Voz, três solos: invocação

Fátima Miranda: a mulher-xamã


Coincidiu a vinda de Fátima Miranda ao Porto, no dia 14 de Maio de 2017, com a Rua das Carmelitas, 100, e com um ciclo de performances intitulado Solilóquiossinais que só ela, enquanto áugure – que tira presságios do voo e canto das aves –, poderia conjugar nesta sala de plantas suspensas – “carmelo”, do hebraico “karmel” (כַּרְמֶל): jardim – e amplos espelhos repetindo as três janelas ogivadas com vista para a Cordoaria. Sala cheia na penumbra, aguardando o começo

Fátima Miranda. 1992. “Hálito” [excerto], em Las Voces De La Voz.

Introito

Do fundo da sala, dois sons: o retinir de um címbalo e o fio de voz acutíssima em melodia distante. Pelo corredor central desliza lento o ostentoso vestido rubro de Fátima Miranda, tal qual um theremin ambulante. Chega ao palco.

Segunda Cena

À direita, três alfarrábios amontoados no cimo de um escadote, ao qual Fátima Miranda subirá morosamente, sem nunca perder o parcial harmónico sustentado. Atingido o topo, pousa cuidadosamente o címbalo, substituindo-o pela taça tibetana. Após uns momentos lá no alto, pousa de novo os objetos e desce ‘cantando’.

 Tampura, tocada por B. Balasubrahmaniyan. Wesleyan University

Malevitch (1913) figurino para Vitória sobre o Sol

Da direita soa um bordão de tampura, enquanto F.M. se dirige ao recanto da esquerda para tirar o quimono vermelho, exibindo agora um negro contrastante de largas abas, em jogo figurinista que tanto se aplicaria à Vitória sobre o sol (1913) de Kruchenikh e Malevitch 1 como a uma récita de teatro tradicional japonês. Caído o tecido, ergue-se agora uma sombrinha rosada da qual se desprende novo tinido, um espanta-espíritos que a acompanhará ao centro do palco, onde gira continuamente sobre si mesma até à emergência da tontura, metal e voz tinindo perpetuamente…

Terceira Cena

Pousados os objetos, sem nunca se abster de bordão ou voz, senta-se numa arca à esquerda, ajeita o cabelo vermelho, afina um diapasão no cotovelo, toma um livro da cómoda, abre-o e, como se lesse, ataca os graves que lhe devolvem os harmónicos mais cristalinos. Passa os olhos pelas páginas abertas do livro e, sem palavras, inicia a prosódia gestual e gutural de um ritual prenhe do imaginário asiático. A pseudonarrativa – que não assoma paródia, de tão cerimonialdecorre sequenciando um suntuoso vocabulário de expressões corporais, que é, no fundo – se não entendermos a língua nipónica –, o que retiramos de um espetáculo de kabuki. A prática desta forma de teatro japonês é ainda marcadamente masculina, apesar de fundada por mulheres:

Okuni2 uma sacerdotisa do Grande Templo de Izumo, liderou em 1603 uma trupe de homens e mulheres até Kyoto, fazendo as primeiras apresentações de nembutsu odori [recitativo dançado] com o intuito de obter financiamento para a sua causa religiosa. Contudo, esse foi também o ano da instauração da ditadura militar em Edo, que excluiu as mulheres das formas artísticas. Segundo Toshio Kawatake, “o Kabuki feminino no Japão apenas aguentou 26 anos”. (2003, 126 ss)

Em todo o caso, pouco depois de criada a performance, a palavra “kabuki” (歌舞伎) começou por ser escrita com três ideogramas que significavam “canção”, “dança” e “habilidade” [skill] ou “mulher hábil”, ou seja, prostituta, que, tal como “habilidade”, também pode ser lida como “ki”. (KAWATAKE 2003, 85)

Só no final dos século XIX se reabriu o precedente, com a participação de uma antiga geisha, Chitose Beiha, numa peça de shinpa [teatro melodramático japonês]. Mais recentemente – este mês, no Japan Times 3 – pode ler-se uma reportagem (WHATLEY 2018) sobre o tortuoso caminho da atriz de teatro noh Hisa Uzawa em 1948 puderam as mulheres aceder aos papéis principais. Segundo Uzawa, ainda hoje se sente resistência: a mulher é quase sempre representada como demónio…

A “leitura” da estória vai-se progressivamente alardeando de forma bem peculiar, apenas com as ‘atitudes’ do discurso, as suas ‘carapaças’ expressivas, na máxima amplificação da entoação vocal sem palavras, articulando tramas de capa e espada, intrigas telenovelescas (riso na plateia) às quais o leque de F.M. dará contorno, pontuando oportunamente com as devidas estocadas.

O repertório kabuki contém peças macabras, (…) em implacável denúncia de aspetos da vida humana que devem ser negados. São peças frequentemente descritas como “cruéis e belas”. No fundo, a vida humana está repleta não só de crueldade mas de outros demónios que são as sementes da tragédia e do infortúnio: inveja, vício, monstruosidade, tortura… Esses lados negros e sombrios da vida que devem ser condenados, mas que nenhum ser humano consegue evitar completamente, são aqui realisticamente retratados.” (KAWATAKE 2003, 172)

Da plateia, seguimos atentamente e “percebemos” a “narrativa” de toda aquela oralidade gestual que não participa da escrita nem da fala, mas da leitura e da voz: F.M. lê-nos aquele calhamaço sem falar, projetando a visualidade ou a géstica da escrita sem articular a correspondência sonora convencionada; o som está mais perto do movimento – do corpo, da mão – do que ao pé da letra.

No Kabuki, a envolvência musical não se confina aos músicos; a própria linguagem do ator é em si música. Por mais realista que seja uma peça, os seus diálogos nunca são os da fala quotidiana. (KAWATAKE 2003, 95)

Quarta Cena

A voz acusa cansaço, mas a performance prossegue a sua via simbólica: F.M. descalça um sapato, abre nova gaveta, retira pulseira com guizos, ata-os ao tornozelo, marca irregular o ritmo com o pé, junta-lhe castanholas, faz-se estátua, abre os braços em cruz, puxa da garganta os graves… nas pausas dramáticas, as castanholas sonantes A feiticeira, demónio, xamã, ora entra plateia adentro, ora regressa para lutar com a sua sombra, rosnando, relinchando, esgravatando com a voz.

No decurso da iniciação, o futuro xamã deve aprender a linguagem secreta que utilizará durante as sessões para comunicar com os espíritos e os espíritos-animais. (…)
Castagné apresenta-nos o baqça tártaro-quirguiz correndo em torno da tenda, pulando, rugindo, saltando: ele “ladra que nem um cão, fareja a audiência, muge como um boi, berra, bale como um cordeiro, grunhe como um porco, relincha, canta, imitando com admirável precisão o grito dos animais, o canto dos pássaros, o ruído do seu voo, etc., o que muito impressiona a assistência”. (CASTAGNÉ 1930, 93; apud ELIADE [1951] 1968, 91 ss.)

Da gaveta retira mais guizos e sinos e pulseiras retinentes, acresce-lhe berimbau de braço e de boca saturando a sala, já sem capacidade de absorção sonora; da gaveta saem agora aviões e carrinhos de plástico em miniatura, brinquedos automáticos postos a funcionar, mecânica e voz em concorrência, com onomatopeias sintéticas de uma pequena consola plástica berrando sons de animais que troçam dos ruídos vocais, porco, vaca, galo, em chinfrim explosivo, caótico caos surpreendendo a improvisação sonora.
Esta parte do espírito e da linguagem animal a cabo de um aparelho eletrónico [gadget] vem desafiar a tradicional parafernália mística (ossos, pedras, etc.), enquadrando a cultura espiritual humana os mais recentes dispositivos elétricos e eletrónicos (cf. Prof. Jamba e o seu anúncio viral nas redes sociais) – se o xamã antigo lidava com os espíritos e as traduções do além, hoje talvez o além já tenha chegado aqui, “à mão de semear”. Esta proximidade ou incorporação quase protésica dos média, neste enquadramento místico específico, justifica-se paradoxalmente pela sua obsolescência: os dispositivos desatualizados, cujos programas já não “correm”, ou os aparelhos com maior interferência são justamente os convocados para veicular as flébeis vozes da distância, salvaguardando-se desta forma o problema da fonte, o complexo da sua perda ou, talvez, da falha do sinal, alimentando assim, com a ameaça da possível ausência de comunicação, o coro gigante de todas as vozes deste mundo e do outro.
Numa aproximação que não podia ser mais antipódica entre música eletrónica e xamanismo, eis uma descrição de concomitância:

Outro exemplo de xamã-rádio pode ser encontrado no xamanismo feminino Shipibo- Conibo, que já vimos usar “cabos elétricos” na construção de uma verdadeira medicina máquina. Segundo Anne-Marie Colpron, além de se referirem a “cabos e postes elétricos” as xamãs usam freqüentemente a palavra “máquina” em seus “cantos xamânicos” quando se transformam em máquinas como “ventilador” (“que afasta os ‘maus ares'”), “motor” (“que reaquece o doente”) e “rádio” (“que emite ‘cantos benéficos'”), entre outras. No caso do rádio, as xamãs se transformam nessa máquina pois, de maneira comparável aos xamãs Araweté, não são elas a fonte do “canto”, mas sim seus “‘aliados’ que cantam através de seus corpos” – uma xamã em especial, que tem entre os “acessórios” fornecidos por seu “auxiliar” um “gravador invisível” que lhe permite reter facilmente os ‘cantos xamânicos'”, se refere à sua “coroa” ritual justamente como “antena de rádio”, por ela lhe permitir “ligar seu pensamento […] àquele de seus auxiliares” e assim alcançar uma “‘recepção melhor’ de seus ‘cantos’”. (COLPRON 2005, 108; apud FERREIRA 2006, 196)

Em Fátima Miranda, o exotismo vocal não se aparta da extravagância performática (por sua vez, nunca exclusivamente vocal), que se extasia e extenua por via de um estado ritualista que atravessa todo o espetáculo: atécnica de êxtase” que, segundo Mircea Eliade, corresponderia a uma primeira definição possível de xamanismo ([1951] 1968, 22).
Sem nunca termos presenciado um xamã, arriscamo-nos a confirmar a piada de Stravinsky ([1947] 1971, 67), segundo a qual um “camponês, ao ver pela primeira vez um dromedário no Jardim Zoológico o examina pormenorizadamente, sacode a cabeça e ao ir-se embora diz, com grande gáudio dos circunstantes: “Não é verdadeiro.» o há propriamente uma origem clara – “…não é possível encontrar no mundo ou na história um fenómeno religioso ‘puro’ e perfeitamente ‘original’”, escreve Eliade ([1951] 1968, 27); contudo, há traços que atravessam a dramaturgia de Fátima Miranda e que condizem com as descrições: encenação marcadamente oriental, desde o canto multifónico mongol (ou de Tuva), passando pelo figurinismo do espampanante e colorido quimono, até às expressões faciais kabukianas 4 e aos separadores rítmico-melódicos entre cada cena.

Claro que, neste caso, não se reuniram as pessoas no “jardim” [/ “carmelo”]-suspenso na Rua das Carmelitas com vista a uma cura ou a uma comunicação do além5, e desconhece-se se Fátima Miranda evita ou não os transportes aéreos (cf. TERZANI 2016), mas a fronteira é constantemente testada, seja por homenagem, brincadeira ou verdadeira reencarnação vocal.
No entanto, poder-se-ia talvez considerar esta performance (ou postura) como um neoxamanismo performático.

E cantando aguda pelo corredor, tal como entrou, F.M. afasta-se…

Epílogo

Palmas, filas em pé, Bis!

Querem que repita estes sons grotescos?
Querem que cante eu, ou cantam vocês?
Afina com diapasão. São sons esquisitos, mas há que afinar.
bios e todo o corpo a produzir som. Todos podem cantar: em casa, no quarto, na casa de banho, etc.
É preciso silêncio para ouvir o som e as vozes desta sala – cada local tem uma voz própria.
Som de boca fechada. Não significa calarmo-nos.
Multissom vocal, a sala toda soando: murmúrios e zumbidos do público, Fátima Miranda solando por cima. Amplifica-se a coletividade sonora e a consciência vocal de si.

Hisa Uzawa, a propósito da sua arte, recorre aos ensinamentos de dramaturgo “Zeami (1363-1443), que “…entendia o vínculo entre sopro, noh e música… (…)
O poder para transformar as palavras em performance advém do sopro alicerçado no corpo. A relação entre voz e performance é extremamente importante. O som vem do sopro e o sopro vem do corpo”. (Hisa UZAWA apud WHATLEY 2018)


Fátima Miranda (1952, ES) dirigiu a Fonoteca da Universidade Complutense de Madrid entre 1982 e 1989. Foi por essa altura que iniciou as suas investigações vocais.
Nos dias 30 e 31 de Outubro de 2018, orientará o primeiro Curso Monográfico dedicado à Postura e gesto fonador, ginástica laríngea e anatomias conexas.

Bibliografia

AKIN SARI, Burcu, Kadri KARAER, Şahin BODUR, e A. Şebnem SOYSAL. 2008. «Case Report: Autistic Disorder in Kabuki Syndrome». Journal of Autism and Developmental Disorders 38 (1): 198–201. https://doi.org/10.1007/s10803-007-0433-x. CASTAGNÉ, Joseph. 1930. Magie et exorcisme chez les Kazak-Kirghizes et autres peuples turks orientaux. Paris: Librairie Orientaliste Paul Geuthner. COLPRON, Anne-Marie. 2005. «Monopólio masculino do xamanismo amazônico: o contra-exemplo das mulheres xamã shipibo-conibo». Mana 11 (1): 95–128. https://doi.org/10.1590/S0104-93132005000100004. EDELSON, Loren. 2009. Danjūrō’s Girls: Women on the Kabuki Stage. 1. ed. Palgrave Studies in Theatre and Performance History. New York, NY: Palgrave Macmillan. ELIADE, Mircea. (1951) 1968. Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase. 2a. Bibliothèque Scientifique. Paris: Payot. FERREIRA, Pedro Peixoto. 2006. «Música Eletrônica e Xamanismo: técnicas contemporâneas do êxtase». PhD Thesis, Campinas, S. Paulo: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Repositório da Produção Científica e Intelectual da Unicamp. http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280496. GOLDBERG, RoseLee. (1979) 2012. A arte da performance: do futurismo ao presente. Lisboa: Orfeu Negro. KAWATAKE, Toshio. 2003. Kabuki: Baroque Fusion of the Arts. Traduzido por Frank Connell HOFF e Jean HOFF. 1st English ed. LTCB International Library Selection, no. 13. Minato-Ku, Tokyo: International House of Japan. TERZANI, Tiziano. 2016. Disse-me um adivinho : em viagem pelos mistérios do extremo Oriente. Traduzido por Margarida PERIQUITO. 1a ed, 3a reimp. Lisboa: Tinta da China. http://bibliografia.bnportugal.pt/bnp/bnp.exe/registo?1879391. WHATLEY, Katherine. 2018. «Living and Breathing History, through Noh». The Japan Times, 1 de Março de 2018. https://www.japantimes.co.jp/culture/2018/03/01/stage/living-breathing-history-noh/.

Discografia

MIRANDA, Fátima. 1992. Las Voces De La Voz. Cd. Vol. 5. Espanha: Unió Músics (UM).
———. 1994. Concierto En Canto. Cd. Vol. EEM 003. Espanha: El Europeo Música.

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