Como se o verbo obrigasse, rever a faixa áudio fez disparar inadvertidamente uma sequência de imagens: literalmente, Irse de lengua a partir de Doda Lingua.
Ao escutar de novo a recolha de Poesía sonora peruana por Luis Alvarado, esse duplo gesto de afastamento e chegada da língua à (ponta da trampolínea) língua — irse de lengua — destapou outro disco da Buh Records: Doda Lingua.
As faixas alistam nomes únicos (não impronunciáveis) que vale a pena mastigar: Aniavek, Esra Yerum, Fuarz de Leds, Dura Decena, Brahum Bara, Dozel, E-chal-e, Pocat N° 1. A descrição aponta as estruturas montadas na reversão dos impulsos: “emitir un sonido” e “un sonido emitido” não manifestam apenas os dois lados que tradicionalmente colocam aqueles que têm lábios de um lado e os que têm ouvidos do outro, mas assinalam um trabalho quase ectoplásmico da escuta e da fala num mesmo ato cancionante:
El lenguaje, la lírica y la estructura de cada canción obedecen a la sensación que provoca emitir un sonido, y a la que, a su vez, provoca también un sonido emitido. Las palabras cobran sentido no por su significado convencional, sino por su forma sonora y la implicancia emotiva de su acentuación en determinadas sílabas.
Karla Ramirez apud Buh Records/ Bandcamp.
Aliás, a própria designação “doda lingua” é movediça: em tradução literal do castelhoguês queremos ler “douda língua”; no dicionário de espanhol não existe “doda” nem “lingua”, embora haja derivações de “lengua” e da decomposição de “doda” se possa obter uma nota musical (dó). Será puxar a corda? Talvez, mas, se a corda for vocal, bem esticada consegue um “do de pecho” (Una de las notas más agudas a que alcanza la voz de tenor, revela o dicionário). Um dó de peito, um peito na língua. Estes dissílabos prestam-se a boas invenções:
Tzara a trouvé le mot Dada le 8 février 1916 à 6 heures du soir; j’étais présent avec mes 12 enfants lorsque Tzara a prononcé pour la première fois ce nom qui a déchaîné en nous un enthousiasme légitime.
Hans Arp apud DACHY: 2011: 96.
Doda lingua não é doida nem dadá e, poético-sonoramente falando, nem tem de figurar em lado nenhum. Dada ou Doda ou outra coisa qualquer situam-se no genial ponto neutro em redor do qual giram todos os disparates possíveis (no mais funcional e paalaavrooso sentido da palavra).
Doda Lingua é um projeto de Karla Ramirez (Lima, 1988) de âmbito FVM (Faça Você Mesmo; em inglês: Do It Yourself, DIY]: voz, computador portátil e software de edição. De resto, como ela própria sumariza:
Los instrumentos utilizados a lo largo de los temas son principalmente elementos musicales abandonados, reciclados, tradicionales, y/o curiosos.
Desde as clássicas mensagem de atendimento automático às sequências repetidas de samples curtos, coaxares giratórios, cadências xamânicas e kalímbicas, membrano-, eletro- e idiofones, “malhas folk”, canções aos pássaros, morse e tv imbricados em inuit, ladainhas fonéticas e chocalhos madeiros, metálicos pop e loops hip hop em estados intermediários que saem de flautas de pã e paus de chuva.
Em busca de mais Doda Lingua (2011) vamos encontrá-la associada a um corrimento imagético de cariz cinéfilo — Doda Lingua en Limalandia (2021). Eis um estranho objeto, apresentado de maneira estranha: a referência surge num breve artigo-anúncio do crítico de cinema Mario Castro Cobos a propósito da recente obra do realizador homónimo (dele próprio); na linha final, ligação a uma google drive e a uma hora e meia de imagens erráticas, não obstante o mote animalesco-de-brincar que trespassa esse ludo-devaneio geográfico localizado (Lima-landia, Peru).
O vórtice criativo condicionado que deu origem à banda sonora merece presença no título, com a participação justificada de uma Karla emigrante na Nova Zelândia que, apanhada de visita a casa, se vê impedida de sair. (2020, lembram-se?)
Ora seguimos a banda sonora ora as imagens, a dificuldade prenuncia-se na bicefalia titular e prossegue na seleção de imagens que dá azo a este pedaço de lândia: animais e bonecos alternam vistas aéreas e becos como se fossem parte da mesma identidade, completamente indiferentes — qual filme mudo — às sonoridades que iniciam e terminam nos seus habituais segundos de silêncio intercalares de mudança de faixa. As canções criadas ou simplesmente apostas a Limalandia ilustram imagens amadoras desengonçadas que aglomeram o pequeno grande mundo do objeto lúdico abandonado numa ode remastigada de pelo sintético multicolor, a par de sobreposições de pares pouco inocentes — tartaruga e ambulância, jesus cristo e grades, atletas e carros estacionados…— e de zonas de rebobinagem. Este pseudo-documentário-por-acaso balança ao som de trilos e cachão com suaves ecos bobbymcferreanos, como se a atmosfera do álbum Doda Lingua se demonstrasse agora visualmente na sua presença de câmara. Será a douda imagem um produto correlativo da douda língua?
Talvez este olhar quase casual sobre as coisas, criando atmosferas aleatórias ao ritmo de uma bodycam esquecida, naturalmente de mira falsa ou bêbada, vaga, não assumidamente centrada, se torne afinal o retrato mais fiel de algo potencialmente histórico de tão nulo e simultaneamente cumulativo, tanto que talvez não chegue a tanto, spam fortuito que existe apenas até alguém cancelar a partilha do vídeo, passando a sua existência para um disco externo de 500MB com um post-it colado: “experimental”.
Então porque escrevo sobre isto?
bah…
Na meia hora final correm os restos das filmagens que sobraram em andamento rápido, incluindo algumas “aparições” (protagonistas com créditos) e a mesa de montagem dos sons (1h19’).
DACHY, Marc. (1994) 2011. Dada & les dadaïsmes: rapport sur l’anéantissement de l’ancienne beauté. Folio Essais 540. Paris: Gallimard.
RAMIREZ, Karla, Marco RAMOS, e Mario CASTRO. 2021. Doda Lingua en Limalandia. YouTube.