ciclo Voz e Auralidade nas Artes Performativas

Coimbra, 7 – 10 fevereiro, TAGV

voz à boca de cena, voz de cena à boca e cena de voz à boca

O ciclo Voz e Auralidade nas Artes Performativas constitui uma mostra de manifestações artísticas onde se exprime a diversidade do suporte da linguagem no âmbito do que se tem vindo a designar como teatro expandido, explorando gestos vocais alterados pela exigência de uma escuta que antecede o falar. Este exercício traz a jogo as variantes da voz em cena, numa dinâmica combinatória que compreende as suas diversas extensões: voz à boca de cena, voz de cena à boca e cena de voz à boca, consoante o foco das propostas artísticas. Tais mutações definem a razão de ser deste ciclo que, antevendo a multiplicidade destas práticas, se apresenta sob a forma de espetáculos, instalações, passeio sonoro, debate e edição.

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Supra-Camões

(vozes de Nuno Meireles e Mariella Augusta/música de Flávio Villar Fernandes)

Lírica em abismo. Obra interativa: mova o cursor em qualquer direção para perceber o eixo temporal expandido em combinações musicais que contemplam os afetos desses poemas cruzados.

Mais Sala Lírica: Machado de Assis e Camilo Pessanha

Sala Lírica, (projeto de Mariella Augusta e Flávio Villar Fernandes) nas suas últimas líricas dá som, música e voz a poemas de Machado de Assis e de Camilo Pessanha.

Em Sala Lírica, a música não é ilustração, mas elaboração, o texto cabe lá dentro e é resignificado. Existem alterações da voz em eco, filtro ou em  mudanças de interpretação. As palavras passam a habitar outros sentidos. Cada poema em Sala Lírica é uma nova obra.

Sala Lírica (voz de Mariella Augusta/música de Flávio Villar Fernandes)

No separador No Éter acabámos de adicionar “Sala Lírica”.

Sala Lírica oferece o diálogo entre poesia portuguesa e brasileira com a música contemporânea.

Oh Cores Virtuais Que Jazeis Subterraneas – Camilo Pessanha

Tragedia Brasileira – Manuel Bandeira

Cocktail Party – Mario Quintana

Ao Longe Os Barcos De Flores – Camilo Pessanha

Voz de Mariella Augusta (investigadora associada ao grupo Vox Media) e música de Flávio Villar Fernandes (ECA-USP e membro honorário da Academia de Música do Brasil).

Boa escuta!

O jazz de Kerouac, por Mariellla Augusta

Seguindo a tradição oral da poesia, quer para resgatá-la da antiguidade como lírica quer por estar imerso no espírito de seu tempo, Jack Kerouac buscou dar à sua poesia a velocidade e a profusão do jazz.

Se o estilo de Kerouac nasceu assim de propósito, como ele mesmo diz quando confessa seu programa, ou se ele estava apenas sintonizado com o ritmo americano com o qual convivia, não é possível precisar. Mas é fácil perceber que o escritor beat tentou mesmo emular o jazz.

Auxiliado pela escrita espontânea, garantia a imprevisibilidade das alturas; imbuído pela sua heterodoxa espiritualidade, aproximava-se dos spirituals e das worksongs ; com seus versos polimétricos, podia imitar o ritmo dos tempos quebrados; e apelando para assonâncias e aliterações produzia o scating.

Contudo, é principalmente, na sua declamação ou leitura que ouvimos o jazz – ao menos o jazz de Kerouac. Seu andamento, suas inflexões, seu ritmo é que fazem lembrar o estilo de Parker, a despeito de ele deixar as indicações gráficas em seus poemas ou em sua prosa.

Contudo, nenhum dos seus dois álbuns, quer com Steve Allen (1959) quer com Al Cohn e Zoot Sims (1960), foram bem realizados enquanto líricas.  Allen apesar de ficar no mesmo andamento, não o estava acompanhando, pois também fez um solo. A música, que por ser pianística, ajuda a parecer uma base, é na verdade uma música inteira com as complexidades de uma música em si, que poderia ser ouvida sozinha sem a presença de nenhum poema. Unida à recitação, se não conflita pela beleza, também não casa, nem enquanto lírica, nem mesmo como ambientação ou fundo. Mesmo que os afetos ditos sejam os mesmos tocados, o volume do piano está muito alto para ser fundo e a música não foi esvaziada, o suficiente, de parte dos seus elementos, para ser só um acompanhamento. A música e a voz do autor beat estão, por assim dizer,  em pé de igualdade e chegam a disputar .

Note-se, no entanto, que ambos tinham a intenção de fazer lírica, como demonstra a escolha do timbre de curto ataque, sem fortíssimos, ou mesmo o não terem feito uma simples colagem (já que Allen também era um artista e produziu de fato uma música).

Já a base de trechos do Mexico City Blues, lido em 1988 por seus amigos, como Ginsberg, e por seus admiradores, embora seja menos música, menos bem executada e menos estética, é mais baixa em volume e mais esvaziada, fazendo lembrar mais um fundo musical que, embora ainda não seja lírica, ao menos, não compete com o poema.

Já os saxofones do Blues and haikus, salvo em brevíssimos e raríssimos momentos, embora dialoguem com a leitura de Kerouac, também não foram bem concebidos como lírica. Não há propriamente uma música competindo com o poeta, há rompantes de solo que não parecem ter um sentido bem definido, não há uma construção harmônica que traduza os Haikus do “jazz poet”.

Nesse segundo caso, é como se os músicos estivessem mais imbuídos do programa de Jack, valorizando mais a espontaneidade, a liberdade e a prática da improvisação, do que com uma tradução para a linguagem musical dos poemas escolhidos.

Kerouac gravou também um álbum sem a companhia de músicos, mas esta nota não trata dessa produção.

Não parece haver, em nenhum dos dois álbuns aqui considerados, uma preconcepção do que seria tocado, uma vez que é difícil entender um propósito claro na atuação dos músicos de par com a recitação do lendário beatnik. O que resta para se perceber é apenas uma inspiração na escrita de fluxo imperturbável e na atmosfera de uma época ou de certas paisagens e ambientes de uma América regada a álcool e perdida na poeira da estrada de Kerouac.

As musicalidades da poesia, por Mariella Augusta

Nelson Rodrigues dizia que o que dói na bofetada é o som. O som da humilhação.  Sendo assim, se a ação, ao menos no drama, vale mais do que a palavra, o som valeria mais do que a ação. De fato, Chaplin renunciou às palavras, mas trabalhava de modo obsessivo as suas trilhas. Foi por causa de um som que sua florista pôde confundir um andarilho com um milionário. O som desperta. O mesmo acontece na literatura – os estados de ânimo são construídos pelo escritor, por certo, pelos significados, mas também pelos seus significantes. E todo significante é sonoro.  Ouve-se a palavra até no silêncio – do engenho ou da memória auditiva que começou a crescer ainda no útero.

O texto literário, ainda que em matéria muda, representa um objeto sonoro como acontece à notação musical. Com a diferença de que a música chegou na dissolução da nota e a literatura será sempre uma arte de fonemas.  Cada verso da poesia e cada linha da prosa são construídos como frases musicais. A ideia procura o som que as vai transmitir do mesmo modo que a melodia procura os acordes a fim de realçar ou subverter o afeto harmônico que lhe é intrínseco.

Escritor e compositor escrevem o que ouvem e ouvem o que escrevem: as organizações métricas, as distribuições rítmicas e as construções melódicas que produzem. O escritor, tal como o músico, procura a tensão e o repouso, um tempo dividido e uma colocação vocal por região. Segundo Ezra Pound, os poetas deveriam saber música, ao menos, como a sabe um músico medíocre.

Ocorre que, ao plasmar suas figuras e seus silêncios, o poeta, senhor da palavra escrita, vai deixar nos significantes parte da musicalidade que criou. Não poderá, contudo, garantir que repitam seu timbre, sua região tonal ou sequer quando ela deverá ficar forte e fraca. A materialização dos sons do poema está nas mãos daquele que o lê ou que o declama. Continue reading