A voz de uma personagem de 1614

A peça Fuenteovejuna, do dramaturgo espanhol Lope de Vega, é de 1614-1619. Trata de uma vila, com o nome de Fuenteovejuna, tiranizada por um comendador. A vila, após sofrer humilhações e abusos, revolta-se e mata o comendador. Num inquérito ordenado depois pelo rei, toda a vila é interrogada e, sob tortura, cada pessoa diz que foi Fuenteovejuna que matou o comendador. Não havendo formalmente um único culpado, o rei regula o incidente e decide-se pelo perdão colectivo à vila.

Podemos dizer que o comendador é um tirano (para lá de outras considerações, muito seiscentistas, sobre o modo errado como ele faz a sua função e sobre o poder inquestionável do rei).

Cada tempo verá a personagem do comendador de modo diferente e cada circunstância o representará com uma determinada voz: em 1973/74, em Portugal,  sob a ditadura de António Oliveira Salazar/Marcello Caetano, a peça Fuenteovejuna foi representada pelo Teatro Experimental de Cascais. Tiveram 14 visitas da censura que resultaram na interdição do espectáculo. Sugiro que a voz do comendador terá motivado fortemente a censura:

 

A voz do comendador é a imitação rigorosa da voz de António Oliveira Salazar. Em 1973/74, a personagem do tirano seiscentista tinha a voz do ditador português. Isto falara para os ouvidos da censura, do público do espectáculo e fala ainda mais para um país já saído da ditadura.

No vídeo, a representação de João Vasco na encenação de Carlos Avilez.

Em conclusão, o teatro é fruto do seu tempo, falando para os seus contemporâneos. O teatro pode ser fixado e apreciado enquanto obra dramática e literária, contudo será entre actor e espectador que se realiza. A voz em palco é um traço dessa relação e em cada geração e tempo será dada uma voz diferente para cada ideia.

Introdução a Global Shakespeares: “António e Cleópatra” e um confronto com a própria memória

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Vi o espectáculo António e Cleópatra há perto de três anos (2017), no Teatro Municipal do Campo Alegre, no Porto. Estava uma tarde de sol em que me demorei depois: não deixava de pensar naqueles dois intérpretes que no palco grande tinham trocado de papeis, tinham conversado e narrado a relação entre António e Cleópatra, numa pessoal reescrita da peça de Shakesperare por parte do encenador/dramaturgista Tiago Rodrigues. Recordo o sol, as imediações do teatro, a sala cheia, o meu espanto.

Estas recordações, inextrincavelmente pessoais de um espectador, num dia, numa cidade e num momento de vida, são pertinentes por serem precisamente o que não está no registo da máquina de filmar. Entendamo-nos, refiro-me à máquina que grava o espetáculo, também ela espectadora e (re)produtora de memória. Porque o que se regista é sobretudo o objeto performativo a que assistiram inúmeras sensibilidades, com incontroláveis reconstruções posteriores.

Encontro esse espectáculo em registo videográfico, em linha, no arquivo digital “Global Shakespeares”. Enquadrado pelo arco do proscénio do (meu) computador e já não do teatro material em que o vi pela primeira vez, dou-me conta, pelo contraste, do que está e não está ali.

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi. A memória sossega-se somente ao encerrar a imagem. O que não está lá e fez parte da escrita (inscrição?) desse momento em mim: as recordações do dia em que assiti. E do ponto de vista do espetáculo, o que eu não tinha visto (nem poderia ver, pois é essencialmente capacidade técnica do medium fílmico): os planos, os cortes, o pormenor, por oposição à minha abrangente visão de tudo.

As palavras que volto a ouvir estão também legendadas, em inglês. O vídeo (sabemo-lo) não é o espectáculo, mas as vozes são as mesmas. Esta encenação, assim registada, opera uma rasura e ao mesmo tempo evidencia o que não está lá e pertence à experiência subjetiva do espectador, esse outro polo do teatro, recetor daquelas palavras e gestos. António e Cleópatra está agora resignificado entre centenas de outros (vídeos de) espectáculos, num arquivo mundial de algo que já passou, que podemos ver ou rever, incontornavelmente de modo diferente. Ou, devo antes dizer, tecnicamente de modo diferente?

Global Shakespeares – Video and performance archive, projeto do MIT, parte de algumas premissas que me parecem ser riquissimas: a combinação de investigação e registo de criações, o caráter colaborativo de um projeto de Humanidades Digitais e o alcance (redundantemente o digo) global a nível temático e material. Afirma-se uma universalidade do Bardo inglês, mas também do livre acesso e da pluralidade de contribuições, tudo em meio digital e desenvolvido (sublinho) num instituto que é referência mundial na investigação tecnológica e sua relação com as humanidades. Agora, António e Cleópatra tornou-se parte de um Shakespeare Global, passando a ser Antony and Cleopatra, falado em português, legendado em inglês, entre muitas outras produções. Deste caso destaco uma vez mais a voz, e repito a primeira sensação: era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Não se passará o mesmo com o texto vicentino e os vídeos que fixam as suas encenações (assunto da minha predileção), registando a mensagem mas não o seu meio? Voltarei necessariamente a esta questão.

A voz dos poetas: Pascoaes por Alexandre O´Neill

A voz dos poetas é designação algo habitual para poesia dita por eles-mesmos, ou eventualmente por outros que lhes dão voz.

Recentemente, a Imprensa Nacional em parceira com os Artistas Unidos, inaugurou em linha um programa assim (a examinar noutra ocasião).

No domínio da imaginação literária, ou daquilo que poderíamos chamar uma descrição da “voz na literatura”, lemos casos, trechos, passagens em que autores se referem às vozes destes ou daqueles poetas. A ritmos, conversas, ligações, timbres, escutas.

Numa recolha de textos dispersos de Alexandre O´Neill – publicados originariamente em jornais e revistas – encontramos uma invocação do poeta Teixeira de Pascoaes e da sua voz.

Refiro-me ao texto “Recordação precipitada de Teixeira de Pascoaes”, publicado inicialmente na revista Vértice, de Março de 1953 (pp.162-165), que agora leio entre as páginas 23-26 de “Coração Acordeão”, edição O Independente (2004). Recolha da responsabilidade de Vasco Rosa.

Alexandre O´Neill descreve como encontrava (e ia ao encontro de) Teixeira de Pascoaes em Amarante: “A um Café à parte, a um Café à roda de Teixeira de Pascoaes. E à sua volta nos dispúnhamos, com o gozo antecipado de quem vai aproveitar um bom fogo crepitante ou a sombra generosa duma árvore” (p.25).

E aqui sobressai a parte sonora, da voz, que nos interessa (ainda na página 25):

“Mas ouvir Pascoaes, falar com ele, ajudá-lo a encontrar o rimo inspirado da conversa, era uma tarde no Marão, era ver nascer «em rumor e cor um pinheiral» era subir até onde «as árvores se transformam em penedos»!”

Um poeta dará testemunho de outro, com reverência e uma proximidade que não se confunde com intimidade, é certo. Dá também uma alusão à sua convivência com todos através da conversa que, sabemos pela “recordação”, seria abrangente, curiosa, humana. Ficaríamos assim, a acreditar no texto, com uma ideia satisfatória da voz deste poeta. Não da voz que diz os seus poemas, mas da que fala com todos, que reflete o (seu) Marão em diálogo.

No entanto, o livro e demais textos de O´Neill acautelam esta leitura à letra do que escreve Alexandre O´Neill: capaz de uma ironia soberba, de uma brincadeira com a realidade e com as palavras que nos arranca sorrisos de cumplicidade. A sua ficcionalização é constante e deliciosa.Este autor leva-nos a desconfiar até de si mesmo, na sua ironia. O que nos leva a desconfiar se a voz e o contexto em que descreve Teixeira de Pascoaes seria facto documental e verídico, quase arquivístico.

Seria uma ficção, um discorrer imaginário inventando o convívio com o poeta? E com a sua voz, também?

Perguntando de outro modo: através desta descrição circunstancial podemos imaginar a voz de Pascoaes, mas temos a certeza de que a não imaginou O´Neill?

Uma voz, várias vozes ou “O Essencial sobre Alberto Caeiro”

  1. Remediação/condensação

A série de podcasts “O Essencial Sobre…” parte da coleção homónima da editora Imprensa Nacional. Em pouco tempo (entre 10 e 20 min. em média) é-nos lida a descrição da vida e obra de determinado autor, que pode ser Miguel Torga, José Régio, Irene Lisboa, André Falcão de Resende ou Fernando Pessoa, entre outros.

É uma óbvia condensação do texto publicado, tanto na sua extensão como nos dados que são divulgados. Procura-se um certo biografismo, abdicando de linhas interpretativas ou críticas, que caracterizam (e bem) o projeto do livro, muitas vezes escrito por especialistas como no caso de Maria José de Lancastre acerca de Pessoa, no podcast em causa.

Não sabemos quem faz a condensação ou adaptação do livro para os sucessivos podcasts, ou seja, ignoramos quem selecionará o texto a ser dito (ou lido) daquele outro texto publicado antes em página impressa.

Das duas séries de programas, primeiro em difusão pela RTP/Antena 2  e, a seguir, somente no sítio da Imprensa Nacional (e por vezes no vimeo), noto que a substância será diferente, assim como a sua mediação. Na segunda série parece ser mais valorizado o teor ensaísta dos livros de base. Por outras palavras, não se assenta unicamente na descrição do percurso de vida como se ouvia nos programas anteriores. Sem cotejar os livros com os podcasts, permaneço incerto acerca desta intuição ainda que soem diferentes as duas séries, em substância textual e vocal. Proponho que vejamos um caso em que essa diferença e mediação nos evidencia algo de relevante.

2. “O Essencial Sobre Alberto Caeiro”

Alberto Caeiro é o tema do mais recente podcast, de 3 de Novembro de 2020.

A voz da nova série pertence a Tânia Pinto Ribeiro e informa – quase no fim dos 12 minutos e 30 segundos do podcast – que o programa “teve por base” o livro de Maria José de Lancastre, acerca de Fernando Pessoa. “Teve por base” é ainda a fórmula com que terminam estas sínteses radiofónicas dos vários títulos e nada distinguirá nesse guião este programa dos anteriores. No entanto, trata-se de um biografado inexistente, pois Alberto Caeiro, como sabemos, nunca existiu. Assim como nunca existiu “O Essencial Sobre Alberto Caeiro”, senão por via deste podcast.

Esta emissão parte de “O Essencial Sobre Fernando Pessoa”, daí particularizando Alberto Caeiro: o heterónimo terá sempre que ser visto em relação com Pessoa. O podcast extrai deste modo um autor de outro autor, um “Essencial” de outro “Essencial”. Falando de Fernando Pessoa dá voz a Caeiro.

Temos portanto uma mediação bem diferente. Pessoa já tivera direito a um programa anterior, com características (vocais e textuais) bastante diferentes, em género e multiplicação. A voz narradora era de João Almeida e a voz emprestada às citações foi de André Pinto (com realização da mesma Tânia Pinto Ribeiro).

Como falar de um autor que não existe? Como dar voz à biografia de uma personagem de ficção? Temos a descrição que faz dele a autora do livro (Maria José de Lancastre) com quem se confundirá a voz de Tânia Pinto Ribeiro. Poderíamos pensar que é a mesma pessoa, ao escutarmos. O tom é informativo, declarativo, a voz é clara no seu som e passiva no seu discurso. Todavia, altera-se em partes específicas, no que será uma citação, quando um eu está presente, implicado: o enunciado por Pessoa e por Caeiro. E como será vocalmente a citação acerca de Caeiro? Ouvimos a mesma voz, mas mais próxima, numa qualidade diferente de gravação, mais presente.

Não posso deixar de pensar que aqui convergem aspetos “essenciais” de Pessoa/Caeiro. É a mesma voz afinal, mas mais clara, próxima, presente. Num outro tempo de edição, registo, gravação. De algo que não existe, nem em livro inteiro, nem em biografia como a conhecemos, surge uma voz, mais perto de nós, mais clara.

Cita-se no programa a afirmação de Pessoa a Sá-Carneiro, de que teria aparecido diante de si o seu mestre ao escrever os primeiros poemas de Alberto Caeiro. Com a reserva que nos merece a auto-ficção das declarações de Pessoa, parece-me que este podcast revela e replica isso mesmo. Uma voz com outras vozes dentro, que “aparecem” ainda mais reais e próximas que a sua.

Não será precisamente isto o seu essencial?