful hose, well saved, a world too wide

 For his shrunk shank; and his big manly voice,

 Turning again toward childish treble, pipes

And whistles in his sound. Last scene of all,

 That ends this strange eventful history,

 Is second childishness and mere oblivion,

 Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything

Rir da preguiça do estudante, do exagero do enamorado ou da ambição do soldado, não tira a desolação incontornável de faltar tudo à velhice. O tom elegante não o impede de dizer as coisas jocosas, assim como tal jocosidade não condena a comoção das últimas linhas.   Shakespeare provocava o riso nas tragédias, tanto quanto poderia provocar angústia nas comédias, sem prejudicar, contudo, a adequação ao todo, como protestaram seus detratores neoclássicos.

A linguagem de Edgar, em King Lear, é uma personagem exemplar da fusão dos gêneros e das formas em Shakespeare, pois o caráter e as ações do filho do duque de Gloucester são construídos em tons e formas múltiplas em suas falas, sem que por isso condene o todo, mas antes o enriqueça.

Embora sua heterogeneidade seja fruto da emulação de certa liberdade insular, dominante no teatro elisabetano, que já era, formalmente, livre dos dogmas das poéticas continentais, em Shakespeare, ela tende a ainda mais movimento e modulações, talvez, para melhor servir a um drama com mais especulações filosóficas.

A liberdade filosófica que ele dá ao leitor atento, dá também ao ouvinte distraído. A multiplicidade da plateia parece que possa ter-lhe sugerido mais este recurso para conquistar comerciantes e pobres, nobres e poetas – o recurso do som heterogêneo, sugestivo, mas sem aviso prévio e sem uma constante na aplicação dos elementos estéticos em razão dos afetos ou de seus empregos mais frequentes.

Como a imperícia de Shakespeare, “do pouco latim e menos grego”, está fora de cogitação (de fato, ele parece ter conseguido fazer tudo em teatro), essa polivalência poética, das unidades sintáticas às sequência das cenas, pode indicar sua intenção em trabalhar, para sua filosofia inapreensível, uma linguagem igualmente plural.   Como se quisesse dar à forma uma liberdade cuja único compromisso era com o espetáculo e com as suas ideias complexas que, se não pudessem ser percebidas em sua exuberância poética, pudessem, ao menos, ser sentidas por meio de sons familiares, agradáveis, engraçados e soturnos – contrastados ou não.

Assim, a variedade dos recursos sonoros teria o condão de preencher as lacunas do que não podia, na imediatez do teatro ou na ignorância do público, ser compreendido, além de despertar os que estivessem, de alguma forma, dormindo. Uma multiplicidade que não só servia a uma plateia em tudo diversificada, mas também aos diversos sentidos e ideias que a alta poesia pudesse esconder.

Nem só erudito, nem só popular, nem só artificiosa, nem só transparente, a sonoridade do drama shakespeariano não pode ser especificada, assim como não se pode especificar sua cosmovisão a qualquer doutrina. Em Shakespeare, assim como não são planas as suas personagens, não o são suas imagens, seus sons ou suas ideias. Nada é sem relevo ou opaco. Ouvimos o ritmado e a arritmia, o pausado e o acelerado, a profusão e a parcimônia, as cacofonias e as rimas, da mesma maneira que ouvimos o bem e o mal, o riso e a lágrima, o ser e o não ser.

A voz de uma personagem de 1614

A peça Fuenteovejuna, do dramaturgo espanhol Lope de Vega, é de 1614-1619. Trata de uma vila, com o nome de Fuenteovejuna, tiranizada por um comendador. A vila, após sofrer humilhações e abusos, revolta-se e mata o comendador. Num inquérito ordenado depois pelo rei, toda a vila é interrogada e, sob tortura, cada pessoa diz que foi Fuenteovejuna que matou o comendador. Não havendo formalmente um único culpado, o rei regula o incidente e decide-se pelo perdão colectivo à vila.

Podemos dizer que o comendador é um tirano (para lá de outras considerações, muito seiscentistas, sobre o modo errado como ele faz a sua função e sobre o poder inquestionável do rei).

Cada tempo verá a personagem do comendador de modo diferente e cada circunstância o representará com uma determinada voz: em 1973/74, em Portugal,  sob a ditadura de António Oliveira Salazar/Marcello Caetano, a peça Fuenteovejuna foi representada pelo Teatro Experimental de Cascais. Tiveram 14 visitas da censura que resultaram na interdição do espectáculo. Sugiro que a voz do comendador terá motivado fortemente a censura:

 

A voz do comendador é a imitação rigorosa da voz de António Oliveira Salazar. Em 1973/74, a personagem do tirano seiscentista tinha a voz do ditador português. Isto falara para os ouvidos da censura, do público do espectáculo e fala ainda mais para um país já saído da ditadura.

No vídeo, a representação de João Vasco na encenação de Carlos Avilez.

Em conclusão, o teatro é fruto do seu tempo, falando para os seus contemporâneos. O teatro pode ser fixado e apreciado enquanto obra dramática e literária, contudo será entre actor e espectador que se realiza. A voz em palco é um traço dessa relação e em cada geração e tempo será dada uma voz diferente para cada ideia.

Introdução a Global Shakespeares: “António e Cleópatra” e um confronto com a própria memória

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Vi o espectáculo António e Cleópatra há perto de três anos (2017), no Teatro Municipal do Campo Alegre, no Porto. Estava uma tarde de sol em que me demorei depois: não deixava de pensar naqueles dois intérpretes que no palco grande tinham trocado de papeis, tinham conversado e narrado a relação entre António e Cleópatra, numa pessoal reescrita da peça de Shakesperare por parte do encenador/dramaturgista Tiago Rodrigues. Recordo o sol, as imediações do teatro, a sala cheia, o meu espanto.

Estas recordações, inextrincavelmente pessoais de um espectador, num dia, numa cidade e num momento de vida, são pertinentes por serem precisamente o que não está no registo da máquina de filmar. Entendamo-nos, refiro-me à máquina que grava o espetáculo, também ela espectadora e (re)produtora de memória. Porque o que se regista é sobretudo o objeto performativo a que assistiram inúmeras sensibilidades, com incontroláveis reconstruções posteriores.

Encontro esse espectáculo em registo videográfico, em linha, no arquivo digital “Global Shakespeares”. Enquadrado pelo arco do proscénio do (meu) computador e já não do teatro material em que o vi pela primeira vez, dou-me conta, pelo contraste, do que está e não está ali.

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi. A memória sossega-se somente ao encerrar a imagem. O que não está lá e fez parte da escrita (inscrição?) desse momento em mim: as recordações do dia em que assiti. E do ponto de vista do espetáculo, o que eu não tinha visto (nem poderia ver, pois é essencialmente capacidade técnica do medium fílmico): os planos, os cortes, o pormenor, por oposição à minha abrangente visão de tudo.

As palavras que volto a ouvir estão também legendadas, em inglês. O vídeo (sabemo-lo) não é o espectáculo, mas as vozes são as mesmas. Esta encenação, assim registada, opera uma rasura e ao mesmo tempo evidencia o que não está lá e pertence à experiência subjetiva do espectador, esse outro polo do teatro, recetor daquelas palavras e gestos. António e Cleópatra está agora resignificado entre centenas de outros (vídeos de) espectáculos, num arquivo mundial de algo que já passou, que podemos ver ou rever, incontornavelmente de modo diferente. Ou, devo antes dizer, tecnicamente de modo diferente?

Global Shakespeares – Video and performance archive, projeto do MIT, parte de algumas premissas que me parecem ser riquissimas: a combinação de investigação e registo de criações, o caráter colaborativo de um projeto de Humanidades Digitais e o alcance (redundantemente o digo) global a nível temático e material. Afirma-se uma universalidade do Bardo inglês, mas também do livre acesso e da pluralidade de contribuições, tudo em meio digital e desenvolvido (sublinho) num instituto que é referência mundial na investigação tecnológica e sua relação com as humanidades. Agora, António e Cleópatra tornou-se parte de um Shakespeare Global, passando a ser Antony and Cleopatra, falado em português, legendado em inglês, entre muitas outras produções. Deste caso destaco uma vez mais a voz, e repito a primeira sensação: era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Não se passará o mesmo com o texto vicentino e os vídeos que fixam as suas encenações (assunto da minha predileção), registando a mensagem mas não o seu meio? Voltarei necessariamente a esta questão.

A voz dos poetas: Pascoaes por Alexandre O´Neill

A voz dos poetas é designação algo habitual para poesia dita por eles-mesmos, ou eventualmente por outros que lhes dão voz.

Recentemente, a Imprensa Nacional em parceira com os Artistas Unidos, inaugurou em linha um programa assim (a examinar noutra ocasião).

No domínio da imaginação literária, ou daquilo que poderíamos chamar uma descrição da “voz na literatura”, lemos casos, trechos, passagens em que autores se referem às vozes destes ou daqueles poetas. A ritmos, conversas, ligações, timbres, escutas.

Numa recolha de textos dispersos de Alexandre O´Neill – publicados originariamente em jornais e revistas – encontramos uma invocação do poeta Teixeira de Pascoaes e da sua voz.

Refiro-me ao texto “Recordação precipitada de Teixeira de Pascoaes”, publicado inicialmente na revista Vértice, de Março de 1953 (pp.162-165), que agora leio entre as páginas 23-26 de “Coração Acordeão”, edição O Independente (2004). Recolha da responsabilidade de Vasco Rosa.

Alexandre O´Neill descreve como encontrava (e ia ao encontro de) Teixeira de Pascoaes em Amarante: “A um Café à parte, a um Café à roda de Teixeira de Pascoaes. E à sua volta nos dispúnhamos, com o gozo antecipado de quem vai aproveitar um bom fogo crepitante ou a sombra generosa duma árvore” (p.25).

E aqui sobressai a parte sonora, da voz, que nos interessa (ainda na página 25):

“Mas ouvir Pascoaes, falar com ele, ajudá-lo a encontrar o rimo inspirado da conversa, era uma tarde no Marão, era ver nascer «em rumor e cor um pinheiral» era subir até onde «as árvores se transformam em penedos»!”

Um poeta dará testemunho de outro, com reverência e uma proximidade que não se confunde com intimidade, é certo. Dá também uma alusão à sua convivência com todos através da conversa que, sabemos pela “recordação”, seria abrangente, curiosa, humana. Ficaríamos assim, a acreditar no texto, com uma ideia satisfatória da voz deste poeta. Não da voz que diz os seus poemas, mas da que fala com todos, que reflete o (seu) Marão em diálogo.

No entanto, o livro e demais textos de O´Neill acautelam esta leitura à letra do que escreve Alexandre O´Neill: capaz de uma ironia soberba, de uma brincadeira com a realidade e com as palavras que nos arranca sorrisos de cumplicidade. A sua ficcionalização é constante e deliciosa.Este autor leva-nos a desconfiar até de si mesmo, na sua ironia. O que nos leva a desconfiar se a voz e o contexto em que descreve Teixeira de Pascoaes seria facto documental e verídico, quase arquivístico.

Seria uma ficção, um discorrer imaginário inventando o convívio com o poeta? E com a sua voz, também?

Perguntando de outro modo: através desta descrição circunstancial podemos imaginar a voz de Pascoaes, mas temos a certeza de que a não imaginou O´Neill?

Ouvir (poesia de) Apollinaire

Como nos informa o sítio France Culture, podemos ainda ouvir a voz do poeta Guillaume Apollinaire (falecido em 1918).

Escutemos o seu poema “Le Voyageur”, gravado em 1913, graças aos “Archives de la parole” da Bibliothèque nationale de France.

A voz do poeta, em salmodia, dizendo o poema viaja pelo ruído do registo.