nome de gente, melodia de pássaro

Verdilhão (carduelis chloris)

Verdilhão/ carduelis chloris (2009-04-02), em Dwingelderveld, Drenthe, Holanda, gravado por Sander BOT (xeno-canto)

Mas o ar tinha uma certa graça e, se bem que a ornitologia do trilo fosse discutível, será que não valia mais a pena começar a aprendizagem de [‘ʒwɐ͂w̃] com um chilrear acessível para depois o encerrar num trilo único de onde nunca mais sairia? (VILLEMAUX 2019, 13)

O primeiro número (#0) de Coreia (fevereiro de 2019) foi lançado na Rua das Gaivotas 6 em Lisboa no passado dia 24 de fevereiro de 2019 e inclui um texto de Cyriaque Villemaux (1988, Offenburg, DE) – “Enfanter le père” (“Inventar o pai”, na tradução de Vieira Mendes) – que parte da “ideia segundo a qual nós também herdamos dos nossos sucessores”.

Numa premissa à la Benjamin Button 1 levada mais além, neste texto de Villemaux (1988, Offenburg, DE) “um tal de João trouxe ao mundo um pequeno rapaz a que decidiu chamar João, como o seu pai.” A estranheza está não só em “ser a primeira criança a nascer de uma pessoa dotada de um órgão reprodutivo masculino”, como também no facto de que “o herdeiro cria o seu antepassado, o herdeiro dá à luz o parentesco, produ-lo”.

A história da arte, por exemplo, pode ler-se de trás para a frente. Eu quis aplicar essa distorção – aliás indolor, não se preocupem – à minha vida. A ideia de pai não passa de um material passível de ser mastigado para produzir um objecto.

Essa ‘mastigação’ será tão concetual como sonora, uma fuga à corporalização – e, consequentemente, à inscrição – através de remediações quase espagíricas: o som, a eletricidade, o digital, e de novo o som sucedem-se numa série de transmutações para lado nenhum:

Nunca haveria nada para ver, ou, quando muito, apenas uma forma indescritível como a que se observa no fundo de um poço e aonde não chega qualquer luz e sobre a qual só se pode ver uma ideia desfocando propositadamente o olhar.

Será a fuga ao ser-corpo por via de um estado de ante-corpo, um autoquestionamento acerca do lugar do corpo num medium – o da dança, por exemplo – carregado de indexações físicas: corpos que não saem do corpo. Villemaux (dançarino), ou “um tal de João”, tentam escapar à irreversível cascata da existência recorrendo a um nascimento duplamente impossível (neste mundo): um filho de “uma pessoa dotada de um órgão reprodutivo masculino” e um filho do seu sucessor, ou seja, um filho que dá à luz um pai.

Até hoje tinha-o rodeado de silêncio mas, apesar dos esforços, a criança parecia reconhecer-se no som [‘ʒwɐ͂w̃]. Era importante que este som não se colasse demasiado à pele de João, pois, uma vez embutido, seria muito complicado de o tirar.

Asseveradas as condições para a não-concretização de um ciclo histórico linear, encadeia-se de seguida um ciclo – inevitavelmente paradoxal – para assegurar a manutenção desse ente num estado de suspensão “à maneira de do móbil de cera, que não passava de afagos e hipóteses”. João tentará manter a criança-pai (também João) sonoramente em suspenso, num limbo que só é som [‘ʒwɐ͂w̃] porque não podia mais ser silêncio. Esse som, multiplicado – “como revirar-lhe a pele e fazer dessa membrana o saco que retém o eco da criança: [‘ʒwɐ͂w̃].” –, deu origem a uma “suite de onomatopeias, um canto de pássaro”. Inspira-se para isso nuns guardadores de tentilhões, que competiam na Musgueira 2

Tentilhão-montês/ Fringilla montifringilla (2005-11-15), em Send, Surrey, Inglaterra, gravado por Stuart FISHER (xeno-canto)

João teve a ideia de multiplicar [‘ʒwɐ͂w̃], de o deformar até que se tornasse uma suite de onomatopeias, um canto de pássaro.

Essa multiplicação parte da escrita, da folha de papel como tabula rasa sobre a qual se erguerá o som.

Ao alfabeto fonético será atribuído altura sonora, um dos elementos ausentes das convenções gramaticais. João traduz a escrita fonética em composição musical, a partitura dos trinados em forma de suite.

A re-criação de um momento perpétuo de retardamento da história, da definição das propriedades e contextos que se grudam a um ser, a começar pelo nome próprio, é aplicada numa primeira instância por via do silêncio e, na sua impossibilidade, por via do som. Todavia, o som constitui um dos primeiros elemento de (auto)reconhecimento, daí a necessidade da sua deformação, do afastamento da fala humana ao encontro da fala de pássaro, passando primeiro para uma ‘suite de onomatopeias’, e logo de seguida, como forma de anterioridade, para um ‘canto de pássaro’.

A onomatopeia surge como imitação fabricada de sons concretos, como representação sonora de sons extra-linguísticos, ou ainda não incorporados na linguagem. Como se tratasse de um primeiro grau de abstração sonora – ou um regresso‘instruído’ à arqueologia da linguagem e do ser-humano.

O pássaro, ou o seu canto, constituem uma universalidade: o canto de um tentilhão representa não uma ave específica, um indivíduo, uma Maria Callas, mas uma classe. O anonimato é o que permite o som da natureza sem balizas históricas, um som que podia ser do herdeiro ou do antepassado, numa sequência que (aparentemente, ou, pelo menos, para os humanos) não tem consequência nem relevância. “Como se os animais não quisessem envolver-se totalmente na linguagem“, diz Agamben, ao passo que “o ser humano se coloca em risco na linguagem“:

Giorgio AGAMBEN (2011) Animal, Man and Language, numa conferência para a European Graduate School em Saas-Fee, Suíça. [excerto]

Por isso, João é nome de pai e nome de filho, igual, indistinguível, trocável. A tentativa não-frustrada de ter um não-pai, de ser responsável pelo seu antecessor, pela sua criação, pelo retardamento da fala, do universo falante dos adultos é levada a cabo na preservação de um ambiente, na perpetuação de um estado exo-uterino: cá fora, mas com as condições e sensações pré-natais: o som longínquo de um altifalante embatendo na “barreira sonora entre a língua falada pelos adultos e a orelha falsamente passiva do pai”.

No entanto, essa abordagem-fuga ao nome é elaborada através da abstração concetual mais ‘pura’, do alto da construção musical reencena-se o chilreio mais ‘natural’.

Depois de dispor as notas pela partitura, faltava-lhe distribuir os fonemas do nome. E foi isso que fez, espargiu os fonemas do seu pai como faria com as cinzas de um defunto: [‘ʒ] [w] [ɐ͂] [w̃].

O texto, na distribuição dos fonemas, é também ele prescritivo de uma tarefa: a composição de uma pauta como garante da sua reprodução, tornar-se uma língua inventada, um corpo que passa de um som a outro som através do som.

recriação da partitura “Melodia do Pássaro” (2019) de Cyriaque Villemaux [excerto]

Adensando, complexificando, imiscui-se a eletricidade e o digital:

(…) João adquiriu um software de composição musical. Introduziu nele as notas e confiou a sua interpretação à voz de uma soprano digital. Uma nota por fonema, na ordem lógica do som [‘ʒwɐ͂w̃]. O resultado afastava-se bastante do canto do tentilhão.

A complexidade do processo parte de um nome, da sua grafia para a sua expressão fonética e daí para a sua representação onomatopaica e para um som universal de pássaro, e de volta ao signo (musical), e de novo através da eletricidade para a codificação digital, do software, e daí para o MIDI (Musical Instrument Digital Interface), e de volta ao som, às frequências no éter, no ar.

João re-cria [‘ʒwɐ͂w̃], que soa:

Áudio (MIDI) correspondente à partitura “Melodia do Pássaro” (2019) de Cyriaque Villemaux.

No final, após todas estas transformações, qual o resultado?

Esta língua longínqua não passava de um sussurro de consoantes com valor idêntico ao velho frigorífico da cozinha.

A desvinculação de um som à sua pele, um loop, um trajeto concêntrico; afinal, em que ponto ficamos? Valeu a viagem, a transformação, ficou a pele intacta ao som?, “fora do alcance”, não incorporada, eternamente descorporada?, apartada por uma gama de sons referenciais?

O que resta do João de João?

Longe das palavras, estes elementos sensíveis organizavam-se em constelações que nenhuma imagem, som ou cheiro poderia reunir num todo. Restos de sensações captadas pelos órgãos deste pequeno corpo e que mais tarde se traduziriam em gestos, posturas, entoações. Associações efémeras, que ultrapassavam o que o nome João poderia alguma vez significar, inchavam-no como a uma tripa sem que essa pressão fosse visível do exterior, e continuavam a fazer-se e a desfazer-se às custas do nome João, mero recipiente de uma panela saída de uma gaveta dessa mesma cozinha. Ele não passava de um tableau vivant sobre o qual se imprimiam misturas bizarras que desfilavam sob o seu olhar e cruzavam os seus sentidos.

Tentilhão-montês (fringilla montifringilla)


Bibliografia

VILLEMAUX, Cyriaque. 2019. «Inventar o pai». Editado por João dos Santos MARTINS e Associação Cultural CIRCULAR. Traduzido por José Maria Vieira MENDES. Coreia 1 (0): 12–13. http://www.coreia.pt/

Videografia

AGAMBEN, Giorgio, e EGS. 2011. Giorgio Agamben: Animal, Man and Language. Saas-Fee, Suíça: European Graduate School EGS Media and Communication Studies department. https://www.youtube.com/watch?v=KNVvvslTO8s

Consultar:

KRESTOVNIKOFF, Miranda, e Emily WILLIAMSON. (1889) 2013. «About the RSPB | Our Mission, How We’re Run & Vacancies». Society for the Protection of Birds (SPB). The RSPB. 2013. https://www.rspb.org.uk/about-the-rspb/about-us/

PLANQUÉ, Bob, e Willem-Pier VELLINGA. 2005. «Sobre :: xeno-canto». Gravações de aves selvagens. xeno-canto. 2005. https://www.xeno-canto.org/about/xeno-canto

Share with: