A voz e o milho

Meal Ticket” é a terceira estória d’ A Balada de Buster Scruggs (2018), filme de Joel e Ethan Coen.

A voz

Abre-se o pano da carroça de Thespis:

I met a traveller from an antique land,
Who said—

Quem o diz – mais do que o dito – causa o pasmo do público que, escasso, se arrebanha sob as frias estrelas para assistir ao anunciado espetáculo. O assombro não advirá tanto da representação, mas da “realidade” física do ator. Torna-se impossível ouvir o dito sem considerar o desditoso:

Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. . . .

É essa a figura que o palco deserto ilumina:  um ator quadramputado cuja cara pincelada apenas desvia ao de leve o que a todos consome o olhar – um monólito de gente do qual sobressai, a custo, a loquacidade daquele ser que mal existe para além dessa grandiloquência:

1

I met a traveller from an antique land,
Who said—“Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. . . . Near them, on the sand,
Half sunk a shattered visage lies, whose frown,
And wrinkled lip, and sneer of cold command,
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamped on these lifeless things,
The hand that mocked them, and the heart that fed;
And on the pedestal, these words appear:
My name is Ozymandias, King of Kings;
Look on my Works, ye Mighty, and despair!
Nothing beside remains. Round the decay
Of that colossal Wreck, boundless and bare
The lone and level sands stretch far away.”

Percy Bysshe Shelley [1814] Ozymandias

– “True story” – confidencia o velho empresário entredentes, enquanto recolhe num chapéu os donativos, relembrando a antique land – Inglaterra – onde recolheu aquele antípoda de Ozymandias – o jovem ator – que, no entanto, partilhará com o King of Kings a fatalidade da pedra.

À medida que a carroça avança pelas terras novas do Oeste americano – numa gradação que lembra a sequência inicial de Dead Man (1995) de Jarmusch –, reduzem os espetadores e as moedas. Mas a viagem continua, irreversível, inóspita, repetindo-se a cada paragem os gestos circunspetos de preparação, num silêncio que a própria banda sonora, na sua continuidade instrumental, não ofusca.

Das cortinas abertas deste palco andante, a boneca falante – cara angelical, um querubim maquilhado – recita os grandes textos da contemporaneidade, aqui canonizados pelos Coen para os finais do século XIX:

Four score and seven years ago our fathers brought forth on this continent, a new nation, conceived in Liberty, and dedicated to the proposition that all men are created equal. Now we are engaged in a great civil war, testing whether that nation, or any nation so conceived and dedicated, can long endure. (…)

…that we here highly resolve that these dead shall not have died in vain — that this nation, under God, shall have a new birth of freedom — and that government of the people, by the people, for the people, shall not perish from the earth.

Abraham Lincoln
(19 de novembro de 1863) The Gettysburg Address

Tal proposição – “todos os homens nascem iguais” – pesa nos ombros do empresário que alimenta, trata e limpa o jovem ator, numa atenção ensimesmada onde afeição e zelo pela fonte de rendimento se confundem.

Now Cain said to his brother Abel, “Let’s go out to the field.” While they were in the field, Cain attacked his brother Abel and killed him.
Then the Lord said to Cain, “Where is your brother Abel?”
“I don’t know,” he replied. “Am I my brother’s keeper?”
The Lord said, “What have you done? Listen! Your brother’s blood cries out to me from the ground. Now you are under a curse and driven from the ground, which opened its mouth to receive your brother’s blood from your hand. When you work the ground, it will no longer yield its crops for you. You will be a restless wanderer on the earth.”
Cain said to the Lord, “My punishment is more than I can bear. Today you are driving me from the land, and I will be hidden from your presence; I will be a restless wanderer on the earth, and whoever finds me will kill me.”

A Bíblia: Génesis 4

A errância codependente sugere um castigo imemorável – estado frequentemente cimentado nos filmes dos irmãos Coen, ao encontro de um destino inevitável. A viagem prossegue. Os rendimentos decrescentes aumentam o desespero tácito – nas abluções quotidianas nem uma palavra é trocada entre ator e empresário. Os versos carrega-os o recitante no gig seguinte:

When, in disgrace with fortune and men’s eyes,
I all alone beweep my outcast state,
And trouble deaf heaven with my bootless cries,
And look upon myself and curse my fate,
Wishing me like to one more rich in hope,
Featured like him, like him with friends possessed,
Desiring this man’s art and that man’s scope,
With what I most enjoy contented least;
Yet in these thoughts myself almost despising,
Haply I think on thee, and then my state,
(Like to the lark at break of day arising
From sullen earth) sings hymns at heaven’s gate;
For thy sweet love remembered such wealth brings
That then I scorn to change my state with kings.

William Shakespeare (1609) Sonnet 29

A voz é transportada de terra em terra como um fonógrafo, proporcionando à plateia os mundos mágicos do texto, re-presentados a quem pagar para os ouvir.

…e do mesmo modo que podemos dizer que estes [textos escritos] “falam”, podemos igualmente dizer que eles têm “vozes”: phoné-grafos no sentido pleno da palavra. (BUTLER 2015, 54)

A voz ‘real’ torna-se ventríloqua de uma voz que se desprende do texto, uma voz sem corpo – fantasma? – reafirmada pela visualização daquele corpo tão laminado – praticamente estranho à anatomia humana –, daquele corpo que, mal se abrem as cortinas, tem como única função transmissora a reprodução do texto, fora da qual permanece mudo, ou desligado. Tal qual um órgão positivo (portátil), a sua imobilidade é condição para a sua portabilidade. Acciona-se aquando da abertura do pano – e não fora dele – e exerce um desígnio claro: espalhar a voz ao vento. 2

Aqui o limbo talvez incida no facto de o ator (ainda) ser efetivamente humano, uma presença com a qual ainda é possível a identificação e o reconhecimento de olhares e expressões. De resto, este corpo pouco se diferencia de um aparelho de registo e reprodução.

E, como todos os aparelhos, é um facto que a qualquer momento se pode estragar; um (aparelho) humano está igualmente votado à obsolescência.

When to the sessions of sweet silent thought
I summon up remembrance of things past,
I sigh the lack of many a thing I sought,
And with old woes new wail my dear time’s waste:
Then can I drown an eye, unus’d to flow,
For precious friends hid in death’s dateless night,
And weep afresh love’s long since cancell’d woe,
And moan th’ expense of many a vanish’d sight;
Then can I grieve at grievances foregone,
And heavily from woe to woe tell o’er
The sad account of fore-bemoaned moan,
Which I new pay as if not paid before.
But if the while I think on thee, dear friend,
All losses are restor’d, and sorrows end.

William Shakespeare (1609) Sonnet 30


O milho

O inevitável crepúsculo deste espetáculo será naturalmente substituído por outro mais novo, mais incrível e barulhento. Os próprios textos caem em desuso perante o fascínio de uma atração indemne à educação.

E a figura que, contrapondo-se à nostalgia culta, encarna o momento da ação é… a galinha!

A mobilidade da galinha auto-didata ultrapassa em larga medida a imobilidade do ator instruído, e a eloquência enrolada de Harrison não bate a clareza do cacarejar nem a precisão do bico decidido que a cada golpe comprova a ilusória e convincente capacidade computacional. A infalível bicada opera sem erro nem ambiguidade semântica, concedendo à plateia esfuziada a diversão e o alívio das respostas resultantes do jogo de correspondências entre a operação matemática e a operação mecânica. A nova rainha Ozymandias não é mais do que uma galinha a picar em pratos de metal.

Esta sucessão narrativa – da voz loquaz à surpreendente inteligência de uma atração de feira – é retratada, noutro contexto, por Mladen Dolar (2006), no âmbito de duas invenções do austríaco Wolfgang von Kempelen em 1769 e da sua tour pela Europa nos anos 1780. ‘Máquina falante’ [speaking machine] pode substituir-se por ‘ator’ e onde se lê ‘autómato do xadrez’ [chess automaton] pode bem ler-se ‘galinha’:

…por um lado a máquina falante, por outro o autómato do xadrez. A sequência dos dois é crucial. A máquina falante era usada como introdução para a outra maravilha, e apresentava-se como a sua contraparte, uma amostra, como se de um duplo dispositivo [device] se tratasse, uma criatura dupla composta pela máquina falante e pela máquina pensante, como duas metades platónicas do mesmo ser. A diferença entre os dois era ostentosa e didática: antes de mais, o autómato do xadrez era construído de forma a parecer tão humano quanto possível – dando a impressão de estar absorvido em pensamentos profundos, revirando os olhos, etc. – ao passo que a máquina falante era o mais mecânica possível: não tentava esconder a sua natureza mecânica. A principal atração consistia no enigma de como algo nada humano podia produzir efeitos humanos. A antropomórfica máquina pensante era contrabalançada pela nada antropomórfica máquina falante. (DOLAR 2006, 17–18)

Esta descrição torna-se aplicável a este conto – “Meal Ticket” – dos irmãos Coen, se considerarmos os traços diminuídos do ator, próximos a uma máquina falante, e a vivacidade da ave como máquina pensante não antropomórfica, mas antes, digamos, sinantrópica.

E grão a grão enche (literalmente) a galinha o papo, ao passo que a goela do ator, “lugar onde o metal fónico se endurece e se segmenta” (BARTHES [1982] 2009, 244) se contrai num nó.

O grão da voz é substituído por grãos de milho. Se ‘grão da voz’ era para Barthesa materialidade do corpo falando a sua língua materna; talvez a letra, com certeza o significado.” (BARTHES [1977] 1987, 182), essa língua materna – por via do cânone literário recitado – rende-se à linguagem animal. Em vez de obras ilustremente recitadas, um belo cacarejar.

Como escreveu A.O. Scott numa recensão para o New York Times: “Meal Ticket é basicamente “Inside Llewyn Davis” com uma talentosa galinha no papel de Bob Dylan.” (2018)


a true story

Estas baladas cinematográficas procedem do aventuroso prazer da leitura. O primeiro plano apresenta-nos a fonte, na fisicalidade vincada de uma edição “antiga”: o objeto-livro de capa dura e folhas grossas desconjuntadas pelo uso, sobre uma mesa de madeira escurecida pela idade, aguardando o sempre renovado gesto universal que todos aprendemos: abri-lo. A litografia da capa – uma caveira bovina e árvore seca – é expressão não só das estórias do oeste americano, mas de toda a escrita: estórias e personagens que o tempo já assassinou, todavia reavivadas, paradoxalmente, pelos fúnebres signos escritos, num exercício de arqueologia simultaneamente alegre e nostálgico levado a cabo pela leitura.

Se por um lado os aparelhos, à sua nascença, se prenunciam datados e votados à desatualização pela galopante passagem do presente e do furor científico que arrasta consigo a ameaça do desaparecimento cultural – o cânone rebatido por uma galinha –, por outro, o livro, curiosamente, é aqui projetado na sua singeleza para os ecrãs do futuro, num gesto de remediação que inclui, na sua bidimensionalidade, a ação háptica que espoleta a complexa ação visual do cinema.

Da imagem do livro passamos ao texto que por sua vez abre nova imagem. Lemos avidamente o início grafado de cada estória até à sua  diluição majestosa nas planícies do ecrã; os finais reencaminham-nos de novo para o texto, em fuga aberta para as múltiplas possibilidades de reencenação da escrita, preservando assim o prazer infantil de imaginar e ansiar pela próxima estória ou, antes disso, pela folha de papel vegetal que resguarda o tesouro pictográfico da gravura a cores e da frase lapidar que acompanharão toda a aventura seguinte. Os realizadores conseguem a transposição ternurenta da leitura para o cinema, dando um complemento cinético à memória de um ato em si pré-cinemático – a imaginação.

Na folha de rosto, entre várias informações, 1873 figura como data de publicação destas baladas e outros contos da fronteira americana (And other tales of the American Frontier). A sugestão de antiguidade do objeto-livro confere-lhe valor e confunde-se com autenticidade – um livro “falso” que corrobora a veracidade da lenda, num jogo de recíproca verosimilhança entre texto e imagens, escrita e cinema. Tudo nos Coen é um truque, um jogo dentro de um jogo.

– “True story” – vai dizendo o velho…

 

Our revels now are ended. These our actors,
As I foretold you, were all spirits and
Are melted into air, into thin air:
And, like the baseless fabric of this vision,
The cloud-capp’d towers, the gorgeous palaces,
The solemn temples, the great globe itself,
Yea, all which it inherit, shall dissolve
And, like this insubstantial pageant faded,
Leave not a rack behind. We are such stuff
As dreams are made on, and our little life
Is rounded with a sleep.

William Shakespeare (1611) The Tempest, Act 4 Scene 1


“Meal Ticket” é a terceira estória d’ A Balada de Buster Scruggs (2018), filme dos irmãos Coen.

 

Bibliografia

BARTHES, Roland. (1977) 1987. Image, Music, Text. Traduzido por Stephen HEATH. London: Fontana Press.
———. (1982) 2009. O Óbvio e o Obtuso. Obras de Roland Barthes. Lisboa: Edições 70.
BUTLER, Shane. 2015. The Ancient Phonograph. New York, NY: Zone Books.
DOLAR, Mladen. 2006. «Introduction: Che bella voce!» Em A voice and nothing more, pp.3-11. Short circuits. Cambridge, Mass: MIT Press.
SCOTT, A.O. 2018. «‘The Ballad of Buster Scruggs’ Review: A Grim Western From the Coen Brothers». The New York Times, 8 de Novembro de 2018, online edição. https://www.nytimes.com/2018/11/08/movies/the-ballad-of-buster-scruggs-review.html.
STERNE, Jonathan. 2003. The audible past: cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press.

Fontes:

A Bíblia: Génesis 4
William Shakespeare [1609] Sonnet 29 & 30
William Shakespeare [1611] The Tempest, Act 4 Scene 1
Percy Bysshe Shelley [1814] Ozymandias
Abraham Lincoln [19 de novembro de 1863] The Gettysburg Address

 

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