Tosse

Alkantara Festival 2018

A tosse de uma senhora palestiniana

Na sala grande do S. Luiz 1, preenchendo todo o volume do palco, desce do topo o desenho em perspetiva de três naves (uma central e duas laterais, mais estreitas) definidas por colunas rendilhadas de nervuras cinzentas arabescamente alçadas em ogiva, numa encenação tridimensional de um esboço arquitectónico, à imagem dos desenhos de Giovanni Carlo Galli-Bibiena (1717-1760, IT). 

Gravura de Giovanni Berardi baseada no cenário desenhado por Carlo Sicinio Galli Bibbiena di Bologna para a ópera “Alessandro nellaIndie”, de David Perez (música) e Pietro Metastasio (texto)

Curiosamente, o arquitecto e cenógrafo italiano passou os seus últimos anos em Portugal, encarregado por José I da construção da Real Casa da Ópera, ou Ópera do Tejo; o edifício inaugurou a 31 de março de 1755 com a ópera Alessandro nell’Indie de Davide Perez, com libreto de Pietro Metastasio, mas logo ruiu aquando do terramoto a 1 de novembro do mesmo ano.2

Do lado esquerdo, da lateral interior do palco, a nublada luz amarela de um candeeiro, e de lá ouvimos então a voz de uma mulher de sotaque carregado lendo em inglês uma carta:

Envolvida no Festival Alkantara 2018, a leitura de uma carta da dramaturga e encenadora palestiniana Rimah Jabr ao cenógrafo belga Jozef Wouters respondia às perguntas deste sobre túneis, infinitude e encurralamento. O tema atravessa as incertezas inerentes à escura geografia dos túneis (e daquela parte do mundo) e — escutando agora a narrativa vocal de Jabr — vai inevitavelmente tomando contornos de pergunta, que por sua vez encontra correspondência no majestoso arranjo cenográfico do Decoratelier.

Jozef Wouters/ Decoratelier – Infini #5

Contracenando com (a abstração-concretização dos) desenhos de Bibiena, que representavam no interior da sala potenciais fachadas de edifícios exteriores, a carta testemunha os desvios — iltifafy (serpentear) — encetados pelos habitantes palestinianos entre as cidades (e as fachadas arquitectónicas e políticas daquele lugar) de modo a contornar os postos de controle diário.

Com o desenrolar da carta, a estrutura no palco vai desaparecendo: erguem-se as primeiras colunas, revelando afinal que toda a massa arquitectónica era afinal constituída por vários planos sobrepostos em profundidade; a ação centra-se no lento descortinar dos painéis, dos túneis, da estrutura, da fachada, revelando agora um palco aberto, um espaço livre:

 

No final, batemos palmas, mas ninguém surge. Reparo então que havíamos escutado uma gravação. E de imediato me lembro da tosse: volto àquele momento da leitura em que a narradora tosse, pára, e a ouvimos  beber um gole de água e a agradecer (thank you), retomando depois a narração.

Este gesto, completamente normal e casual, ou pelo menos espetável num momento de oração pública, transforma-se retrospetivamente numa interferência que quase mina a memória do discurso. A tosse fica irrevogavelmente associada à performance, agora congelada e recuperável no seu registo.
A tosse em si não significa nada, acontece esporadicamente, completamente — ou, à luz da performance, parcialmente — exterior ao discurso, embora possa irromper a qualquer momento, frequentemente numa situação elocutória. Por outro lado, não se trata aqui de um excerto de uma entrevista ou de uma conversa apanhada por acaso, mas sim de uma gravação para uma performance, de um ficheiro que seria normalmente editado ou “limpo”, e a tosse eliminada.
Contudo, optou-se por preservar o momento da leitura, o testemunho tal qual como aconteceu, com fôlego e desfôlego, com toda a informação exterior ao discurso e à performance — exterior, porque o recurso à tosse não foi explorado performaticamente no espetáculo.

Calhou que na noite seguinte o tríptico de performances agendado incluísse de novo Infini#5 3. Escusado será dizer que não mais consegui prestar atenção à leitura, com o afinco que aguardava a tosse. Essa explosão de interferência tornou-se-me central à escuta, o clímax de toda a leitura, o ponto charneira até onde se acumulou toda a atenção-tensão da escuta que só desinsuflou na confirmação cúmplice e prazerosa da consumação da expetativa: uma simples tosse como difusora de sementes disruptivas, o detalhe sonoro menos importante de todos, ainda assim capaz de abanar os enormes painéis bibiânicos e inculcar, como escreve Cortázar, a presença do “maravilhoso”.


A tosse de uma senhora alemã

Em Papeles Inesperados (2009), coletânea póstuma de textos inéditos e avulsos de Julio Cortázar (1914-1984), “encontramos verdadeiros “túneis” 4 que se comunicam com o melhor da ficção cortaziana”, entre os quais esta descrição (1979) da retransmissão, pela rádio francesa, de um concerto da Rádio do Setor Americano (RIAS)5 em 1947, com Wilhelm Furtwängler a dirigir a  Orquestra Filarmónica de Berlim, juntando-se-lhes Yehudi Menuhin no Concerto em Ré de Ludwig van Beethoven.

Mas eis que também aqui toda a concentração auditiva se fixa num só elemento — a tosse:

Ludwig van Beethoven, 2ª andamento — Larghetto — do Concerto para violino e orquestra em Ré Maior, Op.61, com Yehudi Menuhin no violino e Wilhelm Furtwängler à frente da Berliner Philharmoniker. Gravação pela RIAS em 1947. 6

 

A tosse de uma senhora japonesa:

Há ali algo a tentar saltar cá para fora; algo que impele o corpo e o estrangula com energia oculta, soltando-o depois engasgado, amordaçado e tossido: uma respiração agitada expulsa dos pulmões, restolhada através da laringe, projetada por sobre a língua, empurrando de volta para cima o ar húmido daquelas regiões profundas. (Brandon LaBelle: 2014: 43, trad.TS)

Yoko Ono. 1963. Cough Piece. Gravada em Tóquio em 1961. 7

Yoko Ono: Voice Piece for Soprano. © Lenono Photo Archive

Se nos dois exemplos anteriores a tosse i-nte-rrompe n-um discurso, vocal (a leitura de uma carta) ou musical (o andamento lento de um concerto), na Cough Piece [Peça para Tosse] (1961) de Yoko Ono (1933, JP) a tosse constitui a atividade central da performance, pontuando o espaço da gravação ambiente — aquele marulhar do ar livre que frequentemente faz de silêncio.
Não conseguimos depreender da gravação a gestualidade da atuação, escutamos somente aquele corpo convulso, estacando primeiro de ouvido alerta para potencial sinal de doença ou desconforto, prosseguindo depois, confusos, para a expetativa incerta da continuidade sonora (o ficheiro tem a duração de 31 minutos) até desembocar numa compreensão algo desconcertada do material que o ouvido nos apresenta.
Nem chega a ser produzido qualquer discurso nem, consequentemente, chega a ser obliterado. A tosse produz um encadeamento a que nos adaptamos, enquanto ouvintes, procurando seguir no trilho sonoro as nuances mais subtis daquela garganta irritada na qual queremos encontrar uma máquina-de-falar avariada. 

À falta de melodia ou som contínuo — música —, aquela expelição confronta-nos com uma decisão ambígua: se por um lado a tosse fora sempre marginal à linguagem, também nunca deixou de estar presente — imprevisível, circunstancial —, e, neste exercício agreste, esta é precisamente a única nesga de aproximação a um potencial de familiaridade linguística: a ponte para a comunicação afigura-se agora dependente daquilo que sempre prescindiu e ocultou. 
Na ausência de mais (sinais), o ruído é reorganizado no processo de escuta, acumulando camadas, amplificando sons de fundo, estabelecendo novos parâmetros que se vão distanciando da produção fonatória da linguagem.

Desta forma, quanto mais a boca desvela o corpo, mais transgride a aceitabilidade social. A oralidade é assim primeiramente entendida como uma operação linguística, e a voz como o sítio da articulação vocal. (Brandon LaBelle: 2014: 43)

A tosse é um arremesso corporal que resulta de algo vindo do exterior que tentou a interiorização; quando essa matéria externa — pó, comida, líquido, palavras — passa as pregas vestibulares (ou falsas cordas vocais) e penetra a traqueia, o corpo reage convulso, propulsando do diafragma os golpes de ar necessários à reversão da trajetória invasora, devolvendo e amplificando no exterior a mecânica do processo interior que, anterior à linguagem, exige o hermetismo compacto de um motor no fluxo contínuo de admissão, compressão, combustão e escape.

No entanto, a boca pode igualmente ser o lugar de escape, o portal através do qual adicionalmente expele, por via de agitados actos de fala, verborreias, fluências e paralisias, tosses e espasmos, sem esquecer o vómito auto-induzido. (Brandon LaBelle: 2014: 31)

Fora deste processo motriz, a tosse pode adquirir (des)valor simbólico na força da sua interrupção, normalmente provocado nas extremidades (no início ou no fim ) do discurso, seja na sinalização de presença, no aclaramento da voz ou no simples embaraço.

 


Bibliografia

CORTÁZAR, Julio. 2010. “A tosse de uma senhora alemã” [1979]. Papéis Inesperados. Traduzido por Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu. Lisboa: Cavalo de Ferro.

GÁRATE, Miriam. 2010, jul 8. “O baú de Cortázar”. Revista Culthttps://revistacult.uol.com.br/home/o-bau-de-cortazar/

JANUÁRIO, Pedro Gomes. 2007, dez. “Giovanni Carlo Sicino Galli Bibiena: Teatro real da Ajuda”. Artitextos 05: 37-51. http://hdl.handle.net/10400.5/1794

LaBELLE, Brandon. 2014. Lexicon of the mouth: poetics and politics of voice and the oral imaginary. New York: Bloomsbury. 

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