Voz, três solos: gorjeio

Ute Wassermann: chilrear humano

Bird talking 1 sintetiza em si a esfera de influência sonora que presidiu ao concerto de Ute Wasserman — “fala de pássaro” no Vale do Ave:

Ute Wassermann, 11 de setembro de 2018: “Canções estranhas & assobios de pássaro”. Concerto no MIEC, em Santo Tirso.

Conquanto as cordas vocais produzam uma impressionante variedade de sons, cabe ao trato vocal moldar os sons em bruto e transformá-los em linguagem e música. O trato impõe um modelo aos sons criados nas pregas vocais, selecionando para isso uma certa combinação de tons: nomeadamente, aquelas que correspondem às frequências naturais de ressonância do ar no trato vocal. Quando se fala ou canta, as frequências ressonantes — ou frequências formantes — sobem ou descem consoante o movimento da língua, dos lábios, etc. (EDGERTON e LEVIN 1999)

 

Edgerton (1999)

Treslendo o panfleto de apresentação, a voz de Wassermann assimila e projeta tudo o que não é humano — “sons de pássaros, de máquinas, de equipamentos eletrónicos” —, a partir de um repertório de “trinados e yodels multifónicos, loops de ululações, tons de beatbox e repentinas explosões de percussão…”, ou seja, dos elementos que “parecem estar desconetados da voz”.

Com efeito, o lugar da voz parece apenas coincidir por acaso com o lugar de articulação da linguagem; os sons que ouvimos “desafia[m] a nossa habilidade para entender o seu som como vocal”, sons que decorrem afinal da mais ruidosa especialização e maximização das capacidades vocais. Note-se que estas “Canções estranhas para voz & assobios de pássaro” não se demoram na mera imitação animal; longe disso, fala de pássaroco-responde ao caráter e exigência técnica aplicadas pelas aves em todo o seu fervor:

siringe

O órgão usado pelos pássaros na produção de vocalizações (canto e chamamentos) diverge muito do nosso quanto a localização e estrutura. A laringe dos mamíferos está localizada no topo da traqueia [windpipe] e contém membranas (cordas vocais) cuja vibração – pela passagem do ar – é controlada por um conjunto de músculos e cartilagens.
O órgão vocal dos pássaros, pelo contrário, é constituído por uma única estrutura óssea denominada siringe [syrinx], rodeada por um saco de ar e situada na extremidade inferior da traqueia, bem fundo na cavidade peitoral. Ali alojada, a siringe torna-se uma câmara de ressonância, juntamente com a vibração de membranas altamente elásticas. (EHRLICH, DOBKIN, e WHEYE 1988)

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Fala de pássaro[bird talking] pode traduzir-se porchilrear humano”: espaço que não se restringe à cópia do canto dos pássaros, mas insiste na sua reprodução mecânica. Partindo da técnica proporcionada pela anatomia aviária do órgão siringe, este serve de modelo para a exponenciação e amplificação do som humano por via do aparelho vocal e de todos os formantes e sub-/ sobre-cavidades da voz.

Em sentido contrário, casos há em que um pássaro é capaz de imitação, como este da ave-lira australianasão todavia aves raras da natureza, tal como Wassermann o é no habitat humano.

Ave-lira imitando uma motosserra

Quando o imitador copia a canção de uma outra espécie, será que aplica o mesmo mecanismo usado por essa espécie para produzir a canção, ou inventa uma nova maneira de a recriar? O pássaro imitador da América do Norte (northern mockingbird [Mimus polyglottos]) é famoso pela sua aptidão para imitar outras espécies (Baylis 1982), mas o mecanismo vocal usado na sua concretização é desconhecido. (SUTHERS 2004, 288)

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Será a ave-lira um protótipo de gravador natural? Apesar de inortodoxos ou marginais, os mecanismos humanos (físicos e simbólicos) que levam à imitação são-nos relativamente familiares . Em que difere então a imitação da ave-lira australiana da imitação humana de um fenómeno da natureza ou de um registo por via tecnológica?
Walter Ong, a propósito de „invocação“ verbatim 4 , atribui os vícios da exata reprodução como um artificialismo decorrente da escrita e com fraco uso na oralidade, dado que as fórmulas do contar e recontar requereriam assimilação prévia da cadência, e entrementes um compasso de espera para a criação de suplemento narrativo próprio que acabaria por se afastar da „pura“ imitação… à la lettre, precisamente.

Ouçamos um excerto do projeto de Wolfgang Müller (1957, DE), que reuniu um grupo de artistas para recriar os sons de pássaros extintos:

Wolfgang Müller (2008) Séance Vocibus Avium: Sequence B: “Pinguinus impennis”/ Riesen Alk [Arau Gigante]

Já anteriormente Olivier Messiaen (19081992, FR), enquanto compositor-ornitólogo, registara o canto dos pássaros, traduzindo-os para os signos compositivos da linguagem musical. Dada a velocidade dos gorjeios, Messiaen tratou de lhes reduzir a velocidade, aquando da audição da fita, permitindo assim expandir e transcrever a complexidade aviária para uma partitura. Um dos exemplos mais diretos dessa absorção e aplicação musical pode ouvir-se (e ver-se) na sua peça 5 para flauta transversal e piano (MESSIAEN 1952):

Retornemos à performance voco-corporal de Ute Wassermann, que se complementa por via de pequenos instrumentos de boca – campânulas, bocais invertidos, esferas de Helmholz, berimbau de boca, flauta de êmbolo, apitos nasais… –, suplementos que pontuavam as truanices bucais, bem articulados e inseridos no decorrer da montagem dos ruídos vocais. Esta componente mecânica que se mestiça com a vocal (à laia de primórdio de instrumento musical) aciona uma estranha passagem entre elementos mecânicos e humanos que, na sua justapoisção, colocam a nu a desagregação de parte a parte. O resultado, neste contexto de estranhamento, aciona frequentemente um estímulo lúdico, recebido e devolvido pelo público, em especial o infantil, mais dúctil na perceção do potencial risível de uma performance.

Desviando-se da imitação direta da “fala dos pássaros” (aproveitando todavia a sua amplitude técnica), também não se trata, inversamente, de uma adaptação ou inflexão do canto contemporâneo a novos elementos (progressivamente inseridos em novas composições); neste caso, o corte é drástico: Wassermann ativa um repertório próprio, transitando de técnica em técnica, em encadeamento próprio dos blocos ou tropos de improvisação ruido-vocal. Poder-se-ia talvez comparar às incursões de Cathy Berberian, embora sem a réstia de ligação (ainda que fragmentária) à linguagem; aqui, aguarda-se linguagem na medida mínima em que o corpo que vocaliza é humano, sendo portanto impossível escapar a uma esperança, ainda que remota, de comunicação verbal. Em grande parte das peças, por mais que se brinque ou tergiverse, não entope a voz o seu canal mediador, augurando sempre qualquer fragmento de palavra escondida, filtrada, cortada ou estilhaçada. No entanto, esta não acontece; nem, de resto, surge ou se pondera a sua contraparte escrita. A marca da ausência de palavras demarca por sua vez a posição exclusivamente fonatória. A ininteligibilidade vocal, a par de uma certa forma de anoxia verbal, ameaçam a potencial definição de poesia sonora: é a palavra ou a linguagem imprescindível? Mais ainda, é sequer a voz um elemento central à sua ontologia?

Birgit Ulher & Ute Wassermann (2015) “Radio for Birds”, em Radio Tweet [excerto]

A rarefação palavrosa remete (dúbia e) frequentemente, na academia, para uma imaginário proto-linguístico, e, consequentemente, primitivo (cf. ONG [1982] 2002, 49). Observe-se que a performance de Ute Wassermann se mantém no profissionalismo antissético da “música erudita contemporânea”, não cedendo a sua investigação ante-verbal a explorações ritualistas ou xamânicas (tal como acontece nas performances de Fátima Miranda, onde tudo — voz, corpo e espaço — ganha um valor simbólico e ancestral).

Em Wassermann, não (apenas) canto, mas destreza vocal, máquina(s) ao ralenti. Estes ruídos são organizados (cf. VARÈSE e WEN-CHUNG [1962] 1998, 393) para a performance como se a qualquer outro dispositivo pertencessem (eletrónico, analógico, acústico…), di[z]correndo, gargarejando ou crepitando sobre um painel de fórmulas não-anotadas 6 de improvisação. Algo exclusivamente humano que na sua máxima exponenciação se ultrapassa e coloca em dúvida (tenta) a própria humanidade.

 

An Interview with Ute Wassermann, por  Agosto Foundation, no Vimeo. Filmado por Dominik Žižka; entrevista por Petr Slabý.

Ute Wassermann (1961, DE) é uma das femmes savantes.
O seu último álbum, Radio Tweet (2015) tem a colaboração da trompetista alemã Birgit Ulher e conta com a produção do português Ernesto Rodrigues.

 


Bibliografia

EDGERTON, Michael E., e Theodore C. LEVIN. 1999. «Los cantores diafónicos de Tuva». Investigación y ciencia, n. 278: 70–77. https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=39299.

EHRLICH, Paul R., David S. DOBKIN, e Darryl WHEYE. 1988. The birder’s handbook: a field guide to the natural history of North American birds: including all species that regularly breed north of Mexico. New York: Simon & Schuster.

KROODSMA, Donald E., Edward H. MILLER, e Henri OUELLET, eds. 1982. Acoustic communication in birds. Communication and behavior. New York: Academic Press.

ONG, Walter J. (1982) 2002. Orality and literacy: the technologizing of the word. London; New York: Routledge. http://site.ebrary.com/id/10428071.

SUTHERS, Roderick A. 2004. «How Birds Sing and Why It Matters». Em Nature’s Music: The Science of Birdsong, editado por P. Marler e H. Slabbekoorn, 272–95. New York: Elsevier. https://doi.org/10.1016/B978-012473070-0/50012-8.

VARÈSE, Edgard, e Chou WEN-CHUNG. (1962) 1998. «The Electronic Medium». Em Contemporary composers on contemporary music, editado por Elliott SCHWARTZ, Barney CHILDS, e James FOX, 1st Da Capo ed., expanded ed, 392–95. New York: Da Capo Press.

Discografia

MESSIAEN, Olivier. 1952. «Le merle noir: pour flûte et piano». Com Christian Lardé (flauta) e Yvonne Loriod (piano).

MÜLLER, Wolfgang. 2008. Séance Vocibus Avium. Vinyl 7. Vol. FB009. Suécia: Fang Bomb. https://www.discogs.com/Wolfgang-M%C3%BCller-S%C3%A9ance-Vocibus-Avium/release/1568721.

WASSERMANN, Ute. 2007. Birdtalking. Cd. Vol. BERSLTON 106 09 13. Bremen, Alemanha: Nur/Nicht/Nur. https://www.discogs.com/Ute-Wassermann-Birdtalking/release/2546031.

WASSERMANN, Ute, e Birgit ULHER. 2015. Radio Tweet. Cd. Vol. CS 335 CD. Portugal: Creative Sources. https://www.discogs.com/Ute-Wassermann-Birgit-Ulher-Radio-Tweet/release/7890835.

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