A voz dos poetas é designação algo habitual para poesia dita por eles-mesmos, ou eventualmente por outros que lhes dão voz.
Recentemente, a Imprensa Nacional em parceira com os Artistas Unidos, inaugurou em linha um programa assim (a examinar noutra ocasião).
No domínio da imaginação literária, ou daquilo que poderíamos chamar uma descrição da “voz na literatura”, lemos casos, trechos, passagens em que autores se referem às vozes destes ou daqueles poetas. A ritmos, conversas, ligações, timbres, escutas.
Numa recolha de textos dispersos de Alexandre O´Neill – publicados originariamente em jornais e revistas – encontramos uma invocação do poeta Teixeira de Pascoaes e da sua voz.
Refiro-me ao texto “Recordação precipitada de Teixeira de Pascoaes”, publicado inicialmente na revista Vértice, de Março de 1953 (pp.162-165), que agora leio entre as páginas 23-26 de “Coração Acordeão”, edição O Independente (2004). Recolha da responsabilidade de Vasco Rosa.
Alexandre O´Neill descreve como encontrava (e ia ao encontro de) Teixeira de Pascoaes em Amarante: “A um Café à parte, a um Café à roda de Teixeira de Pascoaes. E à sua volta nos dispúnhamos, com o gozo antecipado de quem vai aproveitar um bom fogo crepitante ou a sombra generosa duma árvore” (p.25).
E aqui sobressai a parte sonora, da voz, que nos interessa (ainda na página 25):
“Mas ouvir Pascoaes, falar com ele, ajudá-lo a encontrar o rimo inspirado da conversa, era uma tarde no Marão, era ver nascer «em rumor e cor um pinheiral» era subir até onde «as árvores se transformam em penedos»!”
Um poeta dará testemunho de outro, com reverência e uma proximidade que não se confunde com intimidade, é certo. Dá também uma alusão à sua convivência com todos através da conversa que, sabemos pela “recordação”, seria abrangente, curiosa, humana. Ficaríamos assim, a acreditar no texto, com uma ideia satisfatória da voz deste poeta. Não da voz que diz os seus poemas, mas da que fala com todos, que reflete o (seu) Marão em diálogo.
No entanto, o livro e demais textos de O´Neill acautelam esta leitura à letra do que escreve Alexandre O´Neill: capaz de uma ironia soberba, de uma brincadeira com a realidade e com as palavras que nos arranca sorrisos de cumplicidade. A sua ficcionalização é constante e deliciosa.Este autor leva-nos a desconfiar até de si mesmo, na sua ironia. O que nos leva a desconfiar se a voz e o contexto em que descreve Teixeira de Pascoaes seria facto documental e verídico, quase arquivístico.
Seria uma ficção, um discorrer imaginário inventando o convívio com o poeta? E com a sua voz, também?
Perguntando de outro modo: através desta descrição circunstancial podemos imaginar a voz de Pascoaes, mas temos a certeza de que a não imaginou O´Neill?