O jazz de Kerouac, por Mariellla Augusta

Seguindo a tradição oral da poesia, quer para resgatá-la da antiguidade como lírica quer por estar imerso no espírito de seu tempo, Jack Kerouac buscou dar à sua poesia a velocidade e a profusão do jazz.

Se o estilo de Kerouac nasceu assim de propósito, como ele mesmo diz quando confessa seu programa, ou se ele estava apenas sintonizado com o ritmo americano com o qual convivia, não é possível precisar. Mas é fácil perceber que o escritor beat tentou mesmo emular o jazz.

Auxiliado pela escrita espontânea, garantia a imprevisibilidade das alturas; imbuído pela sua heterodoxa espiritualidade, aproximava-se dos spirituals e das worksongs ; com seus versos polimétricos, podia imitar o ritmo dos tempos quebrados; e apelando para assonâncias e aliterações produzia o scating.

Contudo, é principalmente, na sua declamação ou leitura que ouvimos o jazz – ao menos o jazz de Kerouac. Seu andamento, suas inflexões, seu ritmo é que fazem lembrar o estilo de Parker, a despeito de ele deixar as indicações gráficas em seus poemas ou em sua prosa.

Contudo, nenhum dos seus dois álbuns, quer com Steve Allen (1959) quer com Al Cohn e Zoot Sims (1960), foram bem realizados enquanto líricas.  Allen apesar de ficar no mesmo andamento, não o estava acompanhando, pois também fez um solo. A música, que por ser pianística, ajuda a parecer uma base, é na verdade uma música inteira com as complexidades de uma música em si, que poderia ser ouvida sozinha sem a presença de nenhum poema. Unida à recitação, se não conflita pela beleza, também não casa, nem enquanto lírica, nem mesmo como ambientação ou fundo. Mesmo que os afetos ditos sejam os mesmos tocados, o volume do piano está muito alto para ser fundo e a música não foi esvaziada, o suficiente, de parte dos seus elementos, para ser só um acompanhamento. A música e a voz do autor beat estão, por assim dizer,  em pé de igualdade e chegam a disputar .

Note-se, no entanto, que ambos tinham a intenção de fazer lírica, como demonstra a escolha do timbre de curto ataque, sem fortíssimos, ou mesmo o não terem feito uma simples colagem (já que Allen também era um artista e produziu de fato uma música).

Já a base de trechos do Mexico City Blues, lido em 1988 por seus amigos, como Ginsberg, e por seus admiradores, embora seja menos música, menos bem executada e menos estética, é mais baixa em volume e mais esvaziada, fazendo lembrar mais um fundo musical que, embora ainda não seja lírica, ao menos, não compete com o poema.

Já os saxofones do Blues and haikus, salvo em brevíssimos e raríssimos momentos, embora dialoguem com a leitura de Kerouac, também não foram bem concebidos como lírica. Não há propriamente uma música competindo com o poeta, há rompantes de solo que não parecem ter um sentido bem definido, não há uma construção harmônica que traduza os Haikus do “jazz poet”.

Nesse segundo caso, é como se os músicos estivessem mais imbuídos do programa de Jack, valorizando mais a espontaneidade, a liberdade e a prática da improvisação, do que com uma tradução para a linguagem musical dos poemas escolhidos.

Kerouac gravou também um álbum sem a companhia de músicos, mas esta nota não trata dessa produção.

Não parece haver, em nenhum dos dois álbuns aqui considerados, uma preconcepção do que seria tocado, uma vez que é difícil entender um propósito claro na atuação dos músicos de par com a recitação do lendário beatnik. O que resta para se perceber é apenas uma inspiração na escrita de fluxo imperturbável e na atmosfera de uma época ou de certas paisagens e ambientes de uma América regada a álcool e perdida na poeira da estrada de Kerouac.

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