O riso nas sonoridades de Manuel Bandeira, por Mariella Augusta

Manuel Bandeira usou os sons não só para os afetos tristes ou melancólicos, mas também para afinar seu humor. Além do conteúdo, a própria sonoridade, na sua poesia, cria um efeito cômico, não raro, irônico, tanto quanto trabalha para a sua grande ternura.

A conhecida presença da música na poesia de Manuel Bandeira não depende de Jaime Ovalle ou de Francisco Mignone. Sua ideia de poesia como música preexiste às composições dos músicos com as quais se envolveu. Desde sempre, o poeta recifense mostrou uma poesia atenta ao que se ouve, fosse para fazer rir, fosse para fazer chorar; desde sempre procurou as palavras que soassem a emoção que queria representar; desde sempre confessou sua relação com a música.

Dos papos enfunados dos sapos, e seus orgulhos bem martelados, até o campo semântico ou o ritmo de notícia de jornal da tragédia de Misael, sua sonoridade está sempre a presentificar o que se diz, quer pelos fonemas, metros ou rimas (elemento que muito valorizava).

N’Os Sapos, por exemplo, o uso frequente das vogais, sobretudo abertas, de par com as consoantes, em sua maioria, oclusivas, confere ao abrir e fechar da boca força e agressividade, além de abaloar a entoação do famoso poema da semana de 22, a fim de trazer a empolação e a prepotência dos parnasianos, como que desenhando suas gabolices.

A altercação do foi, não foi, foi e do sei, não sei, sei, ridiculariza a grita do poetas ao refletir o coaxo compassado, repetitivo dos sapos: web, web, web, ou rabit, rabit, rabit.

Com os versos “Reduzi sem danos / a fôrmas a forma”,  cria um trocadilho que faz pouco da opção parnasiana, revelando-a restrita, preconcebida, tornando a vastidão da forma uma camisa de força.

Em Tragédia Brasileira, o poeta conquista o humor, de saída, pelo estranhamento ao ouvido, quando inicia um poema com a qualificação de Misael, dando-nos a sua idade e a sua profissão, imitando o tom das peças jurídicas ou das notícias criminais.

Depois, bem a seu gosto, segue elencando as mazelas físicas de Maria Elvira, dando ao leitor o quadro tragicômico de um amor desprovido da beleza ideal dos românticos.

O vai e vem, ou melhor, a fuga do marido surge num desfile de ruas e bairros que fazem o leitor seguir mentalmente o itinerário sôfrego, a fim de perceber o trabalho que Misael tem para se esconder das testemunhas dos adultérios.

Por fim, Maria Elvira, é encontrada morta, em decúbito dorsal, de Organdi Azul, dando continuidade ao tom de reportagem ou de queixa-crime, a todo tempo usado, bem como indica que a heroína estava arrumada para encontrar mais um  amante. Continue reading

As musicalidades da poesia, por Mariella Augusta

Nelson Rodrigues dizia que o que dói na bofetada é o som. O som da humilhação.  Sendo assim, se a ação, ao menos no drama, vale mais do que a palavra, o som valeria mais do que a ação. De fato, Chaplin renunciou às palavras, mas trabalhava de modo obsessivo as suas trilhas. Foi por causa de um som que sua florista pôde confundir um andarilho com um milionário. O som desperta. O mesmo acontece na literatura – os estados de ânimo são construídos pelo escritor, por certo, pelos significados, mas também pelos seus significantes. E todo significante é sonoro.  Ouve-se a palavra até no silêncio – do engenho ou da memória auditiva que começou a crescer ainda no útero.

O texto literário, ainda que em matéria muda, representa um objeto sonoro como acontece à notação musical. Com a diferença de que a música chegou na dissolução da nota e a literatura será sempre uma arte de fonemas.  Cada verso da poesia e cada linha da prosa são construídos como frases musicais. A ideia procura o som que as vai transmitir do mesmo modo que a melodia procura os acordes a fim de realçar ou subverter o afeto harmônico que lhe é intrínseco.

Escritor e compositor escrevem o que ouvem e ouvem o que escrevem: as organizações métricas, as distribuições rítmicas e as construções melódicas que produzem. O escritor, tal como o músico, procura a tensão e o repouso, um tempo dividido e uma colocação vocal por região. Segundo Ezra Pound, os poetas deveriam saber música, ao menos, como a sabe um músico medíocre.

Ocorre que, ao plasmar suas figuras e seus silêncios, o poeta, senhor da palavra escrita, vai deixar nos significantes parte da musicalidade que criou. Não poderá, contudo, garantir que repitam seu timbre, sua região tonal ou sequer quando ela deverá ficar forte e fraca. A materialização dos sons do poema está nas mãos daquele que o lê ou que o declama. Continue reading