Introdução a Global Shakespeares: “António e Cleópatra” e um confronto com a própria memória

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Vi o espectáculo António e Cleópatra há perto de três anos (2017), no Teatro Municipal do Campo Alegre, no Porto. Estava uma tarde de sol em que me demorei depois: não deixava de pensar naqueles dois intérpretes que no palco grande tinham trocado de papeis, tinham conversado e narrado a relação entre António e Cleópatra, numa pessoal reescrita da peça de Shakesperare por parte do encenador/dramaturgista Tiago Rodrigues. Recordo o sol, as imediações do teatro, a sala cheia, o meu espanto.

Estas recordações, inextrincavelmente pessoais de um espectador, num dia, numa cidade e num momento de vida, são pertinentes por serem precisamente o que não está no registo da máquina de filmar. Entendamo-nos, refiro-me à máquina que grava o espetáculo, também ela espectadora e (re)produtora de memória. Porque o que se regista é sobretudo o objeto performativo a que assistiram inúmeras sensibilidades, com incontroláveis reconstruções posteriores.

Encontro esse espectáculo em registo videográfico, em linha, no arquivo digital “Global Shakespeares”. Enquadrado pelo arco do proscénio do (meu) computador e já não do teatro material em que o vi pela primeira vez, dou-me conta, pelo contraste, do que está e não está ali.

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi. A memória sossega-se somente ao encerrar a imagem. O que não está lá e fez parte da escrita (inscrição?) desse momento em mim: as recordações do dia em que assiti. E do ponto de vista do espetáculo, o que eu não tinha visto (nem poderia ver, pois é essencialmente capacidade técnica do medium fílmico): os planos, os cortes, o pormenor, por oposição à minha abrangente visão de tudo.

As palavras que volto a ouvir estão também legendadas, em inglês. O vídeo (sabemo-lo) não é o espectáculo, mas as vozes são as mesmas. Esta encenação, assim registada, opera uma rasura e ao mesmo tempo evidencia o que não está lá e pertence à experiência subjetiva do espectador, esse outro polo do teatro, recetor daquelas palavras e gestos. António e Cleópatra está agora resignificado entre centenas de outros (vídeos de) espectáculos, num arquivo mundial de algo que já passou, que podemos ver ou rever, incontornavelmente de modo diferente. Ou, devo antes dizer, tecnicamente de modo diferente?

Global Shakespeares – Video and performance archive, projeto do MIT, parte de algumas premissas que me parecem ser riquissimas: a combinação de investigação e registo de criações, o caráter colaborativo de um projeto de Humanidades Digitais e o alcance (redundantemente o digo) global a nível temático e material. Afirma-se uma universalidade do Bardo inglês, mas também do livre acesso e da pluralidade de contribuições, tudo em meio digital e desenvolvido (sublinho) num instituto que é referência mundial na investigação tecnológica e sua relação com as humanidades. Agora, António e Cleópatra tornou-se parte de um Shakespeare Global, passando a ser Antony and Cleopatra, falado em português, legendado em inglês, entre muitas outras produções. Deste caso destaco uma vez mais a voz, e repito a primeira sensação: era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Não se passará o mesmo com o texto vicentino e os vídeos que fixam as suas encenações (assunto da minha predileção), registando a mensagem mas não o seu meio? Voltarei necessariamente a esta questão.

Ouvir (poesia de) Apollinaire

Como nos informa o sítio France Culture, podemos ainda ouvir a voz do poeta Guillaume Apollinaire (falecido em 1918).

Escutemos o seu poema “Le Voyageur”, gravado em 1913, graças aos “Archives de la parole” da Bibliothèque nationale de France.

A voz do poeta, em salmodia, dizendo o poema viaja pelo ruído do registo.

Som & flama

Na cave do Departamento de Física da UC estão guardados alguns instrumentos de medição (acústica, optométrica, gasométrica, eletromagnética…) encomendados pela Universidade – a sua maioria nos séculos XVIII e XIX – a partir de catálogos distribuídos na época pelas universidades europeias – como os de Max Kohl, por exemplo –  com fins demonstrativos nas aulas da Academia e que, com a queda de paradigmas, foram ampliando a coleção do Museu da Ciência.

O espólio inclui um fonautógrafo do construtor prussiano Rudolf Koenig (1832-1901), à semelhança dos primeiros aparelhos de registo sonoro do francês Édouard-Léon Scott de Martinville (1817-1879), adquirido pela Universidade a pedido de António dos Santos Viegas (1837-1914), à data Diretor do Gabinete de Física (1880-1911), e constituiu o pretexto para a visita do Vox Media ao piso -1 da Rua Larga; GILBERTO PEREIRA, conservador e restaurador do Museu, abriu-nos as portas e guiou-nos pela casamata de vitrines de precisão acústica.

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The Literary Audio Symposium

Terá lugar na Universidade de Concordia, Canadá,de 2 a 5 de Dezembro próximos, o The Literary Audio Symposium.

O Simpósio nasce do esforço conjunto de um número alargado de instituições: do AMP Lab, da Universidade de Berkely, Califórnia, do Technoculture, Art and Games Centre (TAG Centre), do Centre for Oral History and Digital Storytelling (COHDS), ambos da Universidade de Concordia,  das Bibliotecas da Universidade de Concordia, mas, também, de investigadores e arquivistas da Universidade de Calgary, Universidade de Alberta, e Universidade Simon Fraser.

Partindo da constatação da proliferação, nos últimos anos, de arquivos sonoros em formato digital – caso do PennSound ou Cylinder Archive Project – e das possibilidades que estes contêm enquanto recurso para investigadores e ouvintes, o encontro estrutura-se em torno de 4 grandes objectivos

1) new forms of historical and critical scholarly engagement with coherent collections of spoken recordings;

2) digital preservation, aggregation techniques, asset management and infrastructure to support sustainable access to diverse collections of archival spoken audio recordings;

3) techniques and tools for searching and visualizing corpora of spoken audio (for features relevant to humanities research and pedagogy); and

4) innovative ways of mobilizing digitized spoken and literary recordings within pedagogical and public contexts.

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