Apagões escritos
Veio a lume 1, no carbon copy da internet, mais uma obra de Bruno Ministro 2, uma inscrição que, de tão reiterada e queimada nas impressoras deste mundo, passou à condição de símbolo, agora reobservado e desmontado pela habitual postura zarolha do Autor, olhando de viés discursos retilíneos e claros, asséticos (embora não a ponto de o branco se confundir com o vazio). Em inglês – e “na América” –, como manda a lei, This page intentionally left blank (MINISTRO 2018b) pode ser adquirido numa plataforma online. 3
“Este livro é sobre livros, plataformas (digitais ou não) de auto-publicação e redes sociais (digitais ou não) de auto-promoção.” (MINISTRO 2018a)
Estas páginas resultam de uma manifestação intencional do Ministro com vista a achocalhar a aceitação tácita de uma enunciação que, para além de oca, é falsa à partida. As páginas mentem oficialmente entre cada capítulo, numa escrita que conspurca folhas em branco com o tormento da inscrição que nunca as deixa em branco.
Pensar-se-ia que o logro poderia ser extensível à responsabilização individual – Autor, as tuas folhas mentem! –, mas, paradoxalmente, no próprio local da Autoria subjetiva – O LIVRO –, estas folhas são terra de ninguém; abundantemente párias, elas exercem a sua deceção precisamente nos livros que mais advogam a verdade do seu conteúdo. Sem o saber, a Academia é minada no terreno das impressoras por um receio (pânico!) de que uma falha técnica rache uma verdade. Impediu-se tal desgraça não só com uma intromissão enfártica (entre capítulos, o interstício mais frágil de qualquer tese) na linha interna e sacra do raciocínio dos Académicos Autores, mas – azar dos azares – com um adágio oximorónico que – tal qual um vírus – reitera e multiplica a sua premissa falsa.
Bruno Ministro selecionou uma dessas células entre os milhares de This page intentionally left blank disponíveis no Portable Document Format mais próximo e esquartejou-a de tal forma que, na paradoxal multiplicação de páginas decorrente da sua diminuição, permitiu a ascensão da frase-folha ao estatuto burocrático de livro, com o seu devido valor comercial:
O número de páginas da publicação corresponde ao número mínimo exigido para que o livro tenha uma encadernação com lombada. O preço de venda ao público é o mínimo exigido pela plataforma em que se publica, valor estipulado de forma automática tendo em vista a garantia das percentagens de lucro devidas àquela empresa pelos conteúdos gerados pelos utilizadores (autores?). (MINISTRO 2018a)
Encontramo-nos perante uma crítica não-velada – aqui, nada é velado, numa lógica snowdeana de exposição – ao mercado editorial, ao tipo de publicação, aos tubarões das plataformas e às exigências de autoria, produtividade e competitividade. No empreendimento de (auto-)promoção do livro, as plataformas concedem o serviço de coleção de dados e respetiva coleta pelos seus serviços, aliciando com autoria e validade qualquer publicação, estabelecendo preços e valor de mercado. Bruno Ministro conseguiu um preço para o vazio: (abaixo, onde se lê Martinez, poderia ler-se Ministro:)
Un libro sería, entonces, un canal que permite este flujo sin ninguna discriminación ni corrección, es decir, sin criterio editorial. Es esa condición de su escritura, creo, la que inicialmente detonó mi interés por vincularlo con Juan Luis Martínez, quien también apila materiales prestigiosos y degradados para poner a prueba las expectativas de coherencia y legibilidad. En ambos casos, asimismo, uno percibe que se trata de proyectos que, una vez iniciados, se le fueron de las manos a sus autores, como el mismo Martínez lo hizo ver: “en este último trabajo en el que estoy he dejado que el libro se autogenere. Yo he ido cumpliendo con una función de instrumento del lenguaje” (Martínez 2003, 81; apud (CUSSEN 2016, 37)
Considerando o número de ocorrências de This page intentionally left blank, poderá cada um deles reclamar a sua precedência e clamar por dividendos? Estará o Autor a plagiar despudoradamente milhões de livros com essa inscrição? Mas, hélas, quem foi o primeiro livro ou editor a inscrever This page intentionally left blank? 4 Ao (re)usar esta formulação de Bruno Ministro, copio eu a sua frase em particular ou a de todos os outros? Quem estou, afinal, a citar? A intencionalidade partilhada do autor?
Provavelmente já alguém fez um livro parecido ou igual mas este está assinado por mim, publicado por mim na Lulu e promovido por mim neste post da minha conta pessoal no Facebook. Já viram? (MINISTRO 2018b)
Por outro lado, é Bruno Ministro, na realidade, um Autor? Deverá ser-lhe cobrado o plágio de This page intentionally left blank ou a autoria do seu desaparecimento? Analisemos então estas páginas infamemente formigadas.
página dois (3)
A segunda página (pg. 2, pg. 3 no PDF) identifica-se através da sua relatividade geográfica entre as páginas 1 e 3, as quais nos indicam a presença segura de uma página dois. Esta é talvez a página mais inovadora e desconcertante de todo o livro: não só nos acomete com a sua pornográfica brancura de carnes, como simultaneamente se apresenta indescortinável na sua espetralidade, ausente de quaisquer inscrições remissivas que nos indiquem o caminho sólido da compreensão.
Esta página é sinónimo de concretização, a página mais real e consequente, quiçá a mais verdadeira, condicente com o título. Mas agora é que a porca torce o rabo: sob esse prisma, a obra é totalmente incoerente, pois apenas 1/32 [1/33 no PDF] correspondem à proposta temática abordada; todas as outras constituem um mero caminho pleonástico, a reiteração do “erro”, a extensão inevitável da negação do vazio.
Assim, a mais verdadeira das páginas pode não o ser de todo. É que, atentemos, a página dois, oficialmente segunda numa impressão com lombada, é manifestamente terceira no Portable Document Format [PDF]; normalmente, seguir-se-ia o curso da impressão gutemberguiana, mas o próprio Autor considera essa (im)possibilidade:
Não há versão em ebook. Se quiserem podem imprimir o PDF e guardar essas folhas numa gaveta. Ou guardar o PDF e esquecê-lo naquele diretório sombrio do vosso disco rígido onde vai tudo parar, sem retorno. (MINISTRO 2018a)
Neste segundo caso, provavelmente o mais “certo”, ficará o leitor a braços com esta ambiguidade no formato digital: uma segunda página que pode ser terceira. Mas a própria ambiguidade arrisca-se a ser terçada: e se a página dois for primeira? (Inquietação constante, esta leitura.)
Trata-se afinal da página de abertura do livro após a página de rosto: a primeira página da estória. Mas o início é uma ausência: para lá do rosto, um surpreendente vazio. Vazio que na normalidade editorial se apresenta mascarado por rendilhados de caracteres e no qual o Autor, num gesto corajoso – magnânimo, mesmo – ousa plasmar, numa escrita sem cortes, em toda a sua negritude, o verdadeiro conteúdo da obra, em exata correspondência entre referência titular e referente paginado. À partida, não será esse o caso desta página 3 (PDF); se todavia considerarmos “esta página intencionalmente deixada em branco” à letra, veremos que a página três é prenhe de conteúdo, e que as seguintes mais não são que um lento e doloroso parto de 29 páginas.
Eclipse
A letra branca só é letra pelo contraste do seu recorte na superfície negra, uma fronteira de luz: a cópia projeta o contorno da área exterior às letras. Assim, aquilo que finalmente se imprime ou destaca é uma não-frase, uma a-frase, ou seja, o negro menos a frase (N-F). (No entanto, escreve-se sempre, alguém tem de a escrever alguma vez). Ao fim ao cabo, Bruno Ministro só a escreveu efetivamente uma vez. Do ponto de vista da cópia, talvez nunca a tenha efetivamente escrito. Apenas copiado, e copiado, e copiado. E com a cópia foram-se perdendo coisas – o processo de cópia foi exercendo o seu poder de gula, que se manifesta na perda de nitidez; no caso, foram-se perdendo letras. Se o material era pouco, mais se notou a perda. Na última cópia de todas, a verdadeiramente ausente – a página 33, não revelada por Ministro, que se absteve ou não teve coragem de afirmar, ele próprio já contagiado pelo medo do vazio –, retoma-se o projeto da “segunda” página, do título afinal: This page intentionally left blank.
Na contra-capa, ou lombada final, afirma-se o código de barras, a redução simbólica de toda a sequência meramente ilustrada nas páginas seguintes. A obra poderia reduzir-se a um código de barras.
Na “folha” de rosto, exerce-se a promoção da frase nossa conhecida, This page intentionally left blank, ao estatuto de título. Ela extravasa o seu contexto habitual, passa de marginal, ignorada e pretensamente ausente a uma presença titular honorífica, com direito a ISBN e tudo. Só agora regurgitamos a incredulidade: como pode passar despercebida uma frase sozinha numa página? É esse o efeito das convenções: aprendemos a ignorar o que salta à vista…
Mas esta não é a única deslocação sofrida por This page intentionally left blank, habitualmente no centro das atenções da página. O Autor sublinha a marginalidade através da marginalidade, e, com subornos de cabeçalho, força a frase para a margem superior da página, ensaiando uma amostra de quase-vazio, o qual, apesar de todo o espaço cedido, sofrerá eterna menorização – vulgo bullying – pela presença agressiva dos caracteres superiores; padecerá de dores de cabeçalho ao longo de toda a obra.
Na contraparte inferior, o rodapé, a contagem dos números garante à folha a sequência de página, outro sinal de pertença através da sua quantificação. O cabeçalho alinha-se sempre com o número de página, ora ímpar à direita, ora par à esquerda, e a pulsação investida no virar ou correr das folhas contribui para mais um engodo que nos encaminha para os recursos de ordenação e numeração adstritos a um livro. O ritmo crescente das páginas contrasta com o decréscimo do seu objeto temático, do próprio título do livro. Os números funcionam como o próprio título: asseguram que a direção e a coerência não será descida nem corrompida – eis talvez uma crítica a apontar ao autor, que, talvez inconscientemente, se deixou cair em mais um vício de controlo informativo e narrativo, neste caso numérico.
Ceci n’est pas une pipe
Pousemos por momentos na frase – não a frase-cópia de Bruno Ministro, mas a original: This page intentionally left blank.
A frase não cessa nunca de provocar assombro, logo desde a primeira palavra. Em que é que o ‘This’ / ‘esta’ acrescenta em segurança e significado a page intentionally left blank [“página intencionalmente deixada em branco”]? É de facto desconcertante a ingenuidade com que alguém se entrega a um pronome, sentindo-se seguro na condição prévia e indicativa, particularizante, de um pronome a um substantivo, como se quisessem fechar com máxima segurança ou vincular de forma definida a página em branco à frase, frase que no entanto comparecerá noutras páginas “em branco”. Como se verá, o pronome não está adstrito àquela página em particular, mas também às seguintes e, em última análise, a todas as outras de todos os outros livros e PDF’s.
E, para cúmulo, que se possa usar irrefletidamente esta frase, muito mais e continuadamente depois de “Ceci n’est pas une pipe” gravado na tela de La trahison des images (1929) do belga René Magritte (1898-1967), tal é de facto um mistério, ou a prestidigitação e perpetuação eficaz de uma candura.
…o assombro sentido frequentemente perante La trahison des images [A traição das imagens] advém da negação de uma relação de representação que aparece, à primeira vista, como uma distorção do conhecimento. É com certeza um cachimbo que vejo, do qual parece que dizem que o não é. Nada disto é porventura certo, uma vez que, como nota Foucault, poder-se-ia crer numa certa intermitência na referência do pronome demonstrativo ‘Ceci’ [isto] que serve de índex à proposição. É que todo o signo que satisfaça uma função indexical, como sublinha Pierce, por mais que aponte na direção de um objeto ou indique a existência de de algo que seja um objeto de referência, não diz nada do seu sujeito. O índice puro, explica Pierce, denota mas não conota. Por outro lado, o ‘Ceci’ [isto] de « Ceci n’est pas une pipe » [isto não é um cachimbo] serve apenas para denotar a existência de um objeto indefinido cujo símbolo preposicional nos informa que tem a propriedade de ser o quer que seja menos um cachimbo. Ora, a ambiguidade do quadro emerge assim que o pronome ‘Ceci’ remete para o desenho, o qual, após toda a partilha com a palavra pipe, é também ele um intérprete deste objeto mundano ao qual chamamos « pipe » [cachimbo]. (LEFEBVRE 2006, [2006] 2013) traduzido do francês [TS]
A forma passiva de This page intentionally left blank, em exercício de omissão de autoria, esquiva-se a uma boca enunciante, a um agente, atingindo o recetor com toda a força do anonimato, invulnerável a qualquer ricochete, resposta, coice de reação. Torna-se mais fácil a sua integração como símbolo indicativo concentrado no oco da página.
Printing matters
A pg.3 (PDF 4) apresenta o supremo contraste: depois do real vazio, a intenção programática desse vazio, com todas as letras. A partir daqui, a expetativa provoca um breve trompe l’oeil, dando a ideia, à primeira vista, da completude da frase, de uma rotina de significado. Mas rapidamente se dá conta da obliteração, e esse desaparecimento ocasiona a leitura lúdica, um peddy-paper de sentidos.
“ …de igual modo se poderia olhar para o material opaco remanescente, para o inescapável resíduo de matéria física recalcitrante deixada para trás quando certas inscrições não ocorrem como esperado. Na ausência de inscrição, o substrato pode ser visto não como um significado transparente, mas como um objeto de pleno direito, repleto com as suas propriedades materiais, histórias e potencial de significado/ significante. O ponto importante é então não tanto o jogo de presença e ausência que tem animado os estudos de inscrição, mas antes a consciência recursiva de que todo o significado é em si mesmo também um signo. As rasuras obliteram, mas também revelam; as omissões dentro de um sistema permitem que outros elementos transpareçam de forma mais clara. (DWORKIN 2013, 18)
Tudo isto é corroborável em This page intentionally left blank, não só no afunilamento ou isolamento da frase, órfã de referente, de contraponto, de outras páginas cheias repletas de texto, como também no plano da obliteração direta e implacável, revelando não só novos sentidos já latentes na primeira proposição, como também novas relações sígnicas na materialidade da página.
O que é uma página em branco cem anos depois de Branco sobre Branco (1918) de Kazimir Malevich? Um erro de impressão (cf.(SMALLWOOD 2016) . Um Pierre Menard 5 desta vida aplicou então o selo de garantia de brancura com a indicação de página em branco: esta só é verdadeiramente branca quando escrita.
A celebração da transparência, na qual fisicalidade e materialidade se pretendem remotas, constitui uma prática perniciosa alicerçada na pior espécie de negação ou denigração da nossa condição corpórea. (…)
Recuemos ao conceito literal de materialidade e imaginemos uma leitura desta página que examina todos os seus elementos numa lista numerada de entidades. Cabeçalho, número de página, corpo do texto e – ? espaço branco. Pensemos de novo, os espaços na página não são entidades, elementos intactos que possam ser removidos da página como coisas. As dimensões da margem criam um campo que tem uma certa ponderação, peso, tal como a lacuna entre o cabeçalho e a primeira linha do texto tem uma força vetorial, distinguindo um elemento do outro num sistema textual. (DRUCKER 2009, 7–8)
Imaginemos um livro de capa dura, com as 32 palavras mínimas que lhe mereçam uma lombada. Na verdade, esta obra nunca saiu de um sistema (digital), vive apenas numa bolha de abstração, em formato nómada (PDF), na promessa de uma impressão. Poderemos ir à reprografia e imprimir as trinta e duas (33) páginas. O resultado seria diferente? Provavelmente não – já estamos tão habituados a que um modelo seja consequência de outro, que a hipótese de nunca ver a luz do sol não impede o reconhecimento do objeto potencial. Se o livro sobrevive na sua representação em formato PDF (Portable Document Format), deixará por isso de ser livro? Ou, melhor ainda, se foir nado e criado em PDF, permanecerá um belo não-livro de 32 páginas com direito a lombada e valor comercial?
Desfolhada
This page intentionally left blank
Na página 4 (PDF 5) This passa a his, mantém-se o pronome, personaliza-se o referente, a página torna-se cedida por um outro, masculino, que empresta a sua página branca à coletânea de This page intentionally left blank. Segue-se nova omissão (página 5, PDF 6) gráfica: dado que a linguagem consegue sempre novas partículas de sentido, aqui a ausência de duas letras coloca a frase em cheque com uma pergunta.
Pg.6 (PDF 7), s page: a página s substitui numeração por letra – S na posição 20 –, ligação geminada com a página 20 (PDF 21) “ally left blank”, o que daria “Sally left blank”, uma aliada em branco, o fantasma da ghost writer de Ministro: Sally. Outra hipótese, igualmente lúdica, remete para uma duplicação: s como abreviatura de Seite (página, em alemão): “página página em branco”.
s page intentionally left blank
Na pg.7 (PDF 8), voltamos à secura da informação, da nota que se supõe funcional – qual a função, ao certo? Coexiste uma certa tranquilidade pela ausência do pronome, o permite à página branca espraiar-se sem mais pertenças ou conflitos, num simples page intentionally left blank.
Todo esse relaxamento se perde na página seguinte. A pg. 8 (PDF 9) conduz-nos um enorme lago enevoado que nos absorve toda a caracterização: sem idade [age], perdemos as referências anteriores e posteriores, condenados a uma espécie de infinito da página, a uma idade embranquecida pela eternidade.
age intentionally left blank
há toda uma reflexão sobre a idade da ausência e a idade da brancura, questões sobe o tempo que o autor não descura. Reveja-se a intencionalidade da idade, da concisão com que nos ataca, do fundo da sua alvura. Esta é, talvez, das páginas mais nostálgicas de toda a obra.
Na pg.9 (PDF 10), treslê-se ‘je’, evocando a crítica francesa do sujeito alterado pela curvatura e peso do pensamento, de tal modo que deformaram o j, transformando-o num g. A pontinha do i era a pedra que Sísifo acartava, essa caiu, e ele, desesperado, curvou-se para a apanhar, procurando ainda enganchar a ponta inferior de modo a repescar a ponta do i, do círculo, do esférico negro. Mas sem sucesso, osteoporoso, ficou remoendo a opacidade, o oco de si mesmo… uma subjetividade atraiçoada pela letra que, tomada de tanta intenção, apagou a memória de si.
ge intentionally left blank
E se, perdidos no nevoeiro, encontrarmos um vulto? Uma silhueta de nome Vazio [blank] que viesse ao encontro deste pobre ‘je’ / ‘ge’ isolado. Pode todavia acontecer que ‘je’, em vez de ser deixado em branco, deixe, ele mesmo, num volte-face gramatical, o próprio vazio; assim, o sujeito afastar-se-ia do Vazio ao encontro de sabe-se lá que outro abrigo. Esta seria desse modo uma página extremamente esperançosa, não fosse a ameaça do primeiro encontro com V.
e intentionally left blank
Na página 10 (PDF 11) plasmam-se os tempos da internet, do digital, com a intenção aleatória relegada para uma vontade do algoritmo, uma e-intencionalidade, fruto das ‘escolhas’ do utilizador e posterior recolha pelo sistema. Este patamar da obra só demonstra a atualidade e a consciência com que o autor Ministro enfrenta a sua envolvência. Foneticamente, e– e i(ntentionally) assemelham-se, resta saber acabam por prolongar a virtualidade do digital (e-) ou o i- marcado da intencionalidade. Talvez seja afinal um mero gaguejo: “i-i-i-intencional”.
Por outro lado, se a intencionalidade foi vazada, talvez a possamos preencher a posteriori, como um balão: encher a intencionalidade de não-vazio, enorme: assim é o e-mundo, ou melhor, e-universo.
intentionally left blank
Intentionally left blank [pg.11 (PDF 12)] é talvez das afirmações mais abrangentes do livro – tão reconfortante como a página 7 –, com o predicado a disparar sozinho para todos os lados: não se sabe o que deixou ou quem. A ênfase no “left” sugere uma saída do vazio ou, no pior dos casos, uma saída para o vazio. Topograficamente, o lado esquerdo foi esvaziado, remetendo-se a escrita para o lado direito, marcando assim uma coincidência fortuita entre a semântica e o layout, sob benesse da aleatoriedade.
ntentionally left blank [pg.12 (PDF 13)] leva o leitor à potência máxima da tenção (Lamenta-se a gralha: falta o hífen entre “n-tentionally” que espoleta a força infinita do advérbio na determinação sinistra da inscrição). Sonoramente, poderá ocorrer arcaísmo que esconda um potencial i por detrás do n, mantendo-se assim o resultado da inscrição de “intencionalidade”, pese embora sem todas as letras, reforçando deste modo o poder da linguagem em manter significados mesmo depois de desaparecidos.
Aliás, a revelação do invisível é central em outros trabalhos de Bruno Ministro, como por exemplo as Obras Completas (2017), fruto da incansável recolha e impressão de informação embargada ao próprio leitor e criador dessa informação excrescente (registo de pesquisas de utilizador num dado motor de busca), dados sempre crescentes engolidos pela política digital e escondidos do internauta.
Dir-se-á portanto que o rumo do autor sofreu uma tremenda reviravolta, já que This page intentionally left blank excita a transparência. No entanto, paradoxalmente, This page intentionally left blank torna notável algo que todos os leitores descuravam enquanto informação (eventualmente) dispensável, trazendo à visibilidade lacunas do sistema, os pequenos nada que ocupam todos os espaços presentes….
En consonancia con Kittler, Lev Manovich discutía en El lenguaje de los nuevos medios de comunicación la creencia común de que no existe pérdida de calidad en las copias digitales, pues las limitaciones del software y el hardware obligan a una compresión para poder almacenarlas: “mientras que, en teoría, la tecnología informática supone la duplicación perfecta de los datos, su uso real en la sociedad contemporánea se caracteriza por la pérdida de datos, la degradación y el ruido” (Manovich 2006: 102-3). (CUSSEN 2016, 39)
Após reduções-variações de elementos anteriores (pp.13-15), tudo se encaminha para uma ideia cada vez mais depurada do advérbio de intencionalidade, sendo que até as pequenas partículas são adverbalizadas: “ião” (pg.16, PDF 17) passa a ião-mente, e rapidamente se evolui da célula para o sujeito, de um ião para um eu [“i”] também ele (eu) em memamorfose: eu-mente [“i-onally”].
onally left blank
Se “o” romper em leitura de “a” (em corruptela de “onally”, tal como antes a falta do hífen n-), leremos em “annally” o cu da frase e do mundo e seu consequente esvaziamento. Esta diarreia justifica a ausência de tinta, canalizada para outro lado, como a capa, por exemplo. Mas por que esfíncter se afunilaram as letras e a respetiva matéria? Com o estômago feito n’1 oito, abandonamos a página dezoito…
…ao encontro de Nally que, lido Nelly, se apresenta como diminutivo de alguém que nos deixou em branco. Abandonado o “n”, lendo Ally como Alley, enveredamos por vielas vazias e enevoadas em busca de uma aliado [“ally]. Também este seguiu o seu caminho, não sem nos deixar parte de um cobertor: um blank(et).
(…)
y left blank
“Y left”: y, sujeito anónimo, saiu [pg.23 (PDF 24)]. Mas por que deixou cá o vazio? [y/why left blank] O que fazer com tanto branco, ainda para mais nestes tempos de contenção ecológica e “pondere bem antes de imprimir esta página”? Este branco que cresce é a antítese de uma Antártida descongelada, é antes uma duna que conquista terreno, uma morte assistida da página por ausência (crescente) de sinais vitais de texto. Em breve a página se esvairá em brancura, nas grandes planícies da não-existência textual.
left blank
O vazio esquerdo [pg.24 (PDF 25)] é paradoxalmente assinalado, com toda a lata, do lado esquerdo.
Por seu lado, esquerda branca é contrariada de novo pela presença da sua contra-indicação: um lado esquerdo não deixado incólume, por causa daquelas duas palavras que sinalizam precisamente uma esquerda vazia. (Politicamente, este falso atestado de brancura à ala esquerda desequilibra as coisas no hemiciclo.)
ft blank
A abreviatura ft [pg.26 (PDF 27)] apresenta [‘featuring’] o estrelato da lacuna, do vazio, do branco, como aliás tem sido apanágio de toda a obra. Pouco depois, tal evidência é atirada de forma lacónica, bruta e impaciente, à queima-roupa [“point-blank”] na pg.28 (PDF 29), sujando o vazio com a expressão desse vazio: blank, PUM!:
blank
Contagem decrescente:
Disparada a bala, a partir daqui é só vertigem: contagem decrescente para o nada e para a expetativa de uma folha que se avizinha realmente vazia. Quatro, três, dois, um: l a n k, já a separamos de antemão, desmembrando perversamente o que resta. Três letras, já quase não ligo ao significado.
ank, um atalho de teclado
nk, um código de país não atribuído.
k, o senhor K., imperador dos labirintos e das imbricadas respostas em branco.
Aqui chegados, a página em branco é-nos negada.
página trinta e três ( )
Depois de todo o acompanhamento, letra a letra, a par do paliativo escorrente do PDF que (em scroll) retarda o desaparecimento de cada página anterior, atenuando a rasura total, o inevitável e anunciado desaparecimento do texto, depois do voyeurismo alongado, eis que o resultado esperado, nulo, cede à lógica que propriamente originou a enunciação de This page intentionally left blank e que provocou o seu esquartejamento por Ministro: a negação do vazio.
No caso, evita-se antecipadamente a possibilidade de lacuna com truncagem de uma possível página 33. Resta saber se uma só página 33 apaziguaria a sede branca das 32 anteriores. Talvez fosse necessária uma 34ª. Por outro lado, quão necessário é exprimir a lacuna [blank] sob forma de página? O vazio pode ser tudo o que excede This Page Intentionally Left Blank.
This page intentionally left blank (2018-11-27), de Bruno Ministro, pode ser adquirida aqui pelo valor de 4,28$ [3,79 €].
Outras páginas brancas:
Tristram Shandy
Na secção «Blank Pages» [Páginas em Branco] de um livro inteiramente dedicado à página, The Self-Reflexive Page [A página auto-reflexiva] (2010), Louis Lüthi dá como testemunho três páginas de The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman (≈1759) do irlandês Laurence Sterne (1713-1768):
Tristram dirá mais tarde: “Livro triplamente feliz! Terás pelo menos uma página aí dentro que a trapaça não escurecerá e que a ignorância não desvirtuará.” A segunda e terceira páginas do volume nono estão intituladas como capítulo 18 e 19, mas deixadas em branco por Tristram, que só no capítulo 25 revela a razão: “Que sirva de lição ao mundo, “deixem as pessoas contar as histórias à sua própria maneira.””
(…) No entanto, a verdadeira razão para a sua omissão, tal como acontece em várias passagens no livro substituídas por uma série de asteriscos ou travessões de vários comprimentos, é meramente a de insinuar que cenas impróprias estão a decorrer. (LÜTHI 2010)
Lüthi alvitra ainda a diferença entre páginas brancas de épocas diferentes, chamando como exemplo do século XX Gordon Lish (Arcade, or How to Write a Novel, 1998) e Jonathan Safran Foer (Extremely Loud and Incredible Close, 2005) com páginas remissivas para textos que lá “deviam estar”.
Not Writing
Em 2013, o centro de arte contemporânea Akbank Sanat em Istanbul organizou um concurso de curadoria intitulado, justamente, This Page Intentionally Left Blank, e cuja proposta temática partiu do ensaio “The Gesture of Writing” [“o gesto da escrita”] (1991) de Vilém Flusser e da sua lista de elementos necessários à escrita, sendo o primeiro uma superfície branca.
A vencedora dessa edição do concurso foi a dinamarquesa Marianne Holm Hansen, com a obra Typing (Not Writing) (2011) – uma versão rasurada da página. Aliás, a rasura é central à sua obra, basta consultar a sua biografia.
this sentence wishes it were written by somebody else
Cia Rinne, nas suas Sentences [Frases] (2019), opta por variações semânticas:
Everything disappears
“Gosto que a imagem possa seduzir, tenho a pretensão de englobar o espetador na obra. Isso acontece, julgo, até nos desenhos monocromáticos nos quais inscrevi fragmentos de canções pop ou rock. Enquanto as tentamos ver ou reconhecer, a partir das nossas memórias musicais, refletimo-nos naquelas superfícies. Convocam-nos, enquanto tentamos decifrar o que está ali, vemo-nos ao espelho.” ONOFRE apud MARMELEIRA 2019)
Se em Bruno Ministro a frase é metodicamente desmontada, em Skull (2003) de João Onofre o esvaecimento de Everything disappears é aplicado quase “em tempo real” – a evidência pleonástica da cegueira é constatada no momento da observação.
O potencial lúdico é infinito. Eis mais uma versão acizentada de uma página web deixada em branco.
E aqui um post sobre o assunto e o respetivo o assunto [abstract] do post:
Comum em todas os campos de publicação, a frase “This Page is Intentionally Left Blank” tem sido encontrada em artigos académicos revistos que custam 30 $ a aceder. Para nosso conhecimento, este artigo representa a primeira recensão conhecida de Páginas Intencionalmente em Branco (PIB) [Intentionally Blank Pages (IBPs)]. Analisámos as variações em amostras de literatura existente, e quantificámos os níveis de brancura em tais páginas, aplicando uma nova medida, o Índice de Maculação de Brancura [“Blankness Defect Rate” (BDR)] (WRIGHT et al. 2014)
Bibliografia
CUSSEN, Felipe. 2016. «De La Fotocopia Al Pdf: Juan Luis Martínez y Tan Lin». Estudios Filológicos, n. 57 (Junho): 25–41. https://doi.org/10.4067/S0071-17132016000100002.
DRUCKER, Johanna. 2009. «Entity to Event: From Literal, Mechanistic Materiality to Probabilistic Materiality». Parallax 15 (4): 7–17. https://doi.org/10.1080/13534640903208834.
DWORKIN, Craig Douglas. 2013. No medium. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press.
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