O sotaque dos afónicos

Dallas Intro Season 1 (1978)

O espetáculo começa com abertura bombástica em voz-off, preparando o carrossel narrativo – the plot! – que condensará uma série de temporadas televisivas 1 numa só cena, num só fôlego. Uma gigantesca nota de dólar americano – oh, money money – forra todo o cenário 2, enquadrando uma longa mesa de toalha branca com copos e vários telefones cromados e, do lado direito…um mexicano que praticamente não se moverá durante toda a peça.

Entra em cena a família Ewing: Bobby! Jock! JR! Miss Ellie! Lucy! Pamela! Sue Ellen!! –, os homens de fatinho branco e chapéu à cowboy, de pistola na mão ou à cintura, na jactância prepotente que identificamos como texana, e as mulheres de vestido brilhante e fartas cabeleiras artificiais.

E depois começam a falar.

DINH€IRO está em cena na Culturgest entre 29 de maio e 1 de junho de 2019, é um espetáculo da trupe portuense Mala Voadora com direção de Jorge Andrade, interpretação de Bruno Huca, Isabél Zuua, Joana Bárcia, Jorge Andrade, Maria Jorge, Marco Paiva, Miguel Damião, Sílvia Filipe e Tânia Alves e as vozes de Benedita Pereira, Gabriela Barros, Iris Toivola Cayatte, Keith Harle, Lourenço Henriques, Paula Lobo Antunes e Simão Cayatte. A sonoplastia esteve a cargo de Rui Lima e Sérgio Martins. Na sua forma, DINH€IRO é um remake de DALLAS. Na sua forma, o remake é o que menos (nos) importa.

E depois começam a falar. Em “americano”, naquela ginga arrastada de maxilar basculante como o de um cavalo:

Michel Courtemanche. Le Western.

Em “americano”, que é a língua das séries de tv. Em “americano”, a língua do dinh€iro. No “americano” de Dallas: para além das convulsões políticas e familiares, o texto ‘original’ é colocado minuciosa e laboriosamente na boca dos atores da Mala Voadora – o “americano” deles é perfeito!…, desfilando pomposamente entre cenas de porrada, disparos de pistola e pronúncia tipicamente sulista. Só mais tarde percebemos que aquelas não podem ser as vozes originais.

O ofício de ator, para além de um treino de corpo e presença em palco, passa crucialmente por um trabalho de voz. Aliás, o espetáculo é pleno de vozearia televisiva – sempre no pico da entoação –, de barulho, de som, de comentários, de insistência no sotaque americano.

Mas os atores trabalham em silêncio, num trabalho de escuta e sincronização feroz.

As vozes foram pré-gravadas por atores americanos nativos. Percebendo isto, tudo passa para um jogo de sonoplastia a que os atores se colam como uma sombra. Eles são recipientes de vozes que não são as suas. Todavia, atores perseguem essas vozes como se fossem suas. Só poderemos imaginar o incrível trabalho de play-back, de articulação e subjugação (frustração?) mecânica e muda do aparelho fonatório a uma voz que nunca poderá nascer do seu corpo, mas que sairá das colunas, no final de um sistema sonoro alheio.

Quando observamos um filme dobrado, teoricamente devíamos ser capazes de notar – olhando suficientemente perto – a discrepância entre os movimentos dos lábios e a voz. Este pensamento angustiou-me durante algum tempo. Tal como uma mulher possessa, fito os lábios dos atores, esperando descobrir os momentos em que a sincronização não funciona. Por vezes, dou comigo tão preocupada que acabo por perder o fio do enredo. O que espero ver é um par de lábios parados enquanto ouço uma palavra, ou então lábios vigorosa e amplamente em movimento enquanto produzem frases inaudíveis. Mas hoje em dia as técnicas de dobragem são muito sofisticadas, é praticamente impossível encontrar um erro. Os atores de cinema e televisão expressam-se fluentemente em línguas que não falam, como se não existisse qualquer barreira linguística, nenhuma divisão entre as suas vozes e os seus corpos. (TAWADA 2009, 185–86)

Percebendo a existência da dobragem 3, saltamos do cavalo narrativo para a garupa formal. Mais especificamente, no caso, para a sonoplastia. E a Mala Voadora sobrevoou, para nosso regozijo, todos os registos, a começar pela dobragem em si – uma mera tradução teria anulado todo o busílis da questão. Paradoxalmente, a dobragem aplica-se na língua ‘original’, o que determina uma “falsa-dobragem”: são os corpos que sofrem dobragem, não as vozes – ou seja, play-back 4. Por outro lado, toda a voz, antes de chegar às portas dos lábios, ao ar exterior, passa por um complexo sistema de filtros e formantes que demoramos anos a nivelar – na infância – até chegar a um ponto satisfatório de correspondência entre uma intenção discursiva e o seu resultado vocal. In extremis, a própria voz pode ser considerada uma má dobragem – ou um play-back – do nosso pensamento.

Garantida a dobragem 5 e a sua técnica, sucedem-se jogos formais de discrepância e/ou repetição só possíveis no campo da edição sonora, tais como frases e gestos “encravados” que os atores repetem em loop como um disco riscado, ou gags de efeitos sonoros cartoonescos que acompanham reiterações de socos e estaladas.

Mas a brincadeira não acaba aqui: os atores ‘dobrados’ 6 são ainda forçados a interagir com uma outra personagem – Cliff Barnes – que fala na sua voz real ao microfone, embora com prejuízo da “perfeição” do sotaque americano – notoriamente, é um português a falar “americano”.

E se até aqui não havia sobreposição de vozes, sucedendo-se os diálogos de forma linear, há um momento em que todos atores empunham microfones – no entanto, quando pensavam que tal lhes permitia ter mão na sua própria voz, o som é cortado; os atores ficam desorientados, em silêncio (como sempre estavam 7), olhando perdidos para a projeção das legendas (em português, numa mini-tela no friso superior da caixa de cena): sem voz, e agora sem texto. Ou sem voz, porque sem texto?

Outros recursos surgiram em catadupa, como por exemplo o da intervenção – em corpo presente – da voz-off, adiantando a exegese ao jeito de recitativo operático 8. Ou a troca de vozes: subitamente, a voz do Bobby surgia na boca de Sue Ellen, ou a de Lucy no corpo da Pamela. Ou a redução áudio de uma notícia de tv. Ou a sobreposição de todos os efeitos anteriores – dobragem, loop encravado, repetição, troca de vozes, play-back, karaoke, mão empunhando microfone, banda sonora em riffs de guitarra –, num clímax verbi-vocal 9 ao nível da mais ruidosa poesia sonora!

DINH€IRO (foto de José Carlos Duarte)

 


Bibliografia

RASULA, Jed. 2009. Modernism and poetic inspiration: the shadow mouth. 1st ed. Modern and contemporary poetry and poetics. New York, NY: Palgrave Macmillan.

SPINDEL, Arnaldo, e Ricardo RIBENBOIM. 2019. «Sobre a Base7». Base7. 2019. http://www.base7.com.br/base7 a propósito de http://www.poesiaconcreta.com.br/poetas.php

TAWADA, Yoko. 2009. «The Art of Being Nonsynchronous». Em The sound of poetry, the poetry of sound, editado por Marjorie PERLOFF e Craig DWORKIN, traduzido por Susan BERNOFSKY, pp.184-195. Chicago: The University of Chicago Press.

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