O som da liberdade no drama shakespeariano

O som da liberdade no drama shakespeariano

A musicalidade de Shakespeare deve-se não somente ao inglês, com seus fonemas bastante melodizáveis, com palavras mais curtas e de caráter vocálico (embora mais consonantal do que o inglês americano), sendo um idioma muito propício  às combinações de altura, por exemplo. Mas, deve-se também à mistura que o poeta produziu entre os gêneros e os afetos por meio de seus registros formais ou lexicais.

A complexidade dos sentimentos que podemos simplesmente ouvir em Shakespeare, além de vir da própria língua, vem da riqueza de situações e de personagens construídas pela combinação do alto com o baixo (tão defendida e tão habilitada por Hugo e Goethe), do sublime com o grotesco, dos versos brancos com as rimas, do metro com a prosa, dos trocadilhos e das canções com a linguagem direta. Sua estrutura e sua forma são tão variadas quanto seu conteúdo.

Do mesmo modo que não podemos dizer qual a sua visão de mundo, não podemos estabelecer regras fixas para seus efeitos sonoros.  Há uma certa imprevisibilidade no ritmo, nas alturas possíveis, no timbre ou no andamento, que poupa, da monotonia e do enfado, os seus ouvintes.

Apesar da associação imediata ao pentâmetro iâmbico, Shakespeare não escreveu somente assim. O “ritmo do coração” muda de pé, elimina ou acrescenta sílabas e desloca acentos, mesmo em peças escritas inteiramente em versos, brancos ou rimados, como Richard II e King John.

Não obstante, haja preciosos trabalhos sobre o aspecto sonoro de sua pena, indicando certa tendência das variações nas peças shakespearianas, a fortuna crítica não encontra um padrão inequívoco nas escolhas do dramaturgo.

Apesar de essa percepção abrir um campo vasto para que as pesquisas possam estabelecer sempre novas relações, não é possível ignorar que as variações formais do texto shakespeariano não contemplam, o tempo todo, nem as classes socais, nem o caráter ou o estado das personagens, nem o tom cômico ou trágico da ocasião. Metro e prosa, rima e verso branco servem a gregos e a troianos sem uma rigidez clara e distinta ou uma preferência poética.

Marlowe parece preferir os versos brancos, desfazendo-se, de certa forma, das rimas, como indica no prólogo de Tamburlaine:

From jigging veins of rhyming mother-wits,

And such conceits as clownage keeps in pay,

We’ll lead you to the stately tent of war,

Where you shall hear the Scythian Tamburlaine

Threatening the world with high astounding terms

 O Bardo, por sua vez, usa as rimas na economia do texto com diferentes funções.  Embora sejam mais recorrentes em temas altos como o amor e a morte, também as usa para chistes como a fala de Drômio de Siracusa, em The Comedy of Errors :‘Was there ever any man thus beaten out of season,/When in the why and the wherefore is neither rhyme nor reason?

E se, por outro lado, alguns dramaturgos elisabetanos também gostavam de brincar com a melodia das homofonias, como Heywood e Dekker, por exemplo, ainda assim Shakespeare tem maior riqueza timbrística, uma vez que, se não inventou palavras e expressões, levou o mérito, ou por tê-las registrado primeiro ou por tê-las recolocado em outros sentidos.

Quanto à prosa, se as cartas não costumam estar em versos, há pelo menos uma em soneto, a de Helena para a Condessa, em All’s Well That Ends Well:

I am Saint Jaques’ pilgrim, thither gone.

Ambitious love hath so in me of ended

That barefoot plod I the cold ground upon,

With sainted vow my faults to have amended.

Write, write, that from the bloody course of war

My dearest master, your dear son, may hie.

Bless him at home in peace, whilst I from far

His name with zealous fervor sanctify.

His taken labors bid him me forgive;

I, his despiteful Juno, sent him forth

From courtly friends, with camping foes to live

Where death and danger dogs the heels of worth.

He is too good and fair for death and me,

Whom I myself embrace to set him free

E do mesmo modo que vemos a prosa na loucura de Hamlet, vemo-la em seus momentos de grande lucidez ou reflexão:

Hamlet

For if the sun breed maggots in a dead dog, being a

god kissing carrion,–Have you a daughter?

Lord Polonius

I have, my lord.

Hamlet

Let her not walk i’ the sun: conception is a

blessing: but not as your daughter may conceive.

Adiante, Hamlet reflete, com beleza e num tom bastante patético e imagético, sobre a vida, ainda que falando em prosa aos amigos Rosencrantz e Guildenstern :

 I have of late–but wherefore I know not–lost all my mirth, forgone all custom of exercises; and indeed it goes so heavily with my disposition that this goodly frame, the earth, seems to me a sterile promontory, this most excellent canopy, the air, look you, this brave o’erhanging firmament, this majestical roof fretted with golden fire, why, it appears no other thing to me than a foul and pestilent congregation of vapours. What a piece of work is a man! how noble in reason! how infinite in faculty! in form and moving how express and admirable! in action how like an angel! in apprehension how like a god! the beauty of the world! the paragon of animals! And yet, to me, what is this quintessence of dust?

A célebre explicação de Jacques, em As You Like It, sobre as idades do homem, mostra a naturalidade com que Shakespeare promovia efeitos diversos na mesma fala. Nela, a um só tempo, ri das características mais corriqueiras do homem, com metro e eloquência, para no último verso, com não menos poesia, valendo-se do polissíndeto e da gradação, imprimir uma dura e triste verdade sobre o fim da vida:

All the world’s a stage,

 And all the men and women merely players;

 They have their exits and their entrances,

 And one man in his time plays many parts,

His acts being seven ages. At first the infant,

 Mewling and puking in the nurse’s arms;

 And then the whining schoolboy, with his satchel

 And shining morning face, creeping like snail

 Unwillingly to school. And then the lover,

Sighing like furnace, with a woeful ballad

 Made to his mistress’ eyebrow. Then a soldier,

 Full of strange oaths, and bearded like the pard,

 Jealous in honor, sudden and quick in quarrel,

 Seeking the bubble reputation

Even in the cannon’s mouth. And then the justice,

 In fair round belly with good capon lined,

 With eyes severe and beard of formal cut,

 Full of wise saws and modern instances;

 And so he plays his part. The sixth age shifts

0 Into the lean and slippered pantaloon,

 With spectacles on nose and pouch on side;

 His youthful hose, well saved, a world too wide

 For his shrunk shank; and his big manly voice,

 Turning again toward childish treble, pipes

And whistles in his sound. Last scene of all,

 That ends this strange eventful history,

 Is second childishness and mere oblivion,

 Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything

Rir da preguiça do estudante, do exagero do enamorado ou da ambição do soldado, não tira a desolação incontornável de faltar tudo à velhice. O tom elegante não o impede de dizer as coisas jocosas, assim como tal jocosidade não condena a comoção das últimas linhas.   Shakespeare provocava o riso nas tragédias, tanto quanto poderia provocar angústia nas comédias, sem prejudicar, contudo, a adequação ao todo, como protestaram seus detratores neoclássicos.

A linguagem de Edgar, em King Lear, é uma personagem exemplar da fusão dos gêneros e das formas em Shakespeare, pois o caráter e as ações do filho do duque de Gloucester são construídos em tons e formas múltiplas em suas falas, sem que por isso condene o todo, mas antes o enriqueça.

Embora sua heterogeneidade seja fruto da emulação de certa liberdade insular, dominante no teatro elisabetano, que já era, formalmente, livre dos dogmas das poéticas continentais, em Shakespeare, ela tende a ainda mais movimento e modulações, talvez, para melhor servir a um drama com mais especulações filosóficas.

A liberdade filosófica que ele dá ao leitor atento, dá também ao ouvinte distraído. A multiplicidade da plateia parece que possa ter-lhe sugerido mais este recurso para conquistar comerciantes e pobres, nobres e poetas – o recurso do som heterogêneo, sugestivo, mas sem aviso prévio e sem uma constante na aplicação dos elementos estéticos em razão dos afetos ou de seus empregos mais frequentes.

Como a imperícia de Shakespeare, “do pouco latim e menos grego”, está fora de cogitação (de fato, ele parece ter conseguido fazer tudo em teatro), essa polivalência poética, das unidades sintáticas às sequência das cenas, pode indicar sua intenção em trabalhar, para sua filosofia inapreensível, uma linguagem igualmente plural.   Como se quisesse dar à forma uma liberdade cuja único compromisso era com o espetáculo e com as suas ideias complexas que, se não pudessem ser percebidas em sua exuberância poética, pudessem, ao menos, ser sentidas por meio de sons familiares, agradáveis, engraçados e soturnos – contrastados ou não.

Assim, a variedade dos recursos sonoros teria o condão de preencher as lacunas do que não podia, na imediatez do teatro ou na ignorância do público, ser compreendido, além de despertar os que estivessem, de alguma forma, dormindo. Uma multiplicidade que não só servia a uma plateia em tudo diversificada, mas também aos diversos sentidos e ideias que a alta poesia pudesse esconder.

Nem só erudito, nem só popular, nem só artificiosa, nem só transparente, a sonoridade do drama shakespeariano não pode ser especificada, assim como não se pode especificar sua cosmovisão a qualquer doutrina. Em Shakespeare, assim como não são planas as suas personagens, não o são suas imagens, seus sons ou suas ideias. Nada é sem relevo ou opaco. Ouvimos o ritmado e a arritmia, o pausado e o acelerado, a profusão e a parcimônia, as cacofonias e as rimas, da mesma maneira que ouvimos o bem e o mal, o riso e a lágrima, o ser e o não ser.

O riso nas sonoridades de Manuel Bandeira, por Mariella Augusta

Manuel Bandeira usou os sons não só para os afetos tristes ou melancólicos, mas também para afinar seu humor. Além do conteúdo, a própria sonoridade, na sua poesia, cria um efeito cômico, não raro, irônico, tanto quanto trabalha para a sua grande ternura.

A conhecida presença da música na poesia de Manuel Bandeira não depende de Jaime Ovalle ou de Francisco Mignone. Sua ideia de poesia como música preexiste às composições dos músicos com as quais se envolveu. Desde sempre, o poeta recifense mostrou uma poesia atenta ao que se ouve, fosse para fazer rir, fosse para fazer chorar; desde sempre procurou as palavras que soassem a emoção que queria representar; desde sempre confessou sua relação com a música.

Dos papos enfunados dos sapos, e seus orgulhos bem martelados, até o campo semântico ou o ritmo de notícia de jornal da tragédia de Misael, sua sonoridade está sempre a presentificar o que se diz, quer pelos fonemas, metros ou rimas (elemento que muito valorizava).

N’Os Sapos, por exemplo, o uso frequente das vogais, sobretudo abertas, de par com as consoantes, em sua maioria, oclusivas, confere ao abrir e fechar da boca força e agressividade, além de abaloar a entoação do famoso poema da semana de 22, a fim de trazer a empolação e a prepotência dos parnasianos, como que desenhando suas gabolices.

A altercação do foi, não foi, foi e do sei, não sei, sei, ridiculariza a grita do poetas ao refletir o coaxo compassado, repetitivo dos sapos: web, web, web, ou rabit, rabit, rabit.

Com os versos “Reduzi sem danos / a fôrmas a forma”,  cria um trocadilho que faz pouco da opção parnasiana, revelando-a restrita, preconcebida, tornando a vastidão da forma uma camisa de força.

Em Tragédia Brasileira, o poeta conquista o humor, de saída, pelo estranhamento ao ouvido, quando inicia um poema com a qualificação de Misael, dando-nos a sua idade e a sua profissão, imitando o tom das peças jurídicas ou das notícias criminais.

Depois, bem a seu gosto, segue elencando as mazelas físicas de Maria Elvira, dando ao leitor o quadro tragicômico de um amor desprovido da beleza ideal dos românticos.

O vai e vem, ou melhor, a fuga do marido surge num desfile de ruas e bairros que fazem o leitor seguir mentalmente o itinerário sôfrego, a fim de perceber o trabalho que Misael tem para se esconder das testemunhas dos adultérios.

Por fim, Maria Elvira, é encontrada morta, em decúbito dorsal, de Organdi Azul, dando continuidade ao tom de reportagem ou de queixa-crime, a todo tempo usado, bem como indica que a heroína estava arrumada para encontrar mais um  amante. Continue reading

O jazz de Kerouac, por Mariellla Augusta

Seguindo a tradição oral da poesia, quer para resgatá-la da antiguidade como lírica quer por estar imerso no espírito de seu tempo, Jack Kerouac buscou dar à sua poesia a velocidade e a profusão do jazz.

Se o estilo de Kerouac nasceu assim de propósito, como ele mesmo diz quando confessa seu programa, ou se ele estava apenas sintonizado com o ritmo americano com o qual convivia, não é possível precisar. Mas é fácil perceber que o escritor beat tentou mesmo emular o jazz.

Auxiliado pela escrita espontânea, garantia a imprevisibilidade das alturas; imbuído pela sua heterodoxa espiritualidade, aproximava-se dos spirituals e das worksongs ; com seus versos polimétricos, podia imitar o ritmo dos tempos quebrados; e apelando para assonâncias e aliterações produzia o scating.

Contudo, é principalmente, na sua declamação ou leitura que ouvimos o jazz – ao menos o jazz de Kerouac. Seu andamento, suas inflexões, seu ritmo é que fazem lembrar o estilo de Parker, a despeito de ele deixar as indicações gráficas em seus poemas ou em sua prosa.

Contudo, nenhum dos seus dois álbuns, quer com Steve Allen (1959) quer com Al Cohn e Zoot Sims (1960), foram bem realizados enquanto líricas.  Allen apesar de ficar no mesmo andamento, não o estava acompanhando, pois também fez um solo. A música, que por ser pianística, ajuda a parecer uma base, é na verdade uma música inteira com as complexidades de uma música em si, que poderia ser ouvida sozinha sem a presença de nenhum poema. Unida à recitação, se não conflita pela beleza, também não casa, nem enquanto lírica, nem mesmo como ambientação ou fundo. Mesmo que os afetos ditos sejam os mesmos tocados, o volume do piano está muito alto para ser fundo e a música não foi esvaziada, o suficiente, de parte dos seus elementos, para ser só um acompanhamento. A música e a voz do autor beat estão, por assim dizer,  em pé de igualdade e chegam a disputar .

Note-se, no entanto, que ambos tinham a intenção de fazer lírica, como demonstra a escolha do timbre de curto ataque, sem fortíssimos, ou mesmo o não terem feito uma simples colagem (já que Allen também era um artista e produziu de fato uma música).

Já a base de trechos do Mexico City Blues, lido em 1988 por seus amigos, como Ginsberg, e por seus admiradores, embora seja menos música, menos bem executada e menos estética, é mais baixa em volume e mais esvaziada, fazendo lembrar mais um fundo musical que, embora ainda não seja lírica, ao menos, não compete com o poema.

Já os saxofones do Blues and haikus, salvo em brevíssimos e raríssimos momentos, embora dialoguem com a leitura de Kerouac, também não foram bem concebidos como lírica. Não há propriamente uma música competindo com o poeta, há rompantes de solo que não parecem ter um sentido bem definido, não há uma construção harmônica que traduza os Haikus do “jazz poet”.

Nesse segundo caso, é como se os músicos estivessem mais imbuídos do programa de Jack, valorizando mais a espontaneidade, a liberdade e a prática da improvisação, do que com uma tradução para a linguagem musical dos poemas escolhidos.

Kerouac gravou também um álbum sem a companhia de músicos, mas esta nota não trata dessa produção.

Não parece haver, em nenhum dos dois álbuns aqui considerados, uma preconcepção do que seria tocado, uma vez que é difícil entender um propósito claro na atuação dos músicos de par com a recitação do lendário beatnik. O que resta para se perceber é apenas uma inspiração na escrita de fluxo imperturbável e na atmosfera de uma época ou de certas paisagens e ambientes de uma América regada a álcool e perdida na poeira da estrada de Kerouac.

As musicalidades da poesia, por Mariella Augusta

Nelson Rodrigues dizia que o que dói na bofetada é o som. O som da humilhação.  Sendo assim, se a ação, ao menos no drama, vale mais do que a palavra, o som valeria mais do que a ação. De fato, Chaplin renunciou às palavras, mas trabalhava de modo obsessivo as suas trilhas. Foi por causa de um som que sua florista pôde confundir um andarilho com um milionário. O som desperta. O mesmo acontece na literatura – os estados de ânimo são construídos pelo escritor, por certo, pelos significados, mas também pelos seus significantes. E todo significante é sonoro.  Ouve-se a palavra até no silêncio – do engenho ou da memória auditiva que começou a crescer ainda no útero.

O texto literário, ainda que em matéria muda, representa um objeto sonoro como acontece à notação musical. Com a diferença de que a música chegou na dissolução da nota e a literatura será sempre uma arte de fonemas.  Cada verso da poesia e cada linha da prosa são construídos como frases musicais. A ideia procura o som que as vai transmitir do mesmo modo que a melodia procura os acordes a fim de realçar ou subverter o afeto harmônico que lhe é intrínseco.

Escritor e compositor escrevem o que ouvem e ouvem o que escrevem: as organizações métricas, as distribuições rítmicas e as construções melódicas que produzem. O escritor, tal como o músico, procura a tensão e o repouso, um tempo dividido e uma colocação vocal por região. Segundo Ezra Pound, os poetas deveriam saber música, ao menos, como a sabe um músico medíocre.

Ocorre que, ao plasmar suas figuras e seus silêncios, o poeta, senhor da palavra escrita, vai deixar nos significantes parte da musicalidade que criou. Não poderá, contudo, garantir que repitam seu timbre, sua região tonal ou sequer quando ela deverá ficar forte e fraca. A materialização dos sons do poema está nas mãos daquele que o lê ou que o declama. Continue reading

Apresentação da revista COLÓQUIO/Letras Nº 209 “A Voz na Literatura” (Zoom)

A apresentação do último número da revista Colóquio/Letras, cuja secção temática é dedicada ao tema “A Voz na Literatura”, terá lugar no próximo dia 15 de fevereiro de 2022, (amanhã) entre as 18h e as 19.30, via Zoom.

A secção temática inclui vários artigos produzidos por membros do projeto “Vox Media: A Voz na Literatura” do Grupo de Investigação “Mediação Digital e Materialidades da Literatura”.

Tópico: Colóquio/Letras: A Voz na Literatura
Hora: 15 fev. 2022 06:00 da tarde Lisboa

Ligação Zoom
https://videoconf-colibri.zoom.us/j/86718640499?pwd=anZuSHNqeTBaV3N1a3pWdmhvZVIvUT09

COLÓQUIO/Letras (Jan 2022): A Voz na Literatura

COLÓQUIO LETRAS
N.º 209 (Janeiro 2022)
A Voz na Literatura

Não há literatura sem um processo de inscrição material que faz de cada signo uma coisa no mundo fenomenal, para ser vista antes de ser lida, e para ser lida (em silêncio ou não). Ou então, para ser dita, o que é uma outra forma de inscrição material, precedendo e dispensando a escrita ou seguindo-se a ela.
Os artigos do núcleo principal deste número exploram algumas dimensões do fenómeno literário afetadas pela voz enquanto medium da literatura. Não se trata de buscar um privilégio da Origem para o estudo da dimensão vocal do fenómeno literário, mas sim de admitir a relevância de tal estudo para uma versão mais completa, simultaneamente moderna e arcaica, de literatura. As dimensões da voz são estudadas em obras de Homero, Gil Vicente, Camões, Manuel Bandeira, Augusto de Campos e José Emílio-Nelson, respetivamente por José Manuel Cuesta Abad, Nuno Meireles, Matheus de Brito, Osvaldo Manuel Silvestre, Eduardo Sterzi e Pedro Serra.

[sumário]

Na secção de documentos, Mariana Maurício revela um conjunto de cartas que a pianista Maria da Graça Amado da Cunha (1919-2001) — notável intérprete das obras de Fernando Lopes Graça — escreveu aos amigos. Um deles, Alberto de Lacerda, lamentou “que Maria da Graça não tenha escrito memórias”: “conheceu, por assim dizer, toda a gente, de todas as gerações, gente célebre e menos célebre, de Casais Monteiro a Isabel da Nóbrega, de Jorge Peixinho a Manuel Dias da Fonseca e Arminda Correia, de Louis Saguer a João Gaspar Simões e Emmanuel Nunes, compositor que muito admirava. A lista seria interminável”. Ora, essas memórias ou essa autobiografia, embora não publicada, está nas mais de mil páginas enviadas por Amado da Cunha ao poeta e aos correspondentes que manteve entre 1934 e 2000, e de que Mariana Maurício nos apresenta agora uma amostra (em cartas para Ilse Losa, José Rodrigues Miguéis e Alberto de Lacerda).

Para ilustrar o número, João Penalva criou a série O Telefone de Jean Heiberg.