ciclo Voz e Auralidade nas Artes Performativas

Coimbra, 7 – 10 fevereiro, TAGV

voz à boca de cena, voz de cena à boca e cena de voz à boca

O ciclo Voz e Auralidade nas Artes Performativas constitui uma mostra de manifestações artísticas onde se exprime a diversidade do suporte da linguagem no âmbito do que se tem vindo a designar como teatro expandido, explorando gestos vocais alterados pela exigência de uma escuta que antecede o falar. Este exercício traz a jogo as variantes da voz em cena, numa dinâmica combinatória que compreende as suas diversas extensões: voz à boca de cena, voz de cena à boca e cena de voz à boca, consoante o foco das propostas artísticas. Tais mutações definem a razão de ser deste ciclo que, antevendo a multiplicidade destas práticas, se apresenta sob a forma de espetáculos, instalações, passeio sonoro, debate e edição.

Continue reading

Conferência de Nuno Meireles sobre a representação em Gil Vicente

Em função do adiamento, por motivo de força maior, da conferência com que Nuno Miguel Neves abriria o ciclo de conferências do VOX MEDIA para 2023-24, a conferência de Nuno Meireles, com o título “A Voz que Reescreve? O caso da representação do teatro de Gil Vicente”, desempenhará agora essa função de abertura do ciclo. Recordamos que a conferência terá lugar no dia 19 de dezembro, pelas 18h. Apresentamos em seguida uma sinopse da intervenção de Nuno Meireles:

Falarei de escrita e objetos. Mediações, teatro e vozes. E de encenações.

Um autor escreve teatro. Pode fazê-lo dentro de uma ideia reconhecível de género literário e até de teatro. Por vezes, o autor reescreve esses textos, fazendo várias versões. Compreendemos reescrita como a alteração escrita de algo com existência prévia. No entanto, proponho uma outra noção de reescrita de um texto dramático-literário: reescrita pela voz.

Sabemos que uma palavra pode ter várias entoações, produzindo vários significados. Os significados possíveis multiplicam-se em todo um texto e na sua encenação em palco. Dizendo palavras escritas há centenas de anos, podemos passar de uma ideia reconhecível de género literário e de teatro para outro género e ideia de teatro. Chamaremos a esta proposta de A Voz que Reescreve. Para ilustrar esta sugestão, pegarei no caso do mais representado dos autores em Portugal: Gil Vicente. Aquilo que Vicente escreveu dentro de moldes medievais, tal como assistimos agora, é claramente reescrito pela voz. Não se tocando na forma das frases ou nas palavras, temos muitas encenações (filmadas) a que corresponde um teatro do nosso tempo.

Na forma impressa, Gil Vicente é medieval. Na sua forma representada (agora), é moderno. Falando de mediações, arrisco generalizar: na forma de livro, Vicente é medieval e faz farsas, moralidades e comédias. Na forma de encenações filmadas, é moderno, e fornece palavras para teatro do absurdo ou teatro brechtiano.

Nuno Meireles é Licenciado em Estudos Teatrais – Interpretação (ESMAE, 2001). Doutorado em Materialidades da Literatura (Universidade de Coimbra, 2023. Orientação de José Augusto Cardoso Bernardes) com a Tese “A voz que reescreve: farsas, comédias e moralidades de Gil Vicente lidas com o ouvido em mediação videográfica. Preliminares para um arquivo digital performativo do teatro vicentino”. Foi bolseiro da FCT (2018-2022). Membro Colaborador do Centro de Literatura Portuguesa (FLUC). Tem publicado artigos e feito comunicações sobre o teatro de Gil Vicente, as suas vozes e a encenação contemporânea do autor. Docente em cursos superiores de teatro no Porto. Na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, leciona atualmente História do Teatro, Dramaturgia e Reportório Dramático. Na Escola Superior Artística do Porto, leciona Interpretação.

Estreou-se como ator na Expo 98 com o Teatro de Marionetas do Porto. Participa regularmente em recitais de poesia e em leituras encenadas de poemas. Autor dos textos dramáticos “Casa de tantos quadros” e “Os últimos dias do quotidiano de Helène K.”, foi responsável pela dramaturgia e encenação de “Leixai-me ouvir e folgar – música e drama em Gil Vicente” e “As Obras Completas de Gil Vicente em 45 minutos”. Na Casa da Música (Porto) encenou em estreia nacional “O Grande Enormo – Zaragata em Si Bemol” (Morgan/Pochin) e “Orkestrioska”, ambos dirigidos a um público infanto-juvenil. Tem um projeto a solo, Teatro do Filósofo com o Parvo atado ao Pé, em que parte de textos de Gil Vicente aliando investigação e criação teatral.

Recordamos ainda que as conferências do VOX MEDIA pressupõem inscrição prévia. Segue-se o formulário de inscrição na conferência.

O som da liberdade no drama shakespeariano

O som da liberdade no drama shakespeariano

A musicalidade de Shakespeare deve-se não somente ao inglês, com seus fonemas bastante melodizáveis, com palavras mais curtas e de caráter vocálico (embora mais consonantal do que o inglês americano), sendo um idioma muito propício  às combinações de altura, por exemplo. Mas, deve-se também à mistura que o poeta produziu entre os gêneros e os afetos por meio de seus registros formais ou lexicais.

A complexidade dos sentimentos que podemos simplesmente ouvir em Shakespeare, além de vir da própria língua, vem da riqueza de situações e de personagens construídas pela combinação do alto com o baixo (tão defendida e tão habilitada por Hugo e Goethe), do sublime com o grotesco, dos versos brancos com as rimas, do metro com a prosa, dos trocadilhos e das canções com a linguagem direta. Sua estrutura e sua forma são tão variadas quanto seu conteúdo.

Do mesmo modo que não podemos dizer qual a sua visão de mundo, não podemos estabelecer regras fixas para seus efeitos sonoros.  Há uma certa imprevisibilidade no ritmo, nas alturas possíveis, no timbre ou no andamento, que poupa, da monotonia e do enfado, os seus ouvintes.

Apesar da associação imediata ao pentâmetro iâmbico, Shakespeare não escreveu somente assim. O “ritmo do coração” muda de pé, elimina ou acrescenta sílabas e desloca acentos, mesmo em peças escritas inteiramente em versos, brancos ou rimados, como Richard II e King John.

Não obstante, haja preciosos trabalhos sobre o aspecto sonoro de sua pena, indicando certa tendência das variações nas peças shakespearianas, a fortuna crítica não encontra um padrão inequívoco nas escolhas do dramaturgo.

Apesar de essa percepção abrir um campo vasto para que as pesquisas possam estabelecer sempre novas relações, não é possível ignorar que as variações formais do texto shakespeariano não contemplam, o tempo todo, nem as classes socais, nem o caráter ou o estado das personagens, nem o tom cômico ou trágico da ocasião. Metro e prosa, rima e verso branco servem a gregos e a troianos sem uma rigidez clara e distinta ou uma preferência poética.

Marlowe parece preferir os versos brancos, desfazendo-se, de certa forma, das rimas, como indica no prólogo de Tamburlaine:

From jigging veins of rhyming mother-wits,

And such conceits as clownage keeps in pay,

We’ll lead you to the stately tent of war,

Where you shall hear the Scythian Tamburlaine

Threatening the world with high astounding terms

 O Bardo, por sua vez, usa as rimas na economia do texto com diferentes funções.  Embora sejam mais recorrentes em temas altos como o amor e a morte, também as usa para chistes como a fala de Drômio de Siracusa, em The Comedy of Errors :‘Was there ever any man thus beaten out of season,/When in the why and the wherefore is neither rhyme nor reason?

E se, por outro lado, alguns dramaturgos elisabetanos também gostavam de brincar com a melodia das homofonias, como Heywood e Dekker, por exemplo, ainda assim Shakespeare tem maior riqueza timbrística, uma vez que, se não inventou palavras e expressões, levou o mérito, ou por tê-las registrado primeiro ou por tê-las recolocado em outros sentidos.

Quanto à prosa, se as cartas não costumam estar em versos, há pelo menos uma em soneto, a de Helena para a Condessa, em All’s Well That Ends Well:

I am Saint Jaques’ pilgrim, thither gone.

Ambitious love hath so in me of ended

That barefoot plod I the cold ground upon,

With sainted vow my faults to have amended.

Write, write, that from the bloody course of war

My dearest master, your dear son, may hie.

Bless him at home in peace, whilst I from far

His name with zealous fervor sanctify.

His taken labors bid him me forgive;

I, his despiteful Juno, sent him forth

From courtly friends, with camping foes to live

Where death and danger dogs the heels of worth.

He is too good and fair for death and me,

Whom I myself embrace to set him free

E do mesmo modo que vemos a prosa na loucura de Hamlet, vemo-la em seus momentos de grande lucidez ou reflexão:

Hamlet

For if the sun breed maggots in a dead dog, being a

god kissing carrion,–Have you a daughter?

Lord Polonius

I have, my lord.

Hamlet

Let her not walk i’ the sun: conception is a

blessing: but not as your daughter may conceive.

Adiante, Hamlet reflete, com beleza e num tom bastante patético e imagético, sobre a vida, ainda que falando em prosa aos amigos Rosencrantz e Guildenstern :

 I have of late–but wherefore I know not–lost all my mirth, forgone all custom of exercises; and indeed it goes so heavily with my disposition that this goodly frame, the earth, seems to me a sterile promontory, this most excellent canopy, the air, look you, this brave o’erhanging firmament, this majestical roof fretted with golden fire, why, it appears no other thing to me than a foul and pestilent congregation of vapours. What a piece of work is a man! how noble in reason! how infinite in faculty! in form and moving how express and admirable! in action how like an angel! in apprehension how like a god! the beauty of the world! the paragon of animals! And yet, to me, what is this quintessence of dust?

A célebre explicação de Jacques, em As You Like It, sobre as idades do homem, mostra a naturalidade com que Shakespeare promovia efeitos diversos na mesma fala. Nela, a um só tempo, ri das características mais corriqueiras do homem, com metro e eloquência, para no último verso, com não menos poesia, valendo-se do polissíndeto e da gradação, imprimir uma dura e triste verdade sobre o fim da vida:

All the world’s a stage,

 And all the men and women merely players;

 They have their exits and their entrances,

 And one man in his time plays many parts,

His acts being seven ages. At first the infant,

 Mewling and puking in the nurse’s arms;

 And then the whining schoolboy, with his satchel

 And shining morning face, creeping like snail

 Unwillingly to school. And then the lover,

Sighing like furnace, with a woeful ballad

 Made to his mistress’ eyebrow. Then a soldier,

 Full of strange oaths, and bearded like the pard,

 Jealous in honor, sudden and quick in quarrel,

 Seeking the bubble reputation

Even in the cannon’s mouth. And then the justice,

 In fair round belly with good capon lined,

 With eyes severe and beard of formal cut,

 Full of wise saws and modern instances;

 And so he plays his part. The sixth age shifts

0 Into the lean and slippered pantaloon,

 With spectacles on nose and pouch on side;

 His youthful hose, well saved, a world too wide

 For his shrunk shank; and his big manly voice,

 Turning again toward childish treble, pipes

And whistles in his sound. Last scene of all,

 That ends this strange eventful history,

 Is second childishness and mere oblivion,

 Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything

Rir da preguiça do estudante, do exagero do enamorado ou da ambição do soldado, não tira a desolação incontornável de faltar tudo à velhice. O tom elegante não o impede de dizer as coisas jocosas, assim como tal jocosidade não condena a comoção das últimas linhas.   Shakespeare provocava o riso nas tragédias, tanto quanto poderia provocar angústia nas comédias, sem prejudicar, contudo, a adequação ao todo, como protestaram seus detratores neoclássicos.

A linguagem de Edgar, em King Lear, é uma personagem exemplar da fusão dos gêneros e das formas em Shakespeare, pois o caráter e as ações do filho do duque de Gloucester são construídos em tons e formas múltiplas em suas falas, sem que por isso condene o todo, mas antes o enriqueça.

Embora sua heterogeneidade seja fruto da emulação de certa liberdade insular, dominante no teatro elisabetano, que já era, formalmente, livre dos dogmas das poéticas continentais, em Shakespeare, ela tende a ainda mais movimento e modulações, talvez, para melhor servir a um drama com mais especulações filosóficas.

A liberdade filosófica que ele dá ao leitor atento, dá também ao ouvinte distraído. A multiplicidade da plateia parece que possa ter-lhe sugerido mais este recurso para conquistar comerciantes e pobres, nobres e poetas – o recurso do som heterogêneo, sugestivo, mas sem aviso prévio e sem uma constante na aplicação dos elementos estéticos em razão dos afetos ou de seus empregos mais frequentes.

Como a imperícia de Shakespeare, “do pouco latim e menos grego”, está fora de cogitação (de fato, ele parece ter conseguido fazer tudo em teatro), essa polivalência poética, das unidades sintáticas às sequência das cenas, pode indicar sua intenção em trabalhar, para sua filosofia inapreensível, uma linguagem igualmente plural.   Como se quisesse dar à forma uma liberdade cuja único compromisso era com o espetáculo e com as suas ideias complexas que, se não pudessem ser percebidas em sua exuberância poética, pudessem, ao menos, ser sentidas por meio de sons familiares, agradáveis, engraçados e soturnos – contrastados ou não.

Assim, a variedade dos recursos sonoros teria o condão de preencher as lacunas do que não podia, na imediatez do teatro ou na ignorância do público, ser compreendido, além de despertar os que estivessem, de alguma forma, dormindo. Uma multiplicidade que não só servia a uma plateia em tudo diversificada, mas também aos diversos sentidos e ideias que a alta poesia pudesse esconder.

Nem só erudito, nem só popular, nem só artificiosa, nem só transparente, a sonoridade do drama shakespeariano não pode ser especificada, assim como não se pode especificar sua cosmovisão a qualquer doutrina. Em Shakespeare, assim como não são planas as suas personagens, não o são suas imagens, seus sons ou suas ideias. Nada é sem relevo ou opaco. Ouvimos o ritmado e a arritmia, o pausado e o acelerado, a profusão e a parcimônia, as cacofonias e as rimas, da mesma maneira que ouvimos o bem e o mal, o riso e a lágrima, o ser e o não ser.

A voz de uma personagem de 1614

A peça Fuenteovejuna, do dramaturgo espanhol Lope de Vega, é de 1614-1619. Trata de uma vila, com o nome de Fuenteovejuna, tiranizada por um comendador. A vila, após sofrer humilhações e abusos, revolta-se e mata o comendador. Num inquérito ordenado depois pelo rei, toda a vila é interrogada e, sob tortura, cada pessoa diz que foi Fuenteovejuna que matou o comendador. Não havendo formalmente um único culpado, o rei regula o incidente e decide-se pelo perdão colectivo à vila.

Podemos dizer que o comendador é um tirano (para lá de outras considerações, muito seiscentistas, sobre o modo errado como ele faz a sua função e sobre o poder inquestionável do rei).

Cada tempo verá a personagem do comendador de modo diferente e cada circunstância o representará com uma determinada voz: em 1973/74, em Portugal,  sob a ditadura de António Oliveira Salazar/Marcello Caetano, a peça Fuenteovejuna foi representada pelo Teatro Experimental de Cascais. Tiveram 14 visitas da censura que resultaram na interdição do espectáculo. Sugiro que a voz do comendador terá motivado fortemente a censura:

 

A voz do comendador é a imitação rigorosa da voz de António Oliveira Salazar. Em 1973/74, a personagem do tirano seiscentista tinha a voz do ditador português. Isto falara para os ouvidos da censura, do público do espectáculo e fala ainda mais para um país já saído da ditadura.

No vídeo, a representação de João Vasco na encenação de Carlos Avilez.

Em conclusão, o teatro é fruto do seu tempo, falando para os seus contemporâneos. O teatro pode ser fixado e apreciado enquanto obra dramática e literária, contudo será entre actor e espectador que se realiza. A voz em palco é um traço dessa relação e em cada geração e tempo será dada uma voz diferente para cada ideia.

Podcast Vox Lit – Episódio 3

Vox Lit – um podcast que põe a literatura a falar

Vox Lit é o podcast que dá a ouvir a voz das materialidades da literatura. Um desafio entre exploração e divulgação da nossa constelação matliteana.

Vox Lit é uma iniciativa Vox Media com participação ativa de outros estudantes e doutorados do Programa Doutoral FCT em Materialidades da Literatura.

Episódio 3:
carta falada (Elizama Almeida)
Técnica e Utopia (Ana Marques)
Hipoglote (Tiago Schwäbl)
Comprimido de Leitura (Mafalda Lalanda e Elena Soressi)
Vozes de Gil Vicente (Nuno Meireles)

Podcast Vox Lit – Episódio 1

Depois do programa piloto, estreou recentemente o primeiro episódio do podcast Vox Lit:

Vox Lit é o podcast (de carácter mensal) que dá a ouvir a voz das materialidades da literatura. Um desafio entre exploração e divulgação da nossa constelação matliteana.

Episódio 1:
Hipoglote
Exercícios Experimentais
Léxico (Parte 1: Grão)
Comprimido de Leitura
Léxico (Parte 2: Cyborg)
Vozes de Gil Vicente
Matéria de Escuta

Montagem: Mafalda Lalanda, Nuno Meireles, Elena Soressi, Tiago Schwäbl, com Jaqueline Conte e Jordan Eason.

Ver (e ouvir) “As Três Irmãs”, no Porto

Ainda é possível assistir ao espectáculo “As Três Irmãs”, no Teatro Carlos Alberto (Porto), numa produção Ensemble – Sociedade de Actores/ Teatro Nacional São João.

A encenação de Carlos Pimenta, partindo do texto homónimo de Anton Tchékhov (em tradução de António Pescada), dá um relevo superlativo ao som e às vozes.

Segue o texto de Francisco Leal, que no espectáculo assina a sonoplastia e desenho de som, cruzando as materialidades da literatura, teatro e arqueologia dos media.

A Máquina Falante
“Deus deu ao mundo dois ouvidos mas apenas uma boca
para que ele oiça o dobro do que fala”
Epicteto, o estoico
E se pensássemos o microfone como um território em que a tecnologia é a ferramenta que permite a materialização da palavra e onde a realidade só acontecesse no plano sonoro?
Nestas Três Irmãs, a perspectiva divide-se entre a ideia da escuta radiofónica, em casa, individual e num espaço privado, e o voyerismo do ver fazer, da performance numa sala de teatro, colectivamente e num espaço público.
Num estúdio de gravação de som, busca-se fabricar cenários e ações na reconstituição da narrativa. A imagem é sonora. As relações dos personagens são mediadas pelos microfones e o sistema de amplificação devolve à audiência essas relações. Será, então, que o que se passa fora da captação dos microfones acontece?
O dispositivo sonoro que permite a experiência sensorial da auralidade, poder-se-à considerar, então, uma Máquina Falante. É, simultaneamente, um objecto e o espaço que cria, o lugar onde a peça de teatro radiofónico tem a sua projeção pública, como se de um filme se tratasse.
Nada de realmente novo, até aqui.
Eça de Queirós, em A Cidade e as Serras, ao apresentar a civilização “do Paris” de Jacinto, refere o teatrofone como um dos inúmeros aparelhos do progresso de 1887 que habitam o seu 202. Um serviço de assinatura telefónica, hoje equivalente aos canais de subscrição da televisão por cabo, que permitia a audição de excertos de ópera ou de peças transmitidas em direto, através de uma rede de teatros aderentes a este serviço de teatro à distância – “Théâtre Chez Soi”. Em casa, os assinantes dispunham de um aparelho para ouvirem por dois auriculares estas transmissões telefónicas, um sistema pioneiro da estereofonia. Este serviço acaba por falir, em 1932, com o crescente sucesso da radiodifusão e do fonógrafo. Por essa altura, o impacto das produções de teatro radiofónico, na cultura anglo-americana, era considerável. No anuário da BBC, de 1931, prescrevia-se que a audição do microphone drama, também designado broadcast drama, ou wireless drama, fosse feita com a telefonia instalada numa sala silenciosa e às escuras, reduzindo assim “as distrações dos olhos e dos ouvidos” e melhorando a técnica de escuta do ouvinte e, consequentemente, a experiência sensorial do teatro radiofónico.
Neste espetáculo de As Três Irmãs, a produção radiofónica da peça acontece à vista, num jogo de cena híbrido, oscilando entre a representação para o microfone e a representação teatral, em que o espaço cenográfico é o mesmo do estúdio de gravação. Não se pretende uma reconstituição da arqueologia da prática desse tempo. O recurso do dispositivo de mediação desta Máquina Falante e a organização do espaço sonoro-cénico onde ocorre, permitem uma abordagem diferente da mecânica estritamente teatral. Estabelecem uma mise-en-scène sonora no confronto entre a tecnologia e a territorialidade originada pela disposição dos microfones, dos elementos acústicos próprios de um estúdio de som (biombos e parede refletora em pedra) e dos locais de produção de efeitos sonoros, em conjugação com a apropriação dos seus lugares pelos personagens e a sua utilização pelos atores. Influencia a expressão oral da contracena na produção de diferentes níveis de comunicação dos personagens, reflete-se na gestualidade e movimentação dos atores, e manipula as perspectivas da audição, na representação de diferentes planos e espaços da imagem sonora, para a materialização da narrativa.
O trabalho de sonoplastia, termo exclusivo da língua portuguesa que surge com o teatro radiofónico na década de 60, e que designava todo processo de gravação, montagem e sonorização da narrativa em suporte fonográfico (diálogos, música e efeitos sonoros), funde-se, pois, com a ação do desenho de som, o desenvolvimento do conceito sonoro e, simultaneamente, do dispositivo de projeção sonora da performance numa sala de espetáculo, desempenhando, assim, papéis duplos e complementares.
Francisco Leal, Dezembro de 2020
Fotografias de Ensaio: João Tuna/TNSJ