João Onofre na Culturgest: Baladas de um coveiro

Tony Smith (modelo em 1962, fabricado em 1968) Die

“Six foot under. I didn’t make a drawing; I just picked up the phone and ordered it.”
Tony Smith sobre Die

Um cubo de 6 pés em ¼ polegadas de aço laminado a quente com escoramento interno diagonal”, sendo as dimensões determinadas pelas proporções do corpo humano. Estas são também as dimensões da caixa às portas da Caixa [Geral de Depósitos], antecipando assim – fazendo caixinha – o jogo de referências encaixotadas que atravessa toda a exposição de João Onofre. Como uma matriosca, mas invertida: figura(çõe)s encobertas por covers sucessivos.

Apneia aural (six feet under inside)

Onofre avançou para lá da perceção volumétrica exterior e abriu a caixa DIE de Tony Smith, testando sonoramente a sua blindagem. Antes de inserir o máximo de decibéis, isolou-a como uma câmara anecóica, que se tornou famosa através do testemunho de John Cage (“John Cage, a visit to the anechoic chamber.”):

Se Cage percecionava a negação ou impossibilidade de silêncio absoluto dentro da câmara, aqui a experiência interior testada por Onofre reflete-se também no exterior (à semelhança do cubo de Smith, que só se manifesta na sua exterioridade), com o público a avaliar a dimensão acústica desta Box sized DIE. Fechada a caixa, o público nada ouve e nada vê, arrulhando em torno daquele monólito metálico, aguardando por um desfecho.

Stanley Kubrick (1968) 2001: A Space Odyssey

A espera atua inversamente a 4’33’’, num decrescendo de vozes associado à dispersão do público, até quase atingir o silêncio… de Cage: ruídos de fundo da cidade em trânsito.

Enquanto isso, dentro da caixa consuma-se uma tour de force entre ruído e oxigénio. Nos 6 pés cúbicos estão cinco músicos dos Holocausto Canibal. Para além do radical contraste entre a banda mais ruidosa no espaço mais silencioso, há ainda a dimensão fatídica – do cubo e da banda –, na relação direta entre silêncio e morte: six feet yonder à superfície clamam pelos six feet under [seis pés abaixo de terra] iniciais, ameaçando agora uma mancheia de músicos dentro de caixa – inside the box –, a toque de caixa, que berram até à morte. A banda portuense tem como tarefa tocar e cantar até lhes faltar o oxigénio, enquanto que os espetadores – outside the box – aguardam pelo resultado final. Ninguém acredita mesmo que a banda vá acabar extinta, mas a verdade é que já poucos estarão lá para ver. Em paralelo, na outra Caixa, tem lugar a vernissage.

Tanto Cage como The Rolling Stones, Silence e Satisfaction anunciam a rutura no processo de criação musical, o fim da música como atividade autónoma devido a uma intensificação da ausência no espetáculo [an intensification of lack in the spectacle]. Eles não representam o novo modo de produção musical, mas antes a falência do antigo. (ATTALI 1985, 137)

Attali fala da falência [liquidation] dos velhos modos de criação. Na exposição, quer os pontos de partida sejam obsoletos ou não, é sempre aplicado um processo de recuperação que sublinha, na sua presentificação, a nostalgia das primeiras referências. Essa restauração ocorre sob a forma de tema e variações, muitas das vezes cantando.

No que toca a intensificação da ausência, nada mais explícito que uma banda de heavy metal enclausurada. Este arrumação ou abafamento da banda metal tanto pode ser uma uma paródia de limpeza social, como a sua afirmação. Seja como for, não deixa de ser divertido. Aliás, estes contrastes – entre o extremamente cândido e o irremediavelmente soturno, entre a impossibilidade de perceção de outros mundos ou do mundo em si, ou entre uma formulação, leitura, consumação e o seu impedimento – são fonte do humor, pedra de toque na abordagem à exposição.

“Gosto também que haja mais humor nas peças. Produz mais sentido que a ironia, que para mim deixou de ser interessante. Com a elaboração dos projetos, ao integrar elementos da cultura popular, a minha posição foi-se tornando menos cínica, mais calorosa.” (Onofre apud MARMELEIRA 2019)

Os Holocausto Canibal tocaram no dia da abertura da Exposição de João Onofre na Culturgest, depois de um concerto de Norberto Lobo, Bruno Pernadas e Marco Franco: Montanhas Azuis: A Ilha de Plástico. Norberto Lobo é também mais um participante esconso – continuando o jogo – numa das obras de Onofre: Vox (2015).

Corte de respiração

Aqui o corte não corta, antes seleciona e realça a presença para além da guitarra: a respiração frásica, o debruçamento sobre as cordas e o microfone que capta não apenas a técnica, mas também o homem por detrás do instrumento. Tudo isto nas respirações do Carlos Paredes, agora recortadas de forma soluçante e dadas a ouvir por duas torres (colunas) em modo esquizofrénico, numa sala escura. A peça “foi criada a partir dos álbuns “Guitarra portuguesa” (1967), “Movimento Perpétuo” (1971), “Espelho de Sons” (1987), “Asas sobre o Mundo” (1989) e “Canção para titi – Inéditos de 1993” (2000). (…) Ao longo de 14’12’’ é audível toda a atividade respiratória de Carlos Paredes, nos seus cinco álbuns autorais gravados em estúdio“, segundo Ana Cristina Cachola (SHOWBIZ 2016).

Carlos Paredes não gostava de ouvir essas respirações, considerava-as um erro. “Pelo contrário, para mim eram muito interessantes. Continha a pulsão vital daqueles temas. Só com aquelas respirações pôde haver aquela interpretação. (…) Trabalho também com a música ou com as canções para desvelar qualquer coisa que está nelas latente. Como a ideia de duração interminável no vídeo em que utilizo o sucesso pop La Nuit n’en Finit Plus, de Petula Clark, e até no Carlos Paredes, em que as respirações não são assim tão óbvias”. (Onofre apud MARMELEIRA, 2019)

A perceção das respirações do Paredes, e depois as do Público, com os estetoscópios, precede o karaoke e os LP’s; como uma ante-respiração, uma chegada à respiração enunciada pela escuta aguda dos outros. Não basta só ouvir a melodia de um outro ou imitar o seu canto, ou até o processo do outro, de como o outro canta, mas, mais do que isso, mais próximo ainda, perceber a respiração.

Podemos de igual forma ensaiar o exercício de captação das respirações, emulando o processo de escuta de João Onofre, embora aqui não de forma tão drástica, uncut:

Carlos Paredes (1980) Concerto em Frankfurt – 05. Canto De Rua

Duplo Estetoscópio

Ouvir a respiração do outro implica escuta sôfrega e repetida, um estado de atenção que vai ao encontro do coração do outro: é isso o cantar de cor (savoir par cœur, by heart), respirar as canções, seguir a sístole de um karaoke, partindo depois para a autonomia de uma versão, um cover.

Mais à frente no trajeto da exposição, encontramos numa banca um estetoscópio siamês: dois visitantes podem ouvir o interior um do outro – Untitled, 1997 –, partilhar os batimentos do seu corpo.

Estetoscópios e auscultadores permitiram o isolamento dos ouvintes num “mundo de sons” e o foco nas várias características dos sons presenciados. Assim, já em 1820 R.T.H. Laennec, o inventor que primeiro popularizou o estetoscópio, caracterizava a audição [listening to] – sem estetoscópio – do corpo de um paciente como imediata [immediate], querendo assim conotar a “falta de mediação adequada” [“lacking in the proper mediation”]. (STERNE 2003, 24)

A ‘mediação adequada’ de Laennec não é imediata; paradoxalmente, o i desaparece com a amplificação, orientando-se para uma escuta mediata,“que não toca, não se aproxima ou não se executa diretamente (por haver outro de permeio)”. Tudo nesta exposição é mediato ou parte de um exercício imediato que, na consumação artística, se apresenta mediato. Neste processo-filtro de rememoração, encontramos novas inspirações/ respirações, não só das obras como dos próprios visitantes e da sua relação física com os elementos expostos. Aos elementos intitulados “sem título” [Untitled] na folha de sala apõem-se as obras sem legendas na sala, compondo o objeto a sua própria mediação. Parte-se para a obra como para um karaoke.

João Onofre explica os intítulos (entrevista à Antena 3, Razão de Ser)

 

Bocas de sombra: karaoke em chiaroscuro

Boca de sombra [shadow mouth], um nome oblíquo para a Musa, atenua a noção herdada de exaltação e inspiração. A boca de sombra está próxima do murmúrio da matéria [the mutter of matter], o gorgolejo não redimido da iluminação. Ou será o seu fulgente desespero? Enrolado no contexto enunciador de caráter poético, o poema é como uma língua fantasma bruxuleando fora da boca de sombra [like a phantom tongue flickering out from the shadow mouth], pronta a devorar e plena de descaramento. (RASULA 2009, 10)

Esta podia ser uma definição de karaoke (“palavra japonesa, de kara, vazio + oke, redução de okesutora, orquestra”) – à letra,  um vazio de orquestra: as vozes não só preenchem ou tentam preencher esse vazio, como também são expressão desse vazio. Vazio que ora é nevoeiro ora escuridão, ambos esvanecentes, em jogo de luzes – entre a noite e o holofote – que acompanham os exercícios de canto e eco da letra, entre desenhos que se apagam perante o leitor e os temas notívagos de LPs a preto e branco. Como se num chiaroscuro sonoro.

A dada altura, Jed Rasula recupera Victor Hugo e o seu poema “Ce que dit la bouche d’ombre”, alimentando o seu argumento de construção musal, via voice-over. A voz que se ouve na memória (do ‘original’) e que se reproduz, em dupla boca de sombra, soa no karaoke, lugar de presentificação vocal do afeto. “E agora, homem, sabes por que tudo fala?

Non, l’abîme est un prêtre et l’ombre est un poëte ;
Non, tout est une voix et tout est un parfum ;
Tout dit dans l’infini quelque chose à quelqu’un ;
Une pensée emplit le tumulte superbe.
Dieu n’a pas fait un bruit sans y mêler le Verbe.
Tout, comme toi, gémit ou chante comme moi ;
Tout parle. Et maintenant, homme, sais-tu pourquoi
Tout parle ? Écoute bien. C’est que vents, ondes, flamme
Arbres, roseaux, rochers, tout vit !
.
Tout est plein d’âmes.
.
Victor Hugo (1855) “Ce que dit la bouche d’ombre” [excerto]

“Um pensamento” – ou uma canção, no caso – “preenche o soberbo túmulo. (…) // Tudo, como tu” – como nós – “ geme ou canta como eu”. Assim Victor Hugo – apud Breton apud Blanchot apud Rasula, tal como as referências de Onofre, em caixinha matrioscada –, assim Onofre. Da terra escura à noite em foco de luz, em lento movimento de translação da câmara entre um subaquático e uma abóbada celeste, acompanhando o solo da jovem sobre o naufrágio da vala comum que canta, inocentemente, a sua insónia infinita. Do subterrâneo ao aéreo, em chiaroscuro visual e sonoro de voz e perfume – “tout est une voix et tout est un parfum” –, a canção da terra é exumada na sublime a elevação da câmara; o vídeo torna-se quadro, num lento loop que interliga duas concavidades opostas, relapidando sombras de boca e som. Esse vazio, ‘sombra’ de boca, lábios retirando da lápide uma canção morta, dando-lhe luz do seu túmulo, acontece em Untitled (n’en finit plus), 2010-2011:

“Não sou um adolescente, canto mal, não sei tocar instrumentos. Mas, por outro lado, gosto que o conceito da peça esteja operativo somente com o som ou com a canção, que a obra se autonomize em termos sonoros. O conceito não se perde, fica a voz humana a cantar.” (Onofre apud MARMELEIRA 2019)

Quand je ne dors pas
La nuit se traîne
La nuit n’en finit plus
Et j’attends que quelque chose vienne
Mais je ne sais qui je ne sais quoi
J’ai envie d’aimer, j’ai envie de vivre
Malgré le vide de tout ce temps passé
De tout ce temps gaché
Et de tout ce temps perdu
Dire qu’il y a tant d’êtres sur la terre
Qui comme moi ce soir sont solitaires
C’est triste à mourir
Quel monde insensé
Je voudrais dormir et ne plus penser
J’allume une cigarette
J’ai des idées noires en tête
Et la nuit me parait si longue, si longue, si longue
Au loin parfois j’entends d’un bruit de pas
Quelqu’un qui vient
Mais tout s’éfface et puis c’est le silence
La nuit ne finira donc pas
La lune est bleue, il y a des jardins
Des amoureux qui s’en vont main dans la main
Et moi je suis là
A pleurer sans savoir pourquoi
A tourner comme une âme en peine
Oui, seule avec moi-même
A désirer quelqu’un que j’aime
pas cette nuit, pas cette nuit
Qui ne finira donc jamais
Mais j’ai trop le cafard
Je voudrais partir au hasard
Partir au loin et dès le jour venu
La nuit, oh la nuit n’en finit plus
Oh oh oh oh, oh ! la nuit ne finit plus

Petula Clark (1963) La nuit n’en finit plus

covers: canções de coeur

Estas canções que soam da terra renascem nuas (sem instrumental), por via de coveiros que não só destapam a terra como desenterram canções. Essa descoberta é sempre parcial: nem tudo é destapado – parte do que é revelado é deixado por descobrir –, e essa parcialidade tem tantas versões quantas as vozes que a descobrem. O original é algo que as Musas sopram ao ouvido – em voice-over – que logo se sedimenta em camadas de vozes e memória. A noção de original é aqui pouco relevante; tudo é encoberto – em cover –, esfumado, escurecido, ou então iluminado de tal forma que ofusca e causa cegueira.

Onofre é um coveiro artístico a quem não falta, inclusive, o indispensável símbolo funerário: um abutre no atelier – Untitled (vulture in the studio), 2002 –, procurando entre os livros e as folhas o significado da sua clausura e a apreensão do mundo exterior, pairando sobre os cadáveres da escrita – letras mortas em putrefação limpa no lugar assético da arte – estúdio, atelier, museu. O abutre, necrófago de canções, pica as letras e reaviva-as à medida que as transforma na sua exposição, recriando e reproduzindo covers, eviscerando e cosendo temas, brincando com letras de morte com a inocência de uma criança.

O atelier é o lugar de magia onde se executa esse fenómeno de receção dos mundos, deste ou do outro – Believe (levitation in the studio), 2002. O abutre procura saber onde está, mas a pesquisa é impedida pelo conhecimento/ pelos livros que caem, e nada descobre para além das paredes brancas da sala. Já outros artistas vestiram a pele da condição animal, como Alberto Pimenta junto da jaula dos macacos no Jardim Zoológico de Lisboa (31 de julho de 1977), ou Joseph Beuys na René Block Gallery no SoHo em nova Iorque (I Like America and America Likes Me, 1974). Mas aqui, em vez de ser colocado o artista na jaula, o animal é trazido para o habitat natural do artista, tal como antes os Holocausto Canibal eram enclausurados numa obra aberta de Tony Smith.

Presenciamos (e partilhamos) com o pássaro o seu processo de descoberta da arte – todo o artista será um pássaro descobrindo o espólio humano. Para além de não saber o que vai encontrar, pode também não perceber o que encontra – livros, folhas, mesas… Há um ritmo próprio na abordagem às coisas, e à respiração do Abutre contrapõe-se Paredes respirando na outra sala, em fundo.

O atelier serve de tríptico a três quadros do incognoscível, da incerteza da capacidade de conhecimento de outro(s) mundo(s), sempre por via de um medium de recuperação ou remediação de experiências outras e de referências constantes intra-obras.

Bruce Nauman (1966) Failing to Levitate in My Studio.

“As obras começam todas com um guião conceptual que me proponho seguir, mas com um sentido de indeterminação. O resultado nunca é previsível. Coloco as circunstâncias para que algo aconteça, mas não determino.” ONOFRE apud (MARMELEIRA 2019)

Num dos guiões, por exemplo, são relidas as 35 máximas de Sol LeWitt sobre arte concetual – 35 Sentences on Conceptual Art (1969) –, já antes recuperadas por John Baldessari numa performance onde as entoava segundo melodias conhecidas – Baldessari Sings LeWitt (1972) –, agora usadas e renovadas por Onofre, como se fosse a primeira vez: Like a virgin, heyCatriona Shaw sings Baldessari sings LeWit re-edit Like a Virgin extended version (2003).

Eis os primeiros preceitos das 35 Sentences on Conceptual Art de LeWitt, por Baldessari:

1. Conceptual artists are mystics rather than rationalists. They leap to conclusions that logic cannot reach.
2. Rational judgements repeat rational judgements.
3. Irrational judgements lead to new experience.
4. Formal art is essentially rational.
5. Irrational thoughts should be followed absolutely and logically.
6. If the artist changes his mind midway through the execution of the piece he compromises the result and repeats past results.
7. The artist’s will is secondary to the process he initiates from idea to completion. His wilfulness may only be ego.
8. When words such as painting and sculpture are used, they connote a whole tradition and imply a consequent acceptance of this tradition, thus placing limitations on the artist who would be reluctant to make art that goes beyond the limitations.

Agora podemos tentar cantar o Manifesto de LeWitt sobre um instrumental de Like A Virgin (1984) da Madonna, tal como Catriona Shaw na exposição de Onofre:

“É forma de agarrar o espetador com algo que já faz parte do seu museu imaginário. De algum modo, fica também ele a pertencer um pouco à obra. Esse é o privilégio de usar a pop ou coisas do domínio popular. Mas entendo a música tal como entendo Bruce Nauman. São coisas sobre as quais posso trabalhar. Não é tanto uma apropriação, mas um uso.” (Onofre apud MARMELEIRA 2019)

Ou, como LeWitt escreveu: 14. The words of one artist to another may induce an idea chain, if they share the same concept. O exercício é extensível a outras áreas, o resultado é sempre recreativo. Mas ninguém garante que toda a gente aguente até às 35ª frase: 35. These sentences comment on art, but are not art. No caso de Onofre, os comentários à arte são a sua arte.

Once in a lifetime, water flowing underground // And you may ask yourself // How do I work this?

Se tudo é efémero – everything disappears [Skull, 2003] –, o que remanesce? How do I work this? Resta a reconstrução prazenteira das referências, citações e falhas de memória, restaurações que se transformam em momentos únicos aquando da tentativa de reprodução de um momento original anterior: todo um processo de aproximação e recuperação que se torna uma outra coisa, em si um novo original. Assim, também também as gravações originais citadas são remetidas para a condição de efemeridade evanescente, de novo na circularidade obsolescente das referências.

Este eterno ‘repeat’ – modo de escuta do artista –, como o título da exposição, perpetua, em oxímoro, aquilo que apenas acontece “uma vez na vida”:

Same as it ever was
Same as it ever was
Same as it ever was
Same as it ever was
Same as it ever was
Same as it ever was
Same as it ever was

Talking Heads (1980) Once in a Lifetime [excerto]

João Onofre repete Once in a lifetime [repeat]; curadoria de Delfim Sardo:

Os movimentos cíclicos não são exclusivos à tecnologia, mas o botão do ‘repeat’ e a exacta repetição de um som ou vídeo provocam o conforto de uma constância e a ilusão da sua eternidade. Paradoxalmente, o que os vídeos nos mostram são pessoas a tentar exumar e eternizar momentos, e a falhar repetidamente.

Logo a abrir, o encontro de Alain Delon e Monica Vitti por Antonioni: momento passageiro no filme, agora forçado à repetição, até ao cansaço dos próprios atores. São momentos de (tentativa de) captação de algo que já foi e que se presentifica a cada momento – como a respiração no estetoscópio.

“Gosto que a imagem possa seduzir, tenho a pretensão de englobar o espetador na obra. Isso acontece, julgo, até nos desenhos monocromáticos nos quais inscrevi fragmentos de canções pop ou rock. Enquanto as tentamos ver ou reconhecer, a partir das nossas memórias musicais, refletimo-nos naquelas superfícies. Convocam-nos, enquanto tentamos decifrar o que está ali, vemo-nos ao espelho.” (Onofre apud MARMELEIRA 2019)

Decifrar a imagem é procurar o outro que se esfuma à nossa frente – nós próprios – e, através da nossa voz, a voz de alguém outro. Mas o encontro com um doppelgänger não é necessariamente trágico; essa relação entre fantasma de evanescência da memória sonora e gráfica toma contornos lúdicos, desde auto-referências gráficas a sessões de levitação ou a karaokes concetuais.

João Onofre (2006) Five Words in a Line (Turbo extended version)

13. A work of art may be understood as a conductor from the artist’s mind to the viewer’s. But it may never reach the viewer, or it may never leave the artist’s mind.
Sol LeWitt (1969)

O resultado é frequentemente… placado. Num palco-ringue, ao ritmo de um gospel – Untitled (zoetrope), 2019 –, as perguntas são muitas vezes obstruídas, abalroadas. Tudo precisa do seu tempo, mas agora não se pode parar:

I’ve gotta take a little time
A little time to think things over
I better read between the lines
In case I need it when I’m older
Ohhh
Now this mountain I must climb
Feels like the world upon my shoulders
Up through the clouds I see love shine
It keeps me warm as life grows colder
In my life there’s been heartache and pain
I don’t know if I can face it again
Can’t stop now, I’ve traveled so far
To change this lonely life
I wanna know what love is
I want you to show me
I wanna feel what love is
I know you can show me
Oh, oh, ooh
I’m gonna take a little time
A little time to look around me
I’ve got nowhere left to hide
It looks like love has finally found me
In my life there’s been heartache and pain
I don’t know if I can face it again
Can’t stop now, I’ve traveled so far
To change this lonely life
I wanna know what love is
I want you to show me
I wanna feel what love is
I know you can show me
I wanna know what love is
I want you to show me
(And I wanna feel) I wanna feel what love is
(I know) I know you can show me
I wanna know what love is
(Love that you feel inside) I want you to show me
(And I’m feeling so much love) I wanna feel what love is
(Oh, you just can’t hide) I know you can show me
Oh, oh
I wanna know what love is
(Let’s talk about love) I want you to show me
(I wanna feel it) I wanna feel what love is (I wanna feel it, too)
(And I know, and I know) I know you can show me
Show me that it’s real, yeah
Yeah, yeah
I wanna know what love is (I wanna know, oh, oh)
I want you to show me (I wanna know, I wanna know, I wanna know)
I want to feel what love is (I wanna feel)
I know you can show me

Foreigner (1984) I Want To Know What Love Is

Melodias de escuridão e inocência

A apropriação é, portanto, uma prática que só aparentemente desestabiliza hierarquias. Na verdade, consolida-as, confessando a inevitabilidade de velhas dicotomias. “Sempre que a arte de vanguarda se apropria de elementos da cultura popular ou de massas, trai o seu isolamento elitista e a obsolescência dos seus procedimentos produtivos”. Assim, o desejo proclamado de encurtar as distâncias entre a arte e a vida reafirma a estabilidade das divisões que permanecem no contexto da alta arte. Cada acto de apropriação cultural nega a validade da produção original e individual, e a relevância do contexto e da função específicos da prática do próprio trabalho. (BUCHLOH 2003, 350; apud MARMELEIRA 2012, 12)

Tal como Attali, também Buchloch refere um distanciamento em relação a ‘procedimentos produtivos’ ‘antigos’ ou anteriores, à ‘obsolescência’ reutilizada que perpetua as “velhas dicotomias”. Mas Onofre[n]egoceia assim uma posição intermédia” (MARMELEIRA 2012, 34–35), e apropriação traduz-se num uso que encara e desmonta as referências ao jeito de objet trouvé, ampliando ou aprofundando as características mais pronunciadas, dando-lhes continuação concetual, editando-os como objet trouvé 2.0, ou então como apropriação “caseira”, próxima do cor-ação. Seja como for, haverá sempre um desnível – Untitled (leveling a spirit level in free fall feat. Dorit Chysler’s BBGV dub), 2009.

Uma clivagem entre culto pop e devoção caseira demonstra-se numa sequência de LP’s em B&W (assim a legitimação das siglas para o devido culto do vinil) com uma série de gente a cantar; aliás, um dos usos previstos por Thomas Edison para o fonógrafo consistia no “family record”— a registry of sayings, reminiscences, etc., by members of a family in their own voices, cf. (STERNE 2003, 202)).

A dobragem [voice-over] duplica a voz, decompondo a sua fidelidade [allegiance] em formas que podem ser tão traumáticas quanto humanizantes. Fundamentalmente, “El poeta desaparece detrás de su voz,” diz Octavio Paz, “una voz que es suya porque es la voz del lenguaje, la voz de nadie y la de todos. Cualquiera que sea el nombre que demos a esa voz – inspiración, inconsciente, azar, accidente, revelación – , es siempre la voz de la otredad.” (PAZ [1974] 1993, 224; apud RASULA 2009, 47)

Esta alteridade é herdada e transformada a cada versão. Em Untitled (I see a Darkness), 2007, duas crianças reproduzem, inocentes como um gravador, a escuridão. Se na canção a escuridão carrega verso a verso, no videoclip a luz vai crescendo, o branco invadindo, luz total que, no fundo, provoca o mesmo efeito que a escuridão: no final, nada fica da imagem.

A escuridão é algo que se vislumbra, ou que inocentemente não se vê, apenas se canta e se entreouve…  João Onofre:

Well you’re my friend
(It’s what you told me)
And can you see
(What’s inside of me?)
Many times we’ve been out drinking
And many times we’ve shared our thoughts
But did you ever, ever notice
The kind of thoughts I got?
Well you know I have a love
A love for everyone I know
And you know I have a drive
To live I won’t let go
Could you see it’s opposition
Comes a-rising up sometimes
That it’s dreadful and position
Comes blacking in my mind
And that I see a darkness
And that I see a darkness
And that I see a darkness
And that I see a darkness
And did you know how much I love you
Is a hope that somehow you you
Can save me from this darkness?
Well I hope that someday, buddy
We have peace in our lives
Together or apart
Alone or with our wives
That we can stop our whoring
And pull the smiles inside
And light it up forever
And never go to sleep
My best unbeaten brother
This isn’t all I see
Oh no, I see a darkness
Oh no, I see a darkness
Oh no, I see a darkness
Oh no, I see a darkness
And did you know how much I love you
Is a hope that somehow you you
Can save me from this darkness?
.
Will Oldham a.k.a. Bonnie “Prince” Billy (1999) I See a Darkness

Johnny Cash (2000) I See a Darkness

“Posso dizer que me interessam questões como a duração e a finitude. Quero ver quanto tempo as pessoas, sejam músicos ou jogadores, aguentam uma ação. Ou o que é ver a mesma coisa de um modo circular, repetido. Quando olhamos para a mesma imagem, ainda estamos a ver o mesmo, do mesmo modo? (Onofre apud MARMELEIRA 2019)

João Onofre – ONCE IN A LIFETIME [REPEAT] – na Culturgest entre 16 de fevereiro de 19 de maio de 2019.

 

João Onofre (2019) Untitled (zoetrope)


Bibliografia

ATTALI, Jacques. 1985. Noise: The Political Economy of Music. Theory and History of Literature, v. 16. Minneapolis: University of Minnesota Press.

BUCHLOH, Benjamin H. D. 2003. Neo-Avantgarde and Culture Industry: Essays on European and American Art from 1955 to 1975. 1. paperback ed. An October Book. Cambridge, Mass.: MIT Press.

MARMELEIRA, José. 2012. «Presenças da cultura pop na arte contemporânea portuguesa». Tese de Mestrado, Lisboa: ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Departamento de Sociologia. Repositório ISCTE-IUL. https://repositorio.iscte-iul.pt/handle/10071/5163.

———. 2019. «João Onofre diz-nos luzes, câmara, acção». PÚBLICO, 15 de Fevereiro de 2019, sec. Ípsilon. https://www.publico.pt/2019/02/15/culturaipsilon/noticia/joao-onofre-artista-cria-imagens-onde-accao-acontece-1861622.

ONOFRE, João. 2019. Razão de Ser: Mariana Oliveira com João Onofre. Entrevistado por Mariana OLIVEIRA. RTP Play. RTP. https://www.rtp.pt/play/p2805/e390349/razao-de-ser.

PAZ, Octavio. (1974) 1993. Los hijos del limo: de romanticismo a la vanguardia. 4. ed. Biblioteca de Bolsillo. Barcelona: Seix Barral.

RASULA, Jed. 2009. Modernism and poetic inspiration: the shadow mouth. 1st ed. Modern and contemporary poetry and poetics. New York, NY: Palgrave Macmillan.

SHOWBIZ. 2016. «Escultura de som inédita evoca respiração de Carlos Paredes». SAPO Mag. 16 de Novembro de 2016. https://mag.sapo.pt/showbiz/artigos/escultura-de-som-inedita-evoca-respiracao-de-carlos-paredes.

STERNE, Jonathan. 2003. The audible past: cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press.

 

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