ciclo Voz e Auralidade nas Artes Performativas

Coimbra, 7 – 10 fevereiro, TAGV

voz à boca de cena, voz de cena à boca e cena de voz à boca

O ciclo Voz e Auralidade nas Artes Performativas constitui uma mostra de manifestações artísticas onde se exprime a diversidade do suporte da linguagem no âmbito do que se tem vindo a designar como teatro expandido, explorando gestos vocais alterados pela exigência de uma escuta que antecede o falar. Este exercício traz a jogo as variantes da voz em cena, numa dinâmica combinatória que compreende as suas diversas extensões: voz à boca de cena, voz de cena à boca e cena de voz à boca, consoante o foco das propostas artísticas. Tais mutações definem a razão de ser deste ciclo que, antevendo a multiplicidade destas práticas, se apresenta sob a forma de espetáculos, instalações, passeio sonoro, debate e edição.

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EchoManAfonso

Cada geração tem o seu filme de domingo à tarde e respetiva febre de sequelas avidamente comentadas e reproduzidas nos recreios da escola mais próxima. A Academia de Polícia é um daqueles filmes sem explicação, de repercussão retardada (um sleeper hit), sem realizador que se lembre (Hugh Wilson), com uma paleta de heróis desengonçados (no Brasil chamou-se a Loucademia de Polícia) que não obstante deixaram a sua marca — hoje basta uma busca rápida para identificar o cadete gigante Moses Hightower (Bubba Smith), o cadete tarado pelas armas Eugene Tackleberry (David Graf), o frustrado Tenente Thaddeus Harris (G.W. Bailey), o senil Comandante Eric Lassard (George Gaynes), a esganiçada Cadete Laverne Hooks (Marion Ramsey), o vilão de voz brutalmente irregular Zed (“Bobcat” Goldthwait) e, claro, o delírio dos putos, o Cadete Larvelle Jones (Michael Winslow):

Poucos miúdos daquela geração não devem ter imitado o alarme daquele aspirante a polícia que baralhava todos os sistemas. O Afonso foi um deles.

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Doda Lingua en Limalandia

Como se o verbo obrigasse, rever a faixa áudio fez disparar inadvertidamente uma sequência de imagens: literalmente, Irse de lengua a partir de Doda Lingua.

grafismo por Héctor Delgado

Ao escutar de novo a recolha de Poesía sonora peruana por Luis Alvarado, esse duplo gesto de afastamento e chegada da língua à (ponta da trampolínea) língua — irse de lengua — destapou outro disco da Buh Records: Doda Lingua.

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O sotaque dos afónicos

Dallas Intro Season 1 (1978)

O espetáculo começa com abertura bombástica em voz-off, preparando o carrossel narrativo – the plot! – que condensará uma série de temporadas televisivas numa só cena, num só fôlego. Uma gigantesca nota de dólar americano – oh, money money – forra todo o cenário , enquadrando uma longa mesa de toalha branca com copos e vários telefones cromados e, do lado direito…um mexicano que praticamente não se moverá durante toda a peça.

Entra em cena a família Ewing: Bobby! Jock! JR! Miss Ellie! Lucy! Pamela! Sue Ellen!! –, os homens de fatinho branco e chapéu à cowboy, de pistola na mão ou à cintura, na jactância prepotente que identificamos como texana, e as mulheres de vestido brilhante e fartas cabeleiras artificiais.

E depois começam a falar.

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Traições à letra, Bruno Ministro

Apagões escritos

Veio a lume , no carbon copy da internet, mais uma obra de Bruno Ministro , uma inscrição que, de tão reiterada e queimada nas impressoras deste mundo, passou à condição de símbolo, agora reobservado e desmontado pela habitual postura zarolha do Autor, olhando de viés discursos retilíneos e claros, asséticos (embora não a ponto de o branco se confundir com o vazio). Em inglês – e “na América” –, como manda a lei, This page intentionally left blank (MINISTRO 2018b) pode ser adquirido numa plataforma online.

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Joker Molder

Até 30 de março de 2018, nas Carpintarias de São Lázaro em Lisboa, Jorge Molder lança à parede Caras, Mãos, Bocados e Espectros, os naipes do seu Jeu de 54 cartes.

Jorge Molder. Do documentário Entre Imagens (2012), de Pedro Macedo e Sérgio Mah.

Mãos

O ilusionista saltita dentro das cartas, mas não perde mão delas. Este é o trunfo do artista: deter o espetador como refém da estaticidade da imagem, mesmo que todos os sinais remetam para a encenação de um movimento, para uma teatralidade. De camisa branca sob fato negro, corpo branco surgindo da escuridão, o mímico joga às escondidas com o autorretrato, re(a)presentando-se numa pseudo fuga constantemente apanhada num “momento presente (…) de ‘polifurcação’” (ROZZONI 2018, 90).

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nome de gente, melodia de pássaro

Verdilhão (carduelis chloris)

Verdilhão/ carduelis chloris (2009-04-02), em Dwingelderveld, Drenthe, Holanda, gravado por Sander BOT (xeno-canto)

Mas o ar tinha uma certa graça e, se bem que a ornitologia do trilo fosse discutível, será que não valia mais a pena começar a aprendizagem de [‘ʒwɐ͂w̃] com um chilrear acessível para depois o encerrar num trilo único de onde nunca mais sairia? (VILLEMAUX 2019, 13)

O primeiro número (#0) de Coreia (fevereiro de 2019) foi lançado na Rua das Gaivotas 6 em Lisboa no passado dia 24 de fevereiro de 2019 e inclui um texto de Cyriaque Villemaux (1988, Offenburg, DE) – “Enfanter le père” (“Inventar o pai”, na tradução de Vieira Mendes) – que parte da “ideia segundo a qual nós também herdamos dos nossos sucessores”.

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João Onofre na Culturgest: Baladas de um coveiro

Tony Smith (modelo em 1962, fabricado em 1968) Die

“Six foot under. I didn’t make a drawing; I just picked up the phone and ordered it.”
Tony Smith sobre Die

Um cubo de 6 pés em ¼ polegadas de aço laminado a quente com escoramento interno diagonal”, sendo as dimensões determinadas pelas proporções do corpo humano. Estas são também as dimensões da caixa às portas da Caixa [Geral de Depósitos], antecipando assim – fazendo caixinha – o jogo de referências encaixotadas que atravessa toda a exposição de João Onofre. Como uma matriosca, mas invertida: figura(çõe)s encobertas por covers sucessivos.

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Susan Hiller: a passagem de uma testemunha

Susan Hiller passou, a 28 de Janeiro de 2019, para o lado das suas obras, o lugar de receção e emissão de outras vozes.

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A voz e o milho

Meal Ticket” é a terceira estória d’ A Balada de Buster Scruggs (2018), filme de Joel e Ethan Coen.

A voz

Abre-se o pano da carroça de Thespis:

I met a traveller from an antique land,
Who said—

Quem o diz – mais do que o dito – causa o pasmo do público que, escasso, se arrebanha sob as frias estrelas para assistir ao anunciado espetáculo. O assombro não advirá tanto da representação, mas da “realidade” física do ator. Torna-se impossível ouvir o dito sem considerar o desditoso:

Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. . . .

É essa a figura que o palco deserto ilumina:  um ator quadramputado cuja cara pincelada apenas desvia ao de leve o que a todos consome o olhar – um monólito de gente do qual sobressai, a custo, a loquacidade daquele ser que mal existe para além dessa grandiloquência:

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