EchoManAfonso

Cada geração tem o seu filme de domingo à tarde e respetiva febre de sequelas avidamente comentadas e reproduzidas nos recreios da escola mais próxima. A Academia de Polícia é um daqueles filmes sem explicação, de repercussão retardada (um sleeper hit), sem realizador que se lembre (Hugh Wilson), com uma paleta de heróis desengonçados (no Brasil chamou-se a Loucademia de Polícia) que não obstante deixaram a sua marca — hoje basta uma busca rápida para identificar o cadete gigante Moses Hightower (Bubba Smith), o cadete tarado pelas armas Eugene Tackleberry (David Graf), o frustrado Tenente Thaddeus Harris (G.W. Bailey), o senil Comandante Eric Lassard (George Gaynes), a esganiçada Cadete Laverne Hooks (Marion Ramsey), o vilão de voz brutalmente irregular Zed (“Bobcat” Goldthwait) e, claro, o delírio dos putos, o Cadete Larvelle Jones (Michael Winslow):

Poucos miúdos daquela geração não devem ter imitado o alarme daquele aspirante a polícia que baralhava todos os sistemas. O Afonso foi um deles.

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Introdução a Global Shakespeares: “António e Cleópatra” e um confronto com a própria memória

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Vi o espectáculo António e Cleópatra há perto de três anos (2017), no Teatro Municipal do Campo Alegre, no Porto. Estava uma tarde de sol em que me demorei depois: não deixava de pensar naqueles dois intérpretes que no palco grande tinham trocado de papeis, tinham conversado e narrado a relação entre António e Cleópatra, numa pessoal reescrita da peça de Shakesperare por parte do encenador/dramaturgista Tiago Rodrigues. Recordo o sol, as imediações do teatro, a sala cheia, o meu espanto.

Estas recordações, inextrincavelmente pessoais de um espectador, num dia, numa cidade e num momento de vida, são pertinentes por serem precisamente o que não está no registo da máquina de filmar. Entendamo-nos, refiro-me à máquina que grava o espetáculo, também ela espectadora e (re)produtora de memória. Porque o que se regista é sobretudo o objeto performativo a que assistiram inúmeras sensibilidades, com incontroláveis reconstruções posteriores.

Encontro esse espectáculo em registo videográfico, em linha, no arquivo digital “Global Shakespeares”. Enquadrado pelo arco do proscénio do (meu) computador e já não do teatro material em que o vi pela primeira vez, dou-me conta, pelo contraste, do que está e não está ali.

Toca-me a divergência entre voz/palavra e a visão/encenação dos corpos, do espaço. Era bem isto que ouvi, mas não assim que vi. A memória sossega-se somente ao encerrar a imagem. O que não está lá e fez parte da escrita (inscrição?) desse momento em mim: as recordações do dia em que assiti. E do ponto de vista do espetáculo, o que eu não tinha visto (nem poderia ver, pois é essencialmente capacidade técnica do medium fílmico): os planos, os cortes, o pormenor, por oposição à minha abrangente visão de tudo.

As palavras que volto a ouvir estão também legendadas, em inglês. O vídeo (sabemo-lo) não é o espectáculo, mas as vozes são as mesmas. Esta encenação, assim registada, opera uma rasura e ao mesmo tempo evidencia o que não está lá e pertence à experiência subjetiva do espectador, esse outro polo do teatro, recetor daquelas palavras e gestos. António e Cleópatra está agora resignificado entre centenas de outros (vídeos de) espectáculos, num arquivo mundial de algo que já passou, que podemos ver ou rever, incontornavelmente de modo diferente. Ou, devo antes dizer, tecnicamente de modo diferente?

Global Shakespeares – Video and performance archive, projeto do MIT, parte de algumas premissas que me parecem ser riquissimas: a combinação de investigação e registo de criações, o caráter colaborativo de um projeto de Humanidades Digitais e o alcance (redundantemente o digo) global a nível temático e material. Afirma-se uma universalidade do Bardo inglês, mas também do livre acesso e da pluralidade de contribuições, tudo em meio digital e desenvolvido (sublinho) num instituto que é referência mundial na investigação tecnológica e sua relação com as humanidades. Agora, António e Cleópatra tornou-se parte de um Shakespeare Global, passando a ser Antony and Cleopatra, falado em português, legendado em inglês, entre muitas outras produções. Deste caso destaco uma vez mais a voz, e repito a primeira sensação: era bem isto que ouvi, mas não assim que vi.

Não se passará o mesmo com o texto vicentino e os vídeos que fixam as suas encenações (assunto da minha predileção), registando a mensagem mas não o seu meio? Voltarei necessariamente a esta questão.

A voz dos poetas: Pascoaes por Alexandre O´Neill

A voz dos poetas é designação algo habitual para poesia dita por eles-mesmos, ou eventualmente por outros que lhes dão voz.

Recentemente, a Imprensa Nacional em parceira com os Artistas Unidos, inaugurou em linha um programa assim (a examinar noutra ocasião).

No domínio da imaginação literária, ou daquilo que poderíamos chamar uma descrição da “voz na literatura”, lemos casos, trechos, passagens em que autores se referem às vozes destes ou daqueles poetas. A ritmos, conversas, ligações, timbres, escutas.

Numa recolha de textos dispersos de Alexandre O´Neill – publicados originariamente em jornais e revistas – encontramos uma invocação do poeta Teixeira de Pascoaes e da sua voz.

Refiro-me ao texto “Recordação precipitada de Teixeira de Pascoaes”, publicado inicialmente na revista Vértice, de Março de 1953 (pp.162-165), que agora leio entre as páginas 23-26 de “Coração Acordeão”, edição O Independente (2004). Recolha da responsabilidade de Vasco Rosa.

Alexandre O´Neill descreve como encontrava (e ia ao encontro de) Teixeira de Pascoaes em Amarante: “A um Café à parte, a um Café à roda de Teixeira de Pascoaes. E à sua volta nos dispúnhamos, com o gozo antecipado de quem vai aproveitar um bom fogo crepitante ou a sombra generosa duma árvore” (p.25).

E aqui sobressai a parte sonora, da voz, que nos interessa (ainda na página 25):

“Mas ouvir Pascoaes, falar com ele, ajudá-lo a encontrar o rimo inspirado da conversa, era uma tarde no Marão, era ver nascer «em rumor e cor um pinheiral» era subir até onde «as árvores se transformam em penedos»!”

Um poeta dará testemunho de outro, com reverência e uma proximidade que não se confunde com intimidade, é certo. Dá também uma alusão à sua convivência com todos através da conversa que, sabemos pela “recordação”, seria abrangente, curiosa, humana. Ficaríamos assim, a acreditar no texto, com uma ideia satisfatória da voz deste poeta. Não da voz que diz os seus poemas, mas da que fala com todos, que reflete o (seu) Marão em diálogo.

No entanto, o livro e demais textos de O´Neill acautelam esta leitura à letra do que escreve Alexandre O´Neill: capaz de uma ironia soberba, de uma brincadeira com a realidade e com as palavras que nos arranca sorrisos de cumplicidade. A sua ficcionalização é constante e deliciosa.Este autor leva-nos a desconfiar até de si mesmo, na sua ironia. O que nos leva a desconfiar se a voz e o contexto em que descreve Teixeira de Pascoaes seria facto documental e verídico, quase arquivístico.

Seria uma ficção, um discorrer imaginário inventando o convívio com o poeta? E com a sua voz, também?

Perguntando de outro modo: através desta descrição circunstancial podemos imaginar a voz de Pascoaes, mas temos a certeza de que a não imaginou O´Neill?

“Rubato” – Hipoglote de 23 de Nov. 2020

Nesta emissão de Hipoglote, Tiago Schwäbl apresenta-nos narrativas, parábolas, ensaios, com vozes e línguas diferentes. Interrompem, suspendem e alteram-se músicas, vozes e vários pensamentos, muitas vezes dedicados ao tempo, à velocidade, à duração.

“Rubato” será originalmente o tempo musical roubado. Especularemos a quem será roubado. Talvez seja ao discurso do autor, feito de citações e regularmente interrompido.

Pode ser escutado aqui: https://www.rtp.pt/play/p6503/hipoglote 

 

Hipoglote de 16 de Nov. 2020 “Armas e linguagem”

Nesta emissão de Hipoglote, Tiago Schwäbl percorre guerras e pós-guerras. 

Apresenta-nos ora uma narrativa, ora ensaio, em colagem de sons, músicas, palavras, de músicas, poetas, filmes, depoimentos.

A realidade e ficção misturadas em várias línguas, idades e media, entre silêncios e a voz do próprio autor do programa.

 

Pode ser escutado aqui:

https://www.rtp.pt/play/p6503/hipoglote

 

João Onofre na Culturgest: Baladas de um coveiro

Tony Smith (modelo em 1962, fabricado em 1968) Die

“Six foot under. I didn’t make a drawing; I just picked up the phone and ordered it.”
Tony Smith sobre Die

Um cubo de 6 pés em ¼ polegadas de aço laminado a quente com escoramento interno diagonal”, sendo as dimensões determinadas pelas proporções do corpo humano. Estas são também as dimensões da caixa às portas da Caixa [Geral de Depósitos], antecipando assim – fazendo caixinha – o jogo de referências encaixotadas que atravessa toda a exposição de João Onofre. Como uma matriosca, mas invertida: figura(çõe)s encobertas por covers sucessivos.

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Susan Hiller: a passagem de uma testemunha

Susan Hiller passou, a 28 de Janeiro de 2019, para o lado das suas obras, o lugar de receção e emissão de outras vozes.

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Voz, três solos: invocação

Fátima Miranda: a mulher-xamã


Coincidiu a vinda de Fátima Miranda ao Porto, no dia 14 de Maio de 2017, com a Rua das Carmelitas, 100, e com um ciclo de performances intitulado Solilóquiossinais que só ela, enquanto áugure – que tira presságios do voo e canto das aves –, poderia conjugar nesta sala de plantas suspensas – “carmelo”, do hebraico “karmel” (כַּרְמֶל): jardim – e amplos espelhos repetindo as três janelas ogivadas com vista para a Cordoaria. Sala cheia na penumbra, aguardando o começo

Fátima Miranda. 1992. “Hálito” [excerto], em Las Voces De La Voz.

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Voz, três solos: re-fluxo

Nora Turato: fala automática

Imaginem que tentamos recordar um nome esquecido. O estado da nossa consciência é peculiar. Há ali uma lacuna; mas não uma mera lacuna. Trata-se de uma lacuna extremamente ativa. (JAMES, [1842], 542)

Imaginem agora um maremoto de ideias, citações, comentários, elocuções, boatos, interjeições, lamentos, conjeturas, preconceitos…, um chorrilho de informação que parece tudo menos lacunar. O auto-atropelamento do discurso advém de um jogo insaciável de memória e mastigação, de tal forma intensa e verborrágica que a sensação auditiva é, pelo contrário, a de uma transparência, a de uma “branca” ou esquecimento.
Lacuna e preenchimento tendem a confundir-se, como se depreende da citação de William James (1842-1910, EUA), , em cujos Princípios Psicológicos (1892) surge a noção de stream of consciousness, que alimenta e encontra na performance de Nora Turato a sua vocalização. 
O quase oxímoro enunciado por James – “lacuna ativa” – ganha presença em “I’m happy to own my implicit biases [Feliz com os meus preconceitos tácitos], performance de Nora Turato inserida na programação de O museu como performance do Museu de Serralves, no Porto, a 8 e 9 de Setembro de 2018.

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