“Desescrever”

Desescrever, proposta de Márcia Lança, Rafael Frazão e Carolina Campos para uma das performances que perfazem Gerúndio, festival organizado por Miguel Oliva Teles, apresentou, no dia 29 de outubro de 2024, em Lisboa, “formas materiais e concretas de desescrever palavras.”

Foi na Travessa do Calado/ Fórum Dança que, calados, mas soltando aqui e ali um ah de êxtase, assistimos, qual enxame de curiosos, à deflagração erosiva da matéria. Numa sala-estaleiro, palavras (Segurança, Oferta, Inspirador, Prémio, Luxo, Novo, Único, Exclusivo, Elegante, Desconto, Sucesso, Moderno, Resultado, Extra, Útil, Comprovado, Rápido, Confiável…) articuladas em diferentes elementos (ferro, giz, verniz, manteiga, berlindes, fósforos, espuma, ímanes…) aguardam a intervenção (pisadura, esmagamento, raspagem, derretimento, vaporização, aspiração, ignição, choque, vibração, escorrimento, dobragem, pintura, amalgamento, pulverização, descongelamento, deglutição…). Os performers/ guias/ técnicos/ cientistas (?) vão aplicando as forças e os reagentes, e o público avalia os estragos.

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Encontros FONOVOZ

Os Encontros FONOVOZ curadoria de Manuel Portela e Rui Torresapresentam uma amostra da poesia sonora. (…) Trata-se de situar a nossa atenção nessa oscilação entre perceção fonográfica e perceção vocálica, que nos permite escutar os sons da língua e os sons da voz ao mesmo tempo. A poesia sonora oferece-nos uma arte da linguagem enquanto processo emergente da máquina fonadora do corpo humano. 

O encontro FONOVOZ de 2025 foi concebido a partir da articulação do par de palavras “dissonância” e “dissidência”. A modulação sonora que associa os dois conceitos parte destas duas perguntas: como evocar o momento político presente através da poesia sonora? O que pode a voz contra a linguagem violenta do poder? 

10 de outubro de 2025: Fernando Aguiar & Alessandra Eramo. O’culto da Ajuda, Lisboa. Misomusic.

Fernando Aguiar apresenta-nos, reinventado — sem livro, de folhas soltas, amarfanhadas algumas, com vídeo, com som, com voz —, o novo manual escolar, pleno de velhas práticas de aprendizagem do bê-á-bá. Continue reading

VoxLit: “Rosita, até morrer”

 

novo episódio do podcast VoxLit

Em destaque, a leitura multivocal de excertos do texto “Rosita, até morrer” de Luís Bernardo Honwana.
Vozes de Ana Marques, Elena Soressi, Elizama Almeida, Jacqueline Conte e Mafalda Lalanda.
Participação especial: Professor Osvaldo Silvestre.
Montagem: Tiago Schwäbl.

Outras rubricas em escuta: Tempo na História, Hipoglote, Comprimido de Leitura, Técnica e Utopia.

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ciclo Voz e Auralidade nas Artes Performativas

Coimbra, 7 – 10 fevereiro, TAGV

voz à boca de cena, voz de cena à boca e cena de voz à boca

O ciclo Voz e Auralidade nas Artes Performativas constitui uma mostra de manifestações artísticas onde se exprime a diversidade do suporte da linguagem no âmbito do que se tem vindo a designar como teatro expandido, explorando gestos vocais alterados pela exigência de uma escuta que antecede o falar. Este exercício traz a jogo as variantes da voz em cena, numa dinâmica combinatória que compreende as suas diversas extensões: voz à boca de cena, voz de cena à boca e cena de voz à boca, consoante o foco das propostas artísticas. Tais mutações definem a razão de ser deste ciclo que, antevendo a multiplicidade destas práticas, se apresenta sob a forma de espetáculos, instalações, passeio sonoro, debate e edição.

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EchoManAfonso

Cada geração tem o seu filme de domingo à tarde e respetiva febre de sequelas avidamente comentadas e reproduzidas nos recreios da escola mais próxima. A Academia de Polícia é um daqueles filmes sem explicação, de repercussão retardada (um sleeper hit), sem realizador que se lembre (Hugh Wilson), com uma paleta de heróis desengonçados (no Brasil chamou-se a Loucademia de Polícia) que não obstante deixaram a sua marca — hoje basta uma busca rápida para identificar o cadete gigante Moses Hightower (Bubba Smith), o cadete tarado pelas armas Eugene Tackleberry (David Graf), o frustrado Tenente Thaddeus Harris (G.W. Bailey), o senil Comandante Eric Lassard (George Gaynes), a esganiçada Cadete Laverne Hooks (Marion Ramsey), o vilão de voz brutalmente irregular Zed (“Bobcat” Goldthwait) e, claro, o delírio dos putos, o Cadete Larvelle Jones (Michael Winslow):

Poucos miúdos daquela geração não devem ter imitado o alarme daquele aspirante a polícia que baralhava todos os sistemas. O Afonso foi um deles.

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Doda Lingua en Limalandia

Como se o verbo obrigasse, rever a faixa áudio fez disparar inadvertidamente uma sequência de imagens: literalmente, Irse de lengua a partir de Doda Lingua.

grafismo por Héctor Delgado

Ao escutar de novo a recolha de Poesía sonora peruana por Luis Alvarado, esse duplo gesto de afastamento e chegada da língua à (ponta da trampolínea) língua — irse de lengua — destapou outro disco da Buh Records: Doda Lingua.

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O sotaque dos afónicos

Dallas Intro Season 1 (1978)

O espetáculo começa com abertura bombástica em voz-off, preparando o carrossel narrativo – the plot! – que condensará uma série de temporadas televisivas numa só cena, num só fôlego. Uma gigantesca nota de dólar americano – oh, money money – forra todo o cenário , enquadrando uma longa mesa de toalha branca com copos e vários telefones cromados e, do lado direito…um mexicano que praticamente não se moverá durante toda a peça.

Entra em cena a família Ewing: Bobby! Jock! JR! Miss Ellie! Lucy! Pamela! Sue Ellen!! –, os homens de fatinho branco e chapéu à cowboy, de pistola na mão ou à cintura, na jactância prepotente que identificamos como texana, e as mulheres de vestido brilhante e fartas cabeleiras artificiais.

E depois começam a falar.

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Traições à letra, Bruno Ministro

Apagões escritos

Veio a lume , no carbon copy da internet, mais uma obra de Bruno Ministro , uma inscrição que, de tão reiterada e queimada nas impressoras deste mundo, passou à condição de símbolo, agora reobservado e desmontado pela habitual postura zarolha do Autor, olhando de viés discursos retilíneos e claros, asséticos (embora não a ponto de o branco se confundir com o vazio). Em inglês – e “na América” –, como manda a lei, This page intentionally left blank (MINISTRO 2018b) pode ser adquirido numa plataforma online.

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Joker Molder

Até 30 de março de 2018, nas Carpintarias de São Lázaro em Lisboa, Jorge Molder lança à parede Caras, Mãos, Bocados e Espectros, os naipes do seu Jeu de 54 cartes.

Jorge Molder. Do documentário Entre Imagens (2012), de Pedro Macedo e Sérgio Mah.

Mãos

O ilusionista saltita dentro das cartas, mas não perde mão delas. Este é o trunfo do artista: deter o espetador como refém da estaticidade da imagem, mesmo que todos os sinais remetam para a encenação de um movimento, para uma teatralidade. De camisa branca sob fato negro, corpo branco surgindo da escuridão, o mímico joga às escondidas com o autorretrato, re(a)presentando-se numa pseudo fuga constantemente apanhada num “momento presente (…) de ‘polifurcação’” (ROZZONI 2018, 90).

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nome de gente, melodia de pássaro

Verdilhão (carduelis chloris)

Verdilhão/ carduelis chloris (2009-04-02), em Dwingelderveld, Drenthe, Holanda, gravado por Sander BOT (xeno-canto)

Mas o ar tinha uma certa graça e, se bem que a ornitologia do trilo fosse discutível, será que não valia mais a pena começar a aprendizagem de [‘ʒwɐ͂w̃] com um chilrear acessível para depois o encerrar num trilo único de onde nunca mais sairia? (VILLEMAUX 2019, 13)

O primeiro número (#0) de Coreia (fevereiro de 2019) foi lançado na Rua das Gaivotas 6 em Lisboa no passado dia 24 de fevereiro de 2019 e inclui um texto de Cyriaque Villemaux (1988, Offenburg, DE) – “Enfanter le père” (“Inventar o pai”, na tradução de Vieira Mendes) – que parte da “ideia segundo a qual nós também herdamos dos nossos sucessores”.

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