FLORA DÉTRAZ ou A Bailarina Com Voz
Luz encadeando o público, fundo preto raiado a entreluz que uma silhueta faz oscilar e entrechocar ao entrar, procuramos no escuro, emerge sentada uma figura de amarelo que nos fixa. Um contínuo som [canto multifónico] grave e a sua repartição em harmónicos situa-se/-nos — quase coincide — algures na rapariga sentada, mas ela permanece imóvel. Subitamente inclina o corpo e vira a face, como se ela própria escutasse, procurasse a fonte sonora; a garganta revela o ataque à nota fundamental, mas todo o rosto queda impassível. Esta cena é lenta, protocolar, como o exige a ritualidade musical. A nota acelera, a língua interfere em jogo oclusivo e alveolar, e do corpo inclinado para a frente pinga um fio de saliva, a exteriorização líquida e aprumada do caos interior.
Every emission of the voice is by its very essence ventriloquism. Ventriloquism pertains to voice as such, to its inherently acousmatic character: the voice comes from inside the body, the belly, the stomach—from something incompatible with and irreducible to the activity of the mouth. The fact that we see the aperture does not demystify the voice; on the contrary, it enhances the enigma.1
“Oui?” Resposta e pergunta grave e aguda em formato ventríloquo — vários registos são enunciados dentro do mesmo corpo — ao passo que o próprio corpo sonda confuso a contradição dos movimentos consumados no exterior nos quais a voz não se revê.
Graves, médios e agudos moldam o corpo em gestos de dança tecno; os sons param, o corpo continua, mute, no paradoxal exercício de independência do corpo em relação ao ritmo que supostamente o alimenta – não se trata de uma boneca inanimada ou de um objeto mecânico, de um autómato; a clivagem opera na ambiguidade de ser ou não um meio, um medium do discurso. É que nesse invólucro mexediço ainda residem vestígios: emanam rastos sonoros dele mesmo oriundos; o potencial de oxímoro — corpo vocal — espoleta a dúvida e a magistral erosão comunicativa do liame entre voz e gestos do corpo: a voz que chora/ o corpo que ri, a voz que chama/ o corpo que ouve.
Alienígena, ela fita o público como um pássaro, em movimentos de cabeça rápidos e alternados. Novos elementos oclusivos bilabiais conduzem — à letra! bbbbbrrrrrr, mmmmm, bbbbbb — o carro figurado infantilmente divertido, a ponte que num ápice liga disrupção línguística e receção lúdica do registo vocal, em glissando até ao agudo e descendo, dança interior decorrente do domínio das técnicas interiores ao corpo, das cordas vocais e mais fundo ainda, esófago abaixo, até ao estômago, 2 ruidosamente borbulhante.
Cette chair qui ne se touche plus dans la vie,
cette langue qui n’arrive plus à dépasser son écorce,
cette voix qui ne passe plus par les routes du son,
cette main qui a oublié plus que le geste de prendre, qui
n’arrive plus à déterminer l’espace où elle réalisera sa préhension… 3
Sai do palco através da cortina raiada, ficam os tubos a soar na sala escura.
Soa em esforço, distorcido, o tocador de sanfona 4 [Der Leiermann] 5, que serve de charneira ao díptico Tutuguri/ Gesächt. Algures a meio do poema de Wilhelm Müller deparamo-nos com o seguinte quadro:
Keiner mag ihn hören,
Keiner sieht ihn an,
Und die Hunde brummen
Um den alten Mann.Und er läßt es gehen
Alles, wie es will,
Dreht, und seine Leier
Steht ihm nimmer still.
Ninguém o ouve
Ninguém o vê
Só os cães rosnam
De volta do anciãoE ele deixa-os estar,
Deixa-os girar
E a sua viela de roda
Nunca nele parará.6
Flora Détraz retorna ao palco, transportando um metro quadrado de contraplacado até à boca de cena, dispondo o micro-espaço de cena em cena, um quadrado dentro de um quadrado, até que entra em cena, teatralmente, com toda a tensão dos gestos do corpo e face, boca escancarada com energia operática, mas sem som, enunciando aparentemente cada vogal do Lied anterior, revivendo, recuperando a bestialidade do gesto performativo.
8Nova brincadeira: sai do quadrado e volta a entrar, ativando subitamente o modo sonoro, num jogo de dentro-fora quadrático emulando dentro-fora corporal, entoando pedaços de som-silêncio. De seguida enceta o Lied, em fragmentos de alemão adulterado ou língua inventada, lírica gestual para manequins, ópera a 100 à hora.
No final, longo ritual de agradecimento, a desfiguração das convenções, a pseudo-explicação na mesma língua inventada, onde reconhecemos —com gozo — as palavras ‘lichten’, ‘quadrate’ etc, tal criança imitando estrangeiros e neologismos,
No final-final, fitando como se esperasse palmas (mas ninguém as dá, nunca sabemos as fronteiras do jogo), e a queda do quadrado preto de novo no chão, o derrube do tabuleiro, da cena, da performance.
E pronto, podemos regressar ao quotidiano.
“Tutuguri” é uma das partes (lida originalmente por Maria Casares) do poema radiofónico Pour En Finir Avec Le Jugement De Dieu [Para terminar com o julgamento de deus] de Antonin ARTAUD, gravado em Novembro de 1947 para a Radiodiffusion française. No entanto, a obra suscitou tanta polémica que foi vetada pela direção da Rádio, indo para o ar somente a 6 de Março de 1973.
Based on their myth of creation, the Tutuguri is a rite of prayers and requests where natives accompany the sun in its course until dawn. In conclusion, the poem suggests that human identity is defined by its mobility and circularity.9
A francesa FLORA DÉTRAZ (Paris, 1988), com pouso e trabalho em Lisboa, apresentou TUTUGURI (criação de 2016) no festival Cumplicidades, entre 10 e 16 de Março de 2018, no CAL – Primeiros Sintomas.
Ouvir a entrevista de FLORA DÉTRAZ ao HIPOGLOTE10 em 107.9 (Coimbra) ou www.ruc.pt. Igualmente em podcast no mixcloud.
Bibliografia
ARTAUD, Antonin. 1927. “La Correspondance de la momie”. In Œuvres complètes, tomo I, pg.57. Apud Jacob ROGOZINSKI, “Tutuguri, ou le rythme d’Artaud”, Lignes 2000/3 (n° 3), pp.71-86. DOI 10.3917/lignes1.003.0071. https://www.cairn.info/revue-lignes1-2000-3-page-71.htm
DOLAR, Mladen. 2006. A voice and nothing more. Short circuits. Cambridge, Mass: MIT Press. Pg.75.
GIROUD, Michel. 2004. “Henri Chopin, un explorateur des voix du corps”. In https://www.e-german-up.net/spip.php?article372
MÜLLER, Wilhelm. [1823/24]. “Der Leiermann”. In Die Winterreise. http://gutenberg.spiegel.de/buch/die-winterreise-2577/25
NICOLAS, Anne-Sabine. 2011. “La danse du Tutuguri ou le rite du soleil noir : une performance textuelle d’Antonin Artaud”. http://digitalrepository.unm.edu/fll_etds/1
POVES , Antonio. 2014. “El ‘organistrum’ en España”. http://www.organistrum.com/organistrum.htm
Discografia
Antonin ARTAUD. 1986 [1947]. “Tutuguri”. In Pour En Finir Avec Le Jugement De Dieu. [Cassete]. Éditions La Manufacture. https://www.discogs.com/Antonin-Artaud-Pour-En-Finir-Avec-Le-Jugement-De-Dieu/release/7257304
Henri CHOPIN. 1993 [1972]. “La Digestion”. In Audiopoèmes 1972 – 1991. (Cassete). Menú – Cuadernos De Poesía. https://www.discogs.com/Henry-Chopin-Audiopoèmes-1972-1991/release/4744419
Flora DÉTRAZ. “Gesächt”. http://www.compagniepli.org/crbst_5.html
__________. “Tutuguri” – danse sonore – création 2016. http://www.compagniepli.org/crbst_6.html
Dietrich FISCHER-DIESKAU & Gerald MOORE. [anos 60]. “Franz Schubert -An die Musik, D. 547”. In https://www.youtube.com/watch?v=bZZqZTKoFcM
Eberhard KUMMER, sanfona; Bernhard Trebuch, produtor. “Eberhard Kummer sings Oswald von Wolkenstein”. In https://www.youtube.com/watch?v=HWo3kPp8IJo. Orf: Edition Alte Musik, 2007
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