Vocês, humanos

Trompe l’oeil 

Entramos e sentamo-nos numa pequena sala fortemente iluminada, disposta em anfiteatro, com um enorme espelho circular que abarca o reflexo dos nove participantes, cada um com auscultadores. Selecionada a língua, a audio-guia apresenta-nos os seres diante de nós — ou seja, nós próprios — e convida-nos a observá-los(nos) atentamente, inclusive a considerar alguns parâmetros associados àquela espécie, como a longevidade: “Mostre por gestos a sua idade”, “Qual deles irá viver mais tempo?”, “Quem irá desaparecer primeiro?”…1

“Agora feche os olhos… e pense como será daqui a dez anos… E daqui a vinte anos?… E daqui a trinta anos? E daqui a quarenta? E daqui a cinquenta?” 

“Abra agora os olhos.” 

A sala escureceu, e no lugar do espelho surge um redondo e azulado aquário onde, ao longo do seu diâmetro, em rotação ininterrupta, circumnavegam alvas e esvoaçantes medusas.

Medusas que — vai informando a audio-guia — entram pelos canos de refrigeração das fábricas e entopem o sistema2. Medusas que não gostam de passar a noite em branco 3. Medusas que dificultam o restabelecimento de outras espécies de peixes num território por elas ocupado. Medusas que nem sequer nadam, apenas flutuam4.  

Agora reparem naqueles humanos.

Em astucioso jogo de contra-luz, emerge no espelho outro grupo de seres humanos numa sala igual à nossa. 
Continuamos no escuro e, abrigados no anonimato, observamos o outro grupo, confundidos pela imagem que se nos apresenta (imagem?, reflexo?, gravação?, do arquivo?, do grupo que nos precedeu?…).

Orgulhosos, poderosos, … ei-los a deixar uma mensagem de despedida, a abandonar a sala, a dar lugar a outro grupo de seres humanos.

Testemunhamos em tempo real — tempo histórico condensado — a mudança de gerações, o passar do tempo através do filtro aquático da perspetiva das medusas. Como se aguardássemos, em águas profundas, quietos e impassíveis —embora provavelmente mais expetantes do que as alforrecas —, a troca que se dá no outro lado, à superfície, à luz do sol.

Vejam, aí estão eles a gesticular quantos anos irão viver, a apontar quem acham que irá sobreviver ou desaparecer…. Oh, como eles se acham especiais e confiantes…

Voltamos à observação das medusas, mas o sentimento de termos sido objeto de observação atenua drasticamente a superioridade do observador distante; o nosso voyerismo foi traído/ revertido. O fascínio permanece, mas, influenciados talvez pelas descrições científicas das medusas, começamos a duvidar de quem analisa quem. Talvez as medusas nos observem a todos.

 

Somos objetos da rotação dos elementos  do virar das coisas — tal como uma planta sob o suceder da Lua, das nuvens, do Sol, também nós, naquele anfiteatro suavemente traiçoeiro, passamos de parte refletora a parte refletida, oscilamos oscilante impotentes ao passar das luzes e das sombras.

Medusas que são gelatina, sem olhos nem corpo nem cérebro. Medusas cujos filamentos-filigrana detetam toda a envolvência. Medusas que estão praticamente no final da cadeia alimentar 5. Medusas que são 98% água e quase desaparecem fora desse elemento. Medusas que sobrevivem quando já toda a outra fauna se extinguiu. Medusas que perpassam os  quinhentos milhões de anos 6.
Medusas que continuarão a boiar e a circular. Medusas indiferentes.

As vozes continuam com excertos de entrevistas a cientistas 7 que descrevem estes seres arcanos que provavelmente nos sobreviverão.
Nós, ao espelho, na efemeridade daquele momento performático para o qual fomos engajados simultaneamente da forma mais subtil e  violenta — um espelho-aquário que nos prendeu em camera obscura. Submersos na instalação, não estávamos contudo isolados; para além dos restantes cobaias do público, a voz-guia acompanhou-nos constantemente — a locução não contraria a experiência, mas apresenta evidências e suscita reflexões que a mudança virtual dos espaços obriga a reinterpretar.

 “Escrevam no ar algo que vos ocorra à mente, e despeçam-se daqueles seres”

Nós, humanos.
Percebemos (?) retrospetivamente que no início também nós tínhamos sido secretamente observados do outro lado do espelho, e suspeitamos agora que por detrás do espelho outros olhos seguirão com atenção o nosso gesticular, acenar e retirada da sala. 

Saímos, para rapidamente outro grupo entrar.

 

Tu, que vives

Um grupo de pessoas vai enchendo o elevador, um senhor corre ainda para o apanhar, mas aqueles que já entraram não esboçam qualquer gesto de cedência. As portas fecham e ao velhote restam as escadas.

You the living – psychiatrist scene (Roy Andersson: 2007)8

Sonhos, frustrações, queixumes e pequenas crueldades do dia-a-dia compõem as cenas de Du, Levande [Tu que vives] (2007) do sueco Roy Andersson (*1943). Passamos do riso ao arrepio, em toda a franja do humor negro, pontuado em boa hora por tragicómicos interlúdios musicais, talvez o único espaço de catarse daquelas personagens exaustas.

Os lamentos de solidão e incompreensão abrem-se em monólogos, como feridas. Concentramo-nos compassivamente naquela personagem, que fixa um ponto algures atrás do espetador, mas, enquanto aguardamos que a câmara vire e nos mostre o interlocutor, percebemos de súbito que somos nós, afinal, os destinatários daquela acusação velada: também nós somos os viventes que a fazem sofrer, e  o seu olhar fixo — nos momentos específicos em que isso acontece de forma tão declarada — apanha-nos na armadilha daqueles dramas que de repente são tão nossos.

Aquele filme é como um tanque de medusas, coloca-nos em modo national geographic — a grande diferença será talvez que aqueles seres são nossos pares: 

Herman José: Herman Enciclopédia [excerto]9

Na exposição, o jogo entre espelho (nós) e aquário (medusas) ganha uma dimensão inesperadamente desproporcionada — aqueles seres frágeis e dançantes que só sobrevivem aquaticamente, não se comparando à inteligência e força humana — embora paradoxalmente a nosso desfavor — as medusas habitam a Terra há mais de 500 milhões de anos e bloqueiam centrais nucleares.

Nós, entretanto, continuamos a hastear a nossa bandeira:

John Gerrard (*1974): Western Flag (Spindletop, Texas) 2017 : midday 


 

win > < win  situation

“Estamos nesta situação absurda, inesperada e incompreensível, em que temos de competir com alforrecas. E elas estão a ganhar”, diz a bióloga marinha australiana Lisa-Ann Gershwin, perita em medusas.
Nos últimos 670 milhões de anos, as águas-vivas têm flutuado, imutáveis, nos nossos oceanos, e tudo aquilo que prejudica o nosso ecossistema parece beneficiá-las…

10

win > < win é uma instalação11 encomendada para a exposição Después del fin del mundo (2017) organizada por José Luis de Vicente para o Centre de Cultura Contemporània de Barcelona (CCCB)12.

Rimini Protokoll são Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel.13

 

win > < win é uma das instalações dos Eco-Visionários 14, proposta do MAAT para a discussão do Antropoceno:

 

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