(a-)sincronias ao despique

Flora Détraz: Muyte Maker 1

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Quatro raparigas sentadas a quatro mesas, tampos no escuro, pernas reluzindo oito meias brancas em V. Ajeita-se o público, inverte-se a iluminação e o ângulo, agora circunflexo, dos braços às palmas das mãos nas bochechas. Na cabeça, ‘chapéus’ de fruta prolongando-se na trança de cabelo puxada por uma corrente ao alto das barras da iluminação, pendendo mais atrás em contrapesos sui generis: um martelo, um cutelo, uma foice e um saca-rolhas gigante.

Subitamente, entoam uma canção renascentista a quatro vozes:

Juan del Encina (1469–1529, ES), “¡Cucu, cucu!” [villancico]. 3

Este será o mote. A partir daqui, tudo (menos a música, contínua) descamba na máxima exploração das expressões faciais, intercalando ora com danças medievais, ora com os mais estranhos solos vocais, foçando as concomitâncias e as contradições entre os humores musicais e os humores faciais — esgares agoniados, olhos revirados, língua de fora, riso, choro, medo, dúvida, desprezo… Daí ao ventriloquismo é um passo, prosseguindo Flora Détraz a investigação marcada nos trabalhos anteriores (Tutuguri (2016) ou Gesächt (2014) 4; o seu processo de pesquisa leva-a a assimilar no mesmo corpo os dois papéis, o de ventríloquo e o de boneco ventriloquado. Esta coincidência quase mecânica permite-lhe uma dupla consciência panótica ou pansonora: uma do interior, do seu domínio intra-bucal, outra do exterior, da superfície muscular e epidérmica que reveste estes humanos-automatons. Tais bonecas animadas apresentam-se simultaneamente doces e terríveis, em constante jogo de contraponto estragado às belas e divertidas canções renascentistas. 

Je ne mange point de porc.
Le porc a condition 
Telle que je vous vois dire, 
S’il a mangé cent étrons, 
Il ne s’en fera que rire. 
Il les tourne, il les vire, 
Il leur rit et puis les mord. 
Je ne mange point de porc. 

Le porc s’en allait jouant 
Tout au long d’une rivière. 
Il vit un étron flottant. 
Il lui prit à faire chère, 
Disant en cette manière: 
“Etron flottant en rivière, 
Rend toi ou tu es mort.” 
Je ne mange point de porc. 

Claudin de Sermisy (c.1490–1562) 

Eu não como porco de todo.
O porco tem hábitos 
dos quais agora falarei,
se ele tiver comido cem poios,
Ele nada fará para além de rir.
Ele vira-os, gira-os,
Ri-se deles e morde-os.
Eu não como porco de todo.

[da folha de sala]

E tanto se embrenham num complexo e acurado momento polifonia, como no segundo seguinte trepam às mesas, rosnando, ofegando, cacarejando… Sucedem-se os solos: relatos de futebol, dobragens de filmes asiáticos de série Z, anúncios de altifalante, piropos, tudo isto desenrolando-se sonoramente algures dentro das estruturas daquelas marionetas parvinhas, gueixas terríveis, heroínas de desenhos animados, maneki-nekos falantes, bonecas inquietas e caprichosas com batas de cozinheiro que choram e riem debaixo daquela cabeleira de fruta doce, sob a ameaça constante dos simbólicos e afiados pêndulos que as retêm em cena. E o gozo com que desbravam e inquinam os textos quinhentistas deflagra em riso na plateia. 

Maneki-neko from r/Cinemagraphs

Where does a voice come into being? Perhaps a vibration is first created in the vocal chords, the palate, on a person’s tongue. But this is not yet a voice. Only in the listener’s head is it constructed as the voice of a person. We hear selectively, we correct, add to, and adulterate what we are hearing. Otherwise it would be impossible to understand the person speaking to us. We contribute to this process by bringing in our own knowledge, preconceptions, imagination, and repressed thoughts. Thus every act of listening is already a dialogue, even before we open our mouths to reply. (TADAWA: 2009: 189)

Yoko Tadawa 5, a propósito da dobragem no espetáculo Memory, pela companhia Theater am Neumarkt de Zurique, num festival de teatro em Hamburgo em 2002.

O único momento em que uma das performers é deixada sozinha na mesa, sob o foco das luzes, corresponde ao da dobragem, no ponto da máxima distância (neste espetáculo) entre emissor e suporte aparente da vocalização; de microfone em punho, outra performer, quase na plateia, seguia atentamente os gestos mudos da primeira, aplicando-lhe a concordância de humores que a brusca e frenética gestualidade sugeria. Nenhuma pedra fica por levantar nesta minuciosa exploração dos elementos base da não-correspondência entre voz e corpo.

De resto, o espetáculo não se afasta desta dramaturgia, presa que está (literalmente!) às ferramentas culinárias de corte (cutelo, martelo, foice…), metáfora estranhamente ideal para a doida sangria vocal.

Recuperamos a sinopse da performance 6:

Através de uma exploração de imagens medievais, cantilenas triviais e pinturas grotescas, Muyte Maker celebra corpos desobedientes, anormais e irracionais. Muyte Maker examina a alegria como afirmação física e existencial: a alegria como desejo e potencial criativo e como distorção física ou contradição, que vai contra a maré da moralidade. As intérpretes cantam copiosamente, riem polifonicamente, dançam cegamente e tagarelam cacofonicamente, numa tentativa de traduzir toda a complexidade dos seus próprios corpos.

 

Il est bel et bon, commère, mon mari.
Il estoit deux femmes toutes d’ung pays.
Disanst l’une à l’aultre – “Avez bon mary?”
Il ne me courrousse, ne me bat aussy.
Il faict le mesnaige,
Il donne aux poulailles,
Et je prens mes plaisirs.
Commère, c’est pour rire
Quand les poulailles crient:
Petite coquette (co co co co dae)e, qu’esse-cy?

Pierre Passereau (fl. 1509–1547)


É de rir, comadre,
Quando piam as galinhas:
Oh pito (cococorocó), que é isso?

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