Ver (e ouvir) “As Três Irmãs”, no Porto

Ainda é possível assistir ao espectáculo “As Três Irmãs”, no Teatro Carlos Alberto (Porto), numa produção Ensemble – Sociedade de Actores/ Teatro Nacional São João.

A encenação de Carlos Pimenta, partindo do texto homónimo de Anton Tchékhov (em tradução de António Pescada), dá um relevo superlativo ao som e às vozes.

Segue o texto de Francisco Leal, que no espectáculo assina a sonoplastia e desenho de som, cruzando as materialidades da literatura, teatro e arqueologia dos media.

A Máquina Falante
“Deus deu ao mundo dois ouvidos mas apenas uma boca
para que ele oiça o dobro do que fala”
Epicteto, o estoico
E se pensássemos o microfone como um território em que a tecnologia é a ferramenta que permite a materialização da palavra e onde a realidade só acontecesse no plano sonoro?
Nestas Três Irmãs, a perspectiva divide-se entre a ideia da escuta radiofónica, em casa, individual e num espaço privado, e o voyerismo do ver fazer, da performance numa sala de teatro, colectivamente e num espaço público.
Num estúdio de gravação de som, busca-se fabricar cenários e ações na reconstituição da narrativa. A imagem é sonora. As relações dos personagens são mediadas pelos microfones e o sistema de amplificação devolve à audiência essas relações. Será, então, que o que se passa fora da captação dos microfones acontece?
O dispositivo sonoro que permite a experiência sensorial da auralidade, poder-se-à considerar, então, uma Máquina Falante. É, simultaneamente, um objecto e o espaço que cria, o lugar onde a peça de teatro radiofónico tem a sua projeção pública, como se de um filme se tratasse.
Nada de realmente novo, até aqui.
Eça de Queirós, em A Cidade e as Serras, ao apresentar a civilização “do Paris” de Jacinto, refere o teatrofone como um dos inúmeros aparelhos do progresso de 1887 que habitam o seu 202. Um serviço de assinatura telefónica, hoje equivalente aos canais de subscrição da televisão por cabo, que permitia a audição de excertos de ópera ou de peças transmitidas em direto, através de uma rede de teatros aderentes a este serviço de teatro à distância – “Théâtre Chez Soi”. Em casa, os assinantes dispunham de um aparelho para ouvirem por dois auriculares estas transmissões telefónicas, um sistema pioneiro da estereofonia. Este serviço acaba por falir, em 1932, com o crescente sucesso da radiodifusão e do fonógrafo. Por essa altura, o impacto das produções de teatro radiofónico, na cultura anglo-americana, era considerável. No anuário da BBC, de 1931, prescrevia-se que a audição do microphone drama, também designado broadcast drama, ou wireless drama, fosse feita com a telefonia instalada numa sala silenciosa e às escuras, reduzindo assim “as distrações dos olhos e dos ouvidos” e melhorando a técnica de escuta do ouvinte e, consequentemente, a experiência sensorial do teatro radiofónico.
Neste espetáculo de As Três Irmãs, a produção radiofónica da peça acontece à vista, num jogo de cena híbrido, oscilando entre a representação para o microfone e a representação teatral, em que o espaço cenográfico é o mesmo do estúdio de gravação. Não se pretende uma reconstituição da arqueologia da prática desse tempo. O recurso do dispositivo de mediação desta Máquina Falante e a organização do espaço sonoro-cénico onde ocorre, permitem uma abordagem diferente da mecânica estritamente teatral. Estabelecem uma mise-en-scène sonora no confronto entre a tecnologia e a territorialidade originada pela disposição dos microfones, dos elementos acústicos próprios de um estúdio de som (biombos e parede refletora em pedra) e dos locais de produção de efeitos sonoros, em conjugação com a apropriação dos seus lugares pelos personagens e a sua utilização pelos atores. Influencia a expressão oral da contracena na produção de diferentes níveis de comunicação dos personagens, reflete-se na gestualidade e movimentação dos atores, e manipula as perspectivas da audição, na representação de diferentes planos e espaços da imagem sonora, para a materialização da narrativa.
O trabalho de sonoplastia, termo exclusivo da língua portuguesa que surge com o teatro radiofónico na década de 60, e que designava todo processo de gravação, montagem e sonorização da narrativa em suporte fonográfico (diálogos, música e efeitos sonoros), funde-se, pois, com a ação do desenho de som, o desenvolvimento do conceito sonoro e, simultaneamente, do dispositivo de projeção sonora da performance numa sala de espetáculo, desempenhando, assim, papéis duplos e complementares.
Francisco Leal, Dezembro de 2020
Fotografias de Ensaio: João Tuna/TNSJ