Susan Hiller: a passagem de uma testemunha

Susan Hiller passou, a 28 de Janeiro de 2019, para o lado das suas obras, o lugar de receção e emissão de outras vozes.

Witness (2000), por exemplo, reune uma centena de testemunhos vocais oriundos de vários cantos do mundo, canalizados para mono-auriculares aos quais os visitantes podiam aproximar a sua orelha e escutar os relatos de encontros extraterrenos. Tais testemunhos constituem não só uma tradução inalienável dessas experiências alienígenas, mas também a representação da sua dupla efemeridade: a da fisicalidade esvanecente de frequências da luz e do som e, em última instância, a do desaparecimento da linguagem.

Susan Hiller (2014a) Resounding

O medium, alienador na sua essência, veicula a transmissão vocal de pessoas que foram propriamente recetoras de uma comunicação outra, estranha, provocando a multiplicação do afastamento – um efeito droste da distância reencenado nesta instalação.

O efeito dos testemunhos como um conjunto, dispostos numa polifonia gigante de “música do absurdo” nas línguas originais, transforma os relatos individuais ao alterar a importância relativa dos seguintes aspetos fundamentais: o enquadramento racionalista “corroborativo”, a hesitação perante o fantástico, o empenho emocional e o sentido da perceção fragmentária ou onírica. (MILNE [2000] 2004)

Esta ‘polifonia gigante’, inevitavelmente babélica, ressoa os sinais da extinção:

Susan Hiller (2014b) Extinction Marathon: Visions of the Future

A simultânea obsolescência e recriação da linguagem é presentificada através da tecnologia: o estremecimento dos ecrãs e das imagens são física e socialmente equiparados à de uma fogueira. As dimensões do real e do mito remisturam-se doravante nas caixas mágicas dos cinemascópios. Como escreveu Blanchot, na ausência do tempo, o novo nada renova; o presente está desatualizado, o presente não apresenta nada, representa-se, pertence a partir de agora e sempre ao regresso. ([1968] 1985, 21)

Susan Hiller (2013) Recall 1969-2004

Susan Hiller ([1983] 1986) Belshazzar’s Feast/ The Writing on your Wall

As imagens televisivas traduzem uma relação de prazer háptico, de uma fixação primeva para com coisas que mexem e que remetem para outros mundos dentro do nosso, para um assombro do além. Hiller observa o facto de as pessoas usarem a televisão tal como antes usavam o fogo: sentavam-se derredor, a contar estórias, a cantar, pensar, vislumbrando formas, dado que fitar as chamas estimulava a visualização, a imaginação, a criatividade, e até as profecias (HILLER apud ANDERSON e TATE 2013).

Em Belshazzar’s Feast/ The Writing on your Wall (1983-84), sobre as imagens das chamas de Guy Fawkes ouvimos a voz do filho da autora descrevendo de memória a pintura homónima de Rembrandt (1636–8) patente na National Gallery em Londres, a par de estórias sussurradas de notícias do sobrenatural recolhidas por Hiller.

Rembrandt Rijn ([1636] 1964) Belshazzar’s Feast

Belshazzar furta uns cálices sagrados para a sua festa: no auge do banquete, uma mão inscreve na parede, para assombro dos convidados, as palavras: “mene, mene, tekel, upharsin”. O choque da aparição prolonga-se no mistério do significado das inscrições na parede, só mais tarde decifradas por Daniel. («Daniel» sem data, cap. 5:1-31)

Esse é também o mistério exposto nas obras de Susan Hiller: mãos/ vozes que inscrevem/ reproduzem linguagens ausentes que se presentificam perante o assombro do espetador.

As mensagens [em Sisters of Menon 1972–9] apontam para a possibilidade da extensão da identidade individual num plural ou coletivo. (…) Nestas obras Hiller dilui as fronteiras entre as definições culturais do ‘racional’ e do ‘irracional’, recuperando simultaneamente a validade do inconsciente como fonte de conhecimento ou verdade. Em obras posteriores de escrita automática a escrita torna-se difícil de decifrar. Quando aplicada sobre a face da artista, numa série de retratos de cabine fotográfica, tais como Midnight, Baker Street 1983, o desenho toma a forma de uma ‘locução estampada’ [patterned utterance]. (TATE Britain 2011)

Susan Hiller (1983) Midnight Baker Street

Nestas ‘locuções estampadas’, a escrita automática paraleliza o tipo de fixação exercido nas gravações, ecoando o efeito de exumação vocal levado a cabo pelas tecnologias de registo e reprodução. Susan Hiller fala de uma ‘assombração’ [hauntedness]:

Susan Hiller (2013) Recall 1969-2004

 


Susan Hiller apresentou a sua obra em Portugal no final de 2004, em Serralves, numa coprodução de João Fernandes com o Baltic Archive (Newcastle), Gateshead e o Kunsthalle Basel, para a exposição intitulada REVOCAR. OBRAS ESCOLHIDAS 1969-2004 e organizada por James Lingwood.

Bibliografia

ANDERSON, Fiona, e TATE. 2013. «‘Belshazzar’s Feast, the Writing on Your Wall’, Susan Hiller, 1983-4». Londres: Tate Britain. https://www.tate.org.uk/art/artworks/hiller-belshazzars-feast-the-writing-on-your-wall-t03923.

BLANCHOT, Maurice. (1968) 1985. L’éspace littéraire. Paris: Gallimard.

«Daniel». sem data. Em A Bíblia. https://www.biblica.com/bible/ol/daniel/5/.

MILNE, Louise. (2000) 2004. «Do Lado Dos Anjos: Witness e Outras Obras». Em Susan Hiller: Recall/ Revocar – Selected Works/ Obras Escolhidas 1969-2004, por Susan HILLER, editado por James LINGWOOD e João FERNANDES, traduzido por Maria RAMOS e Sofia GOMES, 1a ed., pp.195-201. Porto: BALTIC, Fundação de Serralves, Kunsthalle Basel. https://www.youtube.com/watch?v=hq2Lt9fQM00.

TATE Britain. 2011. «Susan Hiller: Automatic Writing». Tate. Fevereiro de 2011. https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-britain/exhibition/susan-hiller/susan-hiller-room-guide/susan-hiller-automatic-writing.

Videografia

HILLER, Susan. (1983) 1986. Belshazzar’s Feast, the Writing on Your Wall. Vídeo. Londres: Tate Britain: BBC: Channel 4. https://www.youtube.com/watch?v=u19CUJfGagM.

———. 2013. Susan Hiller: Recall 1969-2004. Entrevistada por James LINGWOOD. Vídeo. Baltic Archive. https://vimeo.com/79868575.

———. 2014a. Re-Sounding. Entrevistada por arts-news tv. Vídeo. Lower Church Gallery, Summerhall, Edinburgh. https://vimeo.com/103147146.

———. 2014b. Extinction Marathon: Visions of the Future. Entrevistada por Hans Ulrich OBRIST. Vídeo. Serpentine Galleries. https://vimeo.com/111657168.

Ilustração

RIJN, Rembrandt Harmenszoon van. (1636) 1964. Belshazzar’s Feast. Óleo sobre tela. Sala 24. National Gallery, Londres. https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/rembrandt-belshazzars-feast.

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