Até 30 de março de 2018, nas Carpintarias de São Lázaro em Lisboa, Jorge Molder lança à parede Caras, Mãos, Bocados e Espectros, os naipes do seu Jeu de 54 cartes.
Jorge Molder. Do documentário Entre Imagens (2012), de Pedro Macedo e Sérgio Mah.
Mãos
O ilusionista saltita dentro das cartas, mas não perde mão delas. Este é o trunfo do artista: deter o espetador como refém da estaticidade da imagem, mesmo que todos os sinais remetam para a encenação de um movimento, para uma teatralidade. De camisa branca sob fato negro, corpo branco surgindo da escuridão, o mímico joga às escondidas com o autorretrato, re(a)presentando-se numa pseudo fuga constantemente apanhada num “momento presente (…) de ‘polifurcação’” (ROZZONI 2018, 90).
Peggy Phelan (PHELAN 1993), que utiliza expressamente o conceito de performance em relação à fotografia, diz-nos que a imagem fotográfica é sempre uma cópia de uma cópia, implica sempre dois. Aqui reencontramos a velha ideia de Aristóteles, de que a mimesis refaz o original, mantendo a semelhança com ele. A duplicidade mimética da fotografia, no sentido aristotélico – «o mimema não é a mesma coisa nem completamente outra» – comporta essa brecha que abre para um dispositivo encenatório do Eu. (MEDEIROS 2000, 115)
Caras
As car(t)as estampadas não implicam, na sua magna visibilidade, o desenlace do lance:
(…) há uma tensão que atravessa cada imagem e que aponta duas direções (sentidos?): para um “antes” e para um “depois”. Nenhum ponto de partida é mais verdadeiro que todas as suas modificações, e nenhum ponto de chegada resulta estável ou permanente. Em termos musicais: não existem variações sem um tema, mas o tema só vive verdadeiramente através das alterações que o renovam. E tal também acontece nas séries. Por exemplo, uma nova série pode “soar” diferentemente e mudar assim o sentido da série anterior ou até da seguinte. (Jorge Molder, apud ROZZONI e MOLDER 2018, 9, traduzido do inglês)
Jorge Molder (2012) Entre Imagens
Espectros
A obturação da luz – “o negro, onde as coisas nascem e vão desaparecer” (Jorge Molder, em (MACEDO [2012] 2014) – é o que permite também a captura desse ente que só se revela na câmara escura: o espetro.
«Ao nível imaginário, a Fotografia (…) representa esse momento deveras subtil em que, a bem dizer, não sou nem um sujeito nem um objecto, mas essencialmente um sujeito que sente que se transforma em objecto: vivo então uma micro-experiência da morte (do parêntese), torno-me verdadeiramente espectro.» (BARTHES [1980] 2006, 30; apud FLORES 2005, 7)
Mas este espetro, incorporado no baralho, é ludibriado pela sombra do joker que, com o seu comportamentos invasivo, ameaça todos os naipes: ele ora mostra caras que levam as mãos à cabeça, ora joga mãos que tapam a cara, ora lança espetros dos quais se percebem apenas bocados. O foco – ou desfoco – é aplicado nos elementos sobranceiros ao traje; no entanto, aquele corpo vestido desvia a apresentação anatómica – e depende dela – para a representação de um acto, para a mise-en-scène. Este “dispositivo encenatório do Eu” (MEDEIROS 2000, 115) acaba por desbaratar a seriedade fúnebre associada ao obturador; o espetro terá sido capturado (ou meramente intitulado), mas o mímico destorce, trocista, a sua prisão. No final, açular-nos-á a dúvida sobre quem está de facto preso: se nós, circulando livres cá fora, se o joker cortando os lances. É que as imagens que se nos apresentam são apenas intermitências fixas de um potencial de movimento que nos é vedado; não podemos nunca saber quais as trajetórias do mímico fora daquele momento.
Jorge Molder (2012) Entre Imagens
Bocados
Cara, mãos e objetos sempre me acompanharam. Eles são sempre os mesmos, e sempre diferentes. Cara e mãos são incorrigíveis, possuem um poder infinito de transformação. Os objetos são sempre estranhos e vulneráveis, criam afinidades inesperadas, podendo inclusive tornar-se autorretratos. (Jorge Molder, apud ROZZONI e MOLDER 2018, 13, traduzido do inglês)
Uma das características do mímico é a sua mudez, num trabalho de expressão não-sonora dos conceitos, amplificando para isso os recursos gestuais. Se, num exercício de sonorização, pretendêssemos associar sons àquelas fotos, que sons seriam? Curiosamente, os esgares remetem tanto para uma excedência física como sonora:
Jaap Blonk (2003) para um programa da televisão alemã 3Sat.
Ouçamos agora a junção:
Bibliografia
BARTHES, Roland. (1980) 2006. A câmara clara. Lisboa: Edições 70.
FLORES, Teresa Mendes. 2005. «A Fixação Da Ficção: Fotografia, Auto-Retrato e Autobiografia Revista de Comunicação Pública. Revista Multidisciplinar de Comunicação. Lisboa: ESCS Edições, 2005». Revista de Comunicação Pública. Revista Multidisciplinar de Comunicação. Lisboa: ESCS Edições 1 (2): 121–44. https://www.academia.edu/1504725/A_fixa%C3%A7%C3%A3o_da_fic%C3%A7%C3%A3o_fotografia_auto-retrato_e_autobiografia.
MEDEIROS, Margarida. 2000. Fotografia e Narcisismo: O Auto-Retrato Contemporâneo. Arte e Produção 20. Lisboa: Assírio & Alvim. https://www.academia.edu/30235819/Fotografia_e_Narcisismo_-_o_Auto-retrato_Contempor%C3%A2neo_Lisboa_Ass%C3%ADrio_and_Alvim_2000_.
PHELAN, Peggy. 1993. Unmarked: the politics of performance. London; New York: Routledge.
ROZZONI, Claudio. 2018. «Photographic Agents. Jorge Molder: Detective, Magician, Actor.» Editado por Fabrizio DESIDERI e Maddalena MAZZOCUT-MIS. Aisthesis: Pratiche, Linguaggi e Saperi Dell’estetico, Aesthetics of Photography, 11 (2): 87–99. https://doi.org/10.13128/aisthesis-23818.
ROZZONI, Claudio, e Jorge MOLDER. 2018. «Jorge Molder: “I’m a Photographer in Particular”. Interview with Claudio Rozzoni». Aisthesis: Pratiche, Linguaggi e Saperi Dell’estetico, Aesthetics of Photography, 11 (2): 7–14. https://doi.org/10.13128/aisthesis-23858.
Videografia
3Sat. 2003. Jaap Blonk Dada Vocal performance. TV Show. Alemanha. https://www.youtube.com/watch?v=_2qOO5ersWU.
MACEDO, Pedro. (2012) 2014. «Jorge Molder». Documentário. Entre Imagens. Lisboa: RTP. Entrevista por Sérgio MAH. https://www.rtp.pt/programa/tv/p30791/e9.
A consultar:
MAH, Sérgio, Joaquim COUTO, Álvaro Brito MOREIRA, Jorge MOLDER, e Rafaela BERNARDO. 2017. Jorge Molder: “jeu de 54 cartes”. Traduzido por Laura TALLONE e José Gabriel FLORES. Santo Tirso: Câmara Municipal de Santo Tirso.
MIEC, e Jorge MOLDER. 2017. «Jorge Molder: Jeu de 54 cartes.» Folha de sala. Santo Tirso: Museu Internacional de Escultura Contemporânea. http://miec.cm-stirso.pt/.