- Remediação/condensação
A série de podcasts “O Essencial Sobre…” parte da coleção homónima da editora Imprensa Nacional. Em pouco tempo (entre 10 e 20 min. em média) é-nos lida a descrição da vida e obra de determinado autor, que pode ser Miguel Torga, José Régio, Irene Lisboa, André Falcão de Resende ou Fernando Pessoa, entre outros.
É uma óbvia condensação do texto publicado, tanto na sua extensão como nos dados que são divulgados. Procura-se um certo biografismo, abdicando de linhas interpretativas ou críticas, que caracterizam (e bem) o projeto do livro, muitas vezes escrito por especialistas como no caso de Maria José de Lancastre acerca de Pessoa, no podcast em causa.
Não sabemos quem faz a condensação ou adaptação do livro para os sucessivos podcasts, ou seja, ignoramos quem selecionará o texto a ser dito (ou lido) daquele outro texto publicado antes em página impressa.
Das duas séries de programas, primeiro em difusão pela RTP/Antena 2 e, a seguir, somente no sítio da Imprensa Nacional (e por vezes no vimeo), noto que a substância será diferente, assim como a sua mediação. Na segunda série parece ser mais valorizado o teor ensaísta dos livros de base. Por outras palavras, não se assenta unicamente na descrição do percurso de vida como se ouvia nos programas anteriores. Sem cotejar os livros com os podcasts, permaneço incerto acerca desta intuição ainda que soem diferentes as duas séries, em substância textual e vocal. Proponho que vejamos um caso em que essa diferença e mediação nos evidencia algo de relevante.
2. “O Essencial Sobre Alberto Caeiro”
Alberto Caeiro é o tema do mais recente podcast, de 3 de Novembro de 2020.
A voz da nova série pertence a Tânia Pinto Ribeiro e informa – quase no fim dos 12 minutos e 30 segundos do podcast – que o programa “teve por base” o livro de Maria José de Lancastre, acerca de Fernando Pessoa. “Teve por base” é ainda a fórmula com que terminam estas sínteses radiofónicas dos vários títulos e nada distinguirá nesse guião este programa dos anteriores. No entanto, trata-se de um biografado inexistente, pois Alberto Caeiro, como sabemos, nunca existiu. Assim como nunca existiu “O Essencial Sobre Alberto Caeiro”, senão por via deste podcast.
Esta emissão parte de “O Essencial Sobre Fernando Pessoa”, daí particularizando Alberto Caeiro: o heterónimo terá sempre que ser visto em relação com Pessoa. O podcast extrai deste modo um autor de outro autor, um “Essencial” de outro “Essencial”. Falando de Fernando Pessoa dá voz a Caeiro.
Temos portanto uma mediação bem diferente. Pessoa já tivera direito a um programa anterior, com características (vocais e textuais) bastante diferentes, em género e multiplicação. A voz narradora era de João Almeida e a voz emprestada às citações foi de André Pinto (com realização da mesma Tânia Pinto Ribeiro).
Como falar de um autor que não existe? Como dar voz à biografia de uma personagem de ficção? Temos a descrição que faz dele a autora do livro (Maria José de Lancastre) com quem se confundirá a voz de Tânia Pinto Ribeiro. Poderíamos pensar que é a mesma pessoa, ao escutarmos. O tom é informativo, declarativo, a voz é clara no seu som e passiva no seu discurso. Todavia, altera-se em partes específicas, no que será uma citação, quando um eu está presente, implicado: o enunciado por Pessoa e por Caeiro. E como será vocalmente a citação acerca de Caeiro? Ouvimos a mesma voz, mas mais próxima, numa qualidade diferente de gravação, mais presente.
Não posso deixar de pensar que aqui convergem aspetos “essenciais” de Pessoa/Caeiro. É a mesma voz afinal, mas mais clara, próxima, presente. Num outro tempo de edição, registo, gravação. De algo que não existe, nem em livro inteiro, nem em biografia como a conhecemos, surge uma voz, mais perto de nós, mais clara.
Cita-se no programa a afirmação de Pessoa a Sá-Carneiro, de que teria aparecido diante de si o seu mestre ao escrever os primeiros poemas de Alberto Caeiro. Com a reserva que nos merece a auto-ficção das declarações de Pessoa, parece-me que este podcast revela e replica isso mesmo. Uma voz com outras vozes dentro, que “aparecem” ainda mais reais e próximas que a sua.
Não será precisamente isto o seu essencial?