Cada geração tem o seu filme de domingo à tarde e respetiva febre de sequelas avidamente comentadas e reproduzidas nos recreios da escola mais próxima. A Academia de Polícia é um daqueles filmes sem explicação, de repercussão retardada (um sleeper hit), sem realizador que se lembre (Hugh Wilson), com uma paleta de heróis desengonçados (no Brasil chamou-se a Loucademia de Polícia) que não obstante deixaram a sua marca — hoje basta uma busca rápida para identificar o cadete gigante Moses Hightower (Bubba Smith), o cadete tarado pelas armas Eugene Tackleberry (David Graf), o frustrado Tenente Thaddeus Harris (G.W. Bailey), o senil Comandante Eric Lassard (George Gaynes), a esganiçada Cadete Laverne Hooks (Marion Ramsey), o vilão de voz brutalmente irregular Zed (“Bobcat” Goldthwait) e, claro, o delírio dos putos, o Cadete Larvelle Jones (Michael Winslow):
Poucos miúdos daquela geração não devem ter imitado o alarme daquele aspirante a polícia que baralhava todos os sistemas. O Afonso foi um deles.
The Man
Michael Winslow representa a rebeldia sonora e o poder infantil do mundo: carros de alta velocidade, aceleração dos 0 aos 100, metralhadoras de mil balas por minuto, socos e pontapés de alto impacto, bandas sonoras de videojogos e qualquer aparelho ligado à corrente elétrica. Tal ambiente de cartoon sonoro povoa o imaginário dos putos, mas acaba lavrado pelos primeiros pa-pe-pi-po-pu da cartilha primária e renegado da comunicação adulta séria para todo o sempre.
Há uns cromos da turma que gostam de repetir a piada e insistem na brincadeira passageira, conseguem encontrar frescura renovada nesses efeitos, tornando-se eles mesmos passageiros da infância, avivando a companhia de Peter Pan, marrando na adultícia, perpetuando a brincadeira por via da repetição, teimando tempo suficiente para se tornar estranho, porque explorada de forma que a mais ninguém ocorreria. É o caso do Afonso. A uma brincadeira-citação da infância associa-se uma certa persistência, e a insistência ganha perícia na repetição, deixa de ser mero passatempo para ser elevada a treino, algo louco e desproporcional que domina e passa a técnica: um jogo transitório como a varicela revela-se criação.
Já na Guarda o Américo 1 era conhecido pelas suas canções. No Porto Santo, o rapaz das músicas era o Afonso. Ao passo que Américo Rodrigues foi alargando o seu repertório pela poesia sonora, o Afonso Rodrigues especializou-se num efeito. Contrapondo-se ao homem dos sete instrumentos (numa só voz), eis aqui o homem de um só eco.
Na verdade, os efeitos desdobram-se em vários tipos de eco, mas o “truque” é (sempre) o mesmo, com a mesma alegria e despretensão: não chega a ser uma polifonia de boca, mas nela cabe bem uma caixa de ritmos e um ou outro filtro, com especialização na espacialização prestidigitante do eco.
Quem é o Afonso? Afonso é o EchoMan, ou, na sua extensão, EchoManAfonso, o homem-eco, como propriamente se exibe em vários programas de entretenimento televisivo. Afonso Rodrigues, natural do Porto Santo, emigra para a capital Madeirense, colocando os seus préstimos de ave canora ao serviço da atividade hoteleira como angariador de clientes na zona velha do Funchal, prosseguindo a transumância até Gdynia, o que justificará a sua aparição em programas polacos e alemães.
Encontramos vídeos do A.R. em várias situações: num entreacto noturno durante a mudança de palco de um concerto, em tendas de festividades culturais contando histórias dos sustos que a multiplicidade de vozes suscita na avó, numa rua de subúrbio insular, nos picos da ilha, na marginal contracenando com turistas, e, já mais velho, em vídeos recentes, desfiando canções com ritmo incluído. Mas os pontos altos das suas aparições e fama picam nas participações em programas de variedades e de exibição canora artística popular (Got Talent versão DE, PL e PT).
O cognome marveliano — EchoMan — tem naturalmente o seu mito fundacional, mas aqui o herói não a oculta; narrada num dos programas (gottalentpt), a génese remonta à infância: quando era pequeno caiu num poço e, ao chamar pela mãe e pelo pai, achou graça ao eco. Do abismo não voaram morcegos mas ecos. De certa maneira, o EchoMan saiu tecnicamente mais próximo de um morcego que o próprio Batman; embora não emergisse com o poder de galgar muros ou destruí-los, Afonso tem na sua voz a marca do eco e a capacidade de se rodear de todos os ruídos de super-herói e efeitos especiais sem qualquer sofrimento heroico. Ele próprio refere isto: o seu talento é a imitação. No entanto, concentrou-se num, por diversão: o eco.
Há que conceder, Afonso Rodrigues está efetivamente imbuído de eco. Nos concursos de habilidade é onde o Afonso tem oportunidade de mostrar o seu portfólio, as técnicas principais: primeiro eco – nada de mal com o microfone; baixando a velocidade, fica o eco da montanha; mais rápido é o eco da mola — a minha voz dentro da mola; se jogar a minha voz, efeito boomerang.
Como não podia deixar de ser, há um canal de YouTube onde vai especificando outros tipos: eco leitura, eco laser, fast forward; rap, rewind, booomerang, montanha, ghost, eco na estrada, relatos de futebol em línguas inventadas ou de sonoridade aparentada. O arquivo acumula pequenos vídeos publicados entre 2011 e 2021, com duração de apenas um ou dois minutos, em planos amadores, invertidos, em casa ou ao ar livre, no seu habitual e carregadíssimo sotaque de ilhéu.
The Echo
O eco não espreita a cada esquina; aliás, o fenómeno exige condições físicas específicas de trampolim e retorno, sendo que a sua aparição varia consoante condições moderadas que permitam o alcance/ flutuação/ propagação da palavra ou condições exageradas de duplicação que quase a anulem por acumulação, ficando-nos ora o murmúrio de vagas ora ribombar de frases montanhosamente ideais que nos entregam somente a cauda de cada palavra que volta. Excetuando uma profissão que o coabite, a exposição ao eco é normalmente esporádica, pelo que, quando surge, não passa despercebido. A sua escuta confunde-se com a sua produção: enquanto emissores da primeira palavra, reconstruimos a inteireza da confirmação final da segunda parte.
O chamamento — nosso ou de outrem — parte para o ar com intenção de duplicação, mas retorna decepado, quase memória. Ou talvez sejamos nós a chamá-lo, incitando-o irresistivelmente a uma resposta, resquício infantil de pegar num pau e espicaçar o bicho enrolado que passava e nada queria connosco. Essa brincadeira de soltar para o ar algo que estranhamente aguardamos devolvido não raro se faz acompanhar de um lançamento de uma pedra; o gesto de atirar a voz é o mesmo, mas as consequências são evidentemente diferentes; relança a dúvida existencial, coloca em jogo uma manifestação de auto-presença que depende da expetativa depositada no material sedimentado em torno: estaremos menos presente no deserto do que numa montanha? Apinhados em cavernas, acossados túneis adentro? Transporta-nos o eco? Outorga-nos espaço real ou projeta-nos naquele que não alcançamos? O som devolvido ao remetente sobressalta-nos de duas maneiras, quer pela potencial presença de outro, quer pela potencial ausência de todos.
Desconcerta sempre, tão poucas vezes nos ouvimos exteriorizados no dia-a-dia. Emitindo, garantimos a primeira palavra; apesar da devolução distorcida da nossa voz, somos simultaneamente reconfortados e suspeitosos da duplicação do que é nosso (como um espelho). Mais estranho seria ouvir um eco que não nos pertence; a obliteração da primeira parte coloca em dúvida o nosso papel de emissor. Seja ele quem for, fica demonstrada e mapeada a viagem da voz, certamente mais aventureira que o nosso corpo.
De certa forma, o EchoManAfonso engole a possibilidade dessa viagem — “viaje lá para fora cá dentro” —, a apresentação da voz em eco anula um caminho que seria esperado na ocorrência do eco; constitui uma aberração porque transporta distâncias em si mesmo, emula o trajeto, controla a espacialização, aproximando ou distanciando artificialmente, de forma imaginada, o lugar da deflagração da voz. A narrativa é aplicada de forma acústica, a viagem acontece foneticamente na forma verbal passada da emissão sonora: é um “era uma vez” sonoro, concentra em si — no corpo do EchoManAfonso — as aventuras da viagem da voz por túneis e montanhas.
Paradoxalmente, para o fazer, a voz não deixa de percorrer espaço físico no processo de emissão, é inevitável; o que o EchoManAfonso faz é apresentar-nos um efeito deslocado da zona onde o efeito é normalmente produzido, simulando um esvaecimento, uma devolução enfraquecida, reproduzindo apenas remanescentes de um regresso, de uma viagem vocal que já se realizou.
Um eco “natural” está sujeito às condições de refração da envolvência, existe no contexto, na uma condição física de reflexão das ondas sonoras. Dado que raras vezes presenciamos essa outra voz acústica na natureza, o efeito é incansavelmente deslumbrante; mais o é porque não existe na linguagem, e é precisamente aí, na linguagem, no local mais anecóico possível, que o eco é (re)colocado pelo ManAfonso, absorvendo o efeito da exterioridade numa produção interior; aí reside a piada, o mecanismo da surpresa dessa técnica: exterioriza-se (vindo do interior) algo que à partida só se dá no exterior.
gadget de boca
Quem já brincou com um sintetizador sabe da panóplia de recriações artificiais de atmosferas, seja de âmago sintético ou envolvente; a tecnologia permite não só a amplificação, como principalmente a centralização e difusão sintética de aromas naturais. A forma como EchoManAfonso apresenta as variações do repertório sugere uma mesa de botões ou consola com múltiplas saídas e possibilidades a partir de uma só tecla, como um sintetizador — ele próprio distingue eco da montanha de outros tipos, alternando registo como um relé. Será a imitação do eco da natureza diferente da imitação de um gadget que imita o eco?
À laia de encore — repertório marginal ao eco —, introduz a variante do “microfone estragado” que, algo inverso à expansão natural (nuances de distanciamento, abafamento, surdina), incide na morte da fonte, falha no sinal, cabos torcidos ou apagão de corrente elétrica. Este apontamento de corte abrupto, não existente nesses campos fora, induz a suspeita de dupla artificialidade: não apenas a imitação de um eco da natureza, mas a de um eco sintético, um sample “eco” de um efeito eco, com os riscos de fraqueza de bateria ou rede que assiste ao gadget e não aos desfiladeiros.
Estes efeitos imitados são (em emissões televisivas) ampliados precisamente por um microfone, repetem não só o efeito de eco, como também pleonasmam amplificadamente o esvaecimento natural da voz num canyon.
Mais paradoxal ainda: já que estamos ao microfone, seria fácil criar um filtro ou efeito de reverberação. A voz ao microfone faz aquilo que tecnologicamente seria fácil de recriar, sublinhando assim a inutilidade do gesto.
O deslumbre reside na ortofonia, local onde o eco não se manifesta (o lugar mais próximo será talvez a gaguez). Se o eco já estranha pela coincidência do lugar da emissão com o da sua receção — a boca —, ainda que de forma imperfeita e despedaçada, Afonso Rodrigues faz coincidir a (receção da) fonte sonora com o lugar da sua refração; de outra forma, é como se cortasse a fonte — uma espécie de variação acusmática humana.
Ao exercitar o resultado do corte, do decepamento de uma origem desviada, acaba por imitar um interface/ intermediário/ consola, praticar afinal a ausência de intermediário, exercendo na fonte o resultado, deflagrando aí causalidade e consequência.
linguagem-agem-agem
A cavalo num eco, a linguagem sofre um atraso, um desfasamento hermenêutico, e, como acontece com todos os tipos de efeitos aplicados, abranda o conteúdo, (des)equilibrando-se no transporte:
For Echo, on the other hand, it is a matter of revocalizing logos through a voice that is totally drained of its semantic component. The revocalization is thus a desemanticization.
Cavarero (2005: 167)
No capítulo “Echo; or, On Resonance” do livro For More than One Voice: Toward a Philosophy of Vocal Expression, Adriana Cavarero recorre à descrição de Ovídio do mito de Eco — castigada por ter palavrosamente enredado Juno enquanto outras se atiravam a Jupiter, é condenada à repetição, à obliteração do discurso próprio — e do encontro falhado da ninfa com Narciso que desemboca na sua total desmaterialização.
Esta aposição de duas figuras autocentradas acaba circunstancialmente replicado em Afonso Rodrigues: por um lado, o jovem transporta Eco na boca, por outro instaura a aplicação narcísica da sua imagem na tv que pode ver e rever até à exaustão. Eco apaixona-se por Narciso, mas este apenas se vê a si mesmo, enquanto ela apenas devolve parte do que ouve, alimentando ainda mais a solidão egocêntrica: um repete o olhar, outra o ouvir.
E assim fica o EchoMan, sem saber destas musas, confinado a este efeito cénico surpreendente, em confronto direto com uma plateia predisposta à imitação e ao show. A duplicação de vozes permite-lhe não estar sempre sozinho, embora necessite da plateia para se reviver, já que tanto Eco como EchoManAfonso habitam a fatuidade.
Será que, tal como no mito de Eco, acontece desmaterialização vocal em Afonso? Ao contrário da ninfa, antes do (seu) eco não existia verborreia, não é algo que perdeu. Ele apenas constrói parte do que foi a ninfa, re-boca o castigo da ninfa, aparentemente dela escarnecendo; na verdade, reconvoca-a a todo o momento. No encantamento do som enfraquecido, sobressaltado com uma outra voz de ninguém que é a sua e espelha a solidão, escuta o escutar-se. Distorcida e distante, a voz viaja.
A duplicação dos fonemas, a quase gaguez sincronizada, consequente, coerente, previsível, controlada, não acontece por um qualquer impedimento involuntário; a duplicação final, ainda que impedindo também qualquer coisa (todo um discurso que nem está previsto antecipar), é antes um impelimento quase incontrolável.
Beyond the entertaining construction of the dialogue, however, Echo remains pure voice, vocal resonance, not speech. As in the case of the infant who repeats the mother’s words, stripping them of their meaning, Echo is an acoustic repetition, not intentioned toward meaning. Just as the myth recounts, her story alludes to a sort of regression to the mimetic vocalizations of infancy, to the so-called la-la language.
Cavarero (2005: 168)
EchoManAfonso conseguiu uma carreira humilde através de um efeito maquinal que recoloca em cena a imitação da consola mais básica e, sem querer, sorteia pedaços de linguagem de potencial ativo quebrado. Aplica com a boca algo que não se justifica aplicar com a boca, essa inutilidade ridícula de deslocação das funções é o que surpreende e marca, extravasa a linguagem e o corpo: manda para fora uma emulação de um produto exterior fora de qualquer uso, sem progressão artística ou narrativa, nem é canção, nem murmúrio, nem reflexão sobre linguagem porque não a contém nem tenta conter, e nada tem a ver com ela. Eco não está presente na linguagem porque a sua presença seria disruptiva do conteúdo (segundo o mito, seria ou foi enganadora) e não serviria a comunicação.
Through the fate of Echo, logos is stripped of language as a system of signification and is reduced to a pure vocalic. And yet this is not just any vocalic, but rather a vocalic that erases the semantic through repetition. Repetition — the very repetition that is the famous mechanism of the “performative,” through which meaning is stabilized and destabilized — here turns out to be a mechanism that produces the reverse effect. Echo’s repetition is a babble that dissolves the semantic register entirely, leading the voice back to an infantile state that is not yet speech.
Cavarero (2005: 168)
Para os humanos, é isso um pássaro: cantam porque sim.
pássaro canoro vs poesia sonora
Angariador de turistas de profissão, Afonso Rodrigues aplica as suas técnicas, qual pássaro canoro acasalador, se possível com humor e refinados a rococó. Afonso lança-se na árvore dos talk shows, assobiando furiosamente a sua alma de castrato — a voz pela voz —, procura sonhadoramente o olhar do público através de truques de eco.
Para lá deste gorjeio duradouro, fixamente marejado, repetindo aquela curta atuação como se fosse um eco de si próprio, reduzindo-se a vagas de sílabas finais, caberia ao EchoManAfonso alargar o seu repertório? Qual seria o arco temático-performático? Conseguiria o eco alimentar uma viagem de eternos regressos, ou então sair do seu eco e chegar a outro lado que não a si mesmo?
Tal implicaria chegar à linguagem, para dela partir de novo e logo de seguida construir um programa alargado de eventuais deturpações, exigiria, como na poesia sonora, não excluindo as técnicas e os efeitos, alimentar a intrigância pela reprodução das falhas ou das envolvências que caracterizam o redor da língua, servir-nos não o conteúdo limpo, mas sim a sujidade que lá se encontra, manter a tensão do des-equilíbrio, aumentar o tamanho das vagas de reverberação até alcançar a intermitência dos sentidos.
Porém, se o fizesse, EchoManAfonso perderia o seu nome, a sua identidade, pelo que se gruda ao encantamento do efeito, à imitação exclusiva. O resultado compete com o original, vive na cópia performática, no desenquadramento lúdico da surpresa que ocorre sempre que algo é feito por outros meios para um mesmo resultado, é a estranheza inesperada do ato que termina na imitação. Cumpre o propósito da piada, termina o eco, sem coar outros resultados ou indagações.
A poesia sonora raramente atinge esse grau de especificidade técnica que emparelha com a habilidade, embora a reação seja a mesma: riso perante o ridículo, espanto desconcertado diante de algo simples, o desejo infantil de assumir o som, mostrar a capacidade imediata da risada, trazer motores para dentro de si, a fingir, ser máquina sem o ser e poderoso como ela, prolongar a aventura, assegurar num eco velho o elixir da juventude, ter o botão pronto na ponta da língua, com técnica e a alegria para o fazer.
O paradoxo do eco é que essa capacidade não lhe dá o retorno ou eco que provavelmente desejaria. Ou talvez dê. O nicho não tem eco, mas isso não parece estorvar-lhe a satisfação:
Hey hey hey (echo) I’m just a guy that wants to make people laugh and have fun while doing it 😁
Eis as explicações do próprio Afonso Rodrigues (minuto 15’07”) no programa Madeira Viva, da RTP Madeira, à apresentadora Xana Abreu:
CAVARERO, Adriana. 2005. “Echo; or, On Resonance”. Em For More than One Voice: Toward a Philosophy of Vocal Expression, traduzido por Paul KOTTMAN, 165–72. Stanford, California: Stanford University Press.