As musicalidades da poesia, por Mariella Augusta

Nelson Rodrigues dizia que o que dói na bofetada é o som. O som da humilhação.  Sendo assim, se a ação, ao menos no drama, vale mais do que a palavra, o som valeria mais do que a ação. De fato, Chaplin renunciou às palavras, mas trabalhava de modo obsessivo as suas trilhas. Foi por causa de um som que sua florista pôde confundir um andarilho com um milionário. O som desperta. O mesmo acontece na literatura – os estados de ânimo são construídos pelo escritor, por certo, pelos significados, mas também pelos seus significantes. E todo significante é sonoro.  Ouve-se a palavra até no silêncio – do engenho ou da memória auditiva que começou a crescer ainda no útero.

O texto literário, ainda que em matéria muda, representa um objeto sonoro como acontece à notação musical. Com a diferença de que a música chegou na dissolução da nota e a literatura será sempre uma arte de fonemas.  Cada verso da poesia e cada linha da prosa são construídos como frases musicais. A ideia procura o som que as vai transmitir do mesmo modo que a melodia procura os acordes a fim de realçar ou subverter o afeto harmônico que lhe é intrínseco.

Escritor e compositor escrevem o que ouvem e ouvem o que escrevem: as organizações métricas, as distribuições rítmicas e as construções melódicas que produzem. O escritor, tal como o músico, procura a tensão e o repouso, um tempo dividido e uma colocação vocal por região. Segundo Ezra Pound, os poetas deveriam saber música, ao menos, como a sabe um músico medíocre.

Ocorre que, ao plasmar suas figuras e seus silêncios, o poeta, senhor da palavra escrita, vai deixar nos significantes parte da musicalidade que criou. Não poderá, contudo, garantir que repitam seu timbre, sua região tonal ou sequer quando ela deverá ficar forte e fraca. A materialização dos sons do poema está nas mãos daquele que o lê ou que o declama. Continue reading

Uma nova colaboradora do Vox Media: Mariella Augusta

Dando início a um processo de renovação e alargamento do quadro de investigadores do Vox Media, publicamos hoje o primeiro post de Mariella Augusta, cuja apresentação pode ser visitada aqui. Dadas as suas áreas de competência, que vão do Direito à Literatura e à Música, é fácil perceber que esta colaboradora que nos chega do Brasil contribuirá decisivamente para o novo impulso que o projeto receberá nos próximos meses e de que iremos dando notícias.

A voz de uma personagem de 1614

A peça Fuenteovejuna, do dramaturgo espanhol Lope de Vega, é de 1614-1619. Trata de uma vila, com o nome de Fuenteovejuna, tiranizada por um comendador. A vila, após sofrer humilhações e abusos, revolta-se e mata o comendador. Num inquérito ordenado depois pelo rei, toda a vila é interrogada e, sob tortura, cada pessoa diz que foi Fuenteovejuna que matou o comendador. Não havendo formalmente um único culpado, o rei regula o incidente e decide-se pelo perdão colectivo à vila.

Podemos dizer que o comendador é um tirano (para lá de outras considerações, muito seiscentistas, sobre o modo errado como ele faz a sua função e sobre o poder inquestionável do rei).

Cada tempo verá a personagem do comendador de modo diferente e cada circunstância o representará com uma determinada voz: em 1973/74, em Portugal,  sob a ditadura de António Oliveira Salazar/Marcello Caetano, a peça Fuenteovejuna foi representada pelo Teatro Experimental de Cascais. Tiveram 14 visitas da censura que resultaram na interdição do espectáculo. Sugiro que a voz do comendador terá motivado fortemente a censura:

 

A voz do comendador é a imitação rigorosa da voz de António Oliveira Salazar. Em 1973/74, a personagem do tirano seiscentista tinha a voz do ditador português. Isto falara para os ouvidos da censura, do público do espectáculo e fala ainda mais para um país já saído da ditadura.

No vídeo, a representação de João Vasco na encenação de Carlos Avilez.

Em conclusão, o teatro é fruto do seu tempo, falando para os seus contemporâneos. O teatro pode ser fixado e apreciado enquanto obra dramática e literária, contudo será entre actor e espectador que se realiza. A voz em palco é um traço dessa relação e em cada geração e tempo será dada uma voz diferente para cada ideia.

EchoManAfonso

Cada geração tem o seu filme de domingo à tarde e respetiva febre de sequelas avidamente comentadas e reproduzidas nos recreios da escola mais próxima. A Academia de Polícia é um daqueles filmes sem explicação, de repercussão retardada (um sleeper hit), sem realizador que se lembre (Hugh Wilson), com uma paleta de heróis desengonçados (no Brasil chamou-se a Loucademia de Polícia) que não obstante deixaram a sua marca — hoje basta uma busca rápida para identificar o cadete gigante Moses Hightower (Bubba Smith), o cadete tarado pelas armas Eugene Tackleberry (David Graf), o frustrado Tenente Thaddeus Harris (G.W. Bailey), o senil Comandante Eric Lassard (George Gaynes), a esganiçada Cadete Laverne Hooks (Marion Ramsey), o vilão de voz brutalmente irregular Zed (“Bobcat” Goldthwait) e, claro, o delírio dos putos, o Cadete Larvelle Jones (Michael Winslow):

Poucos miúdos daquela geração não devem ter imitado o alarme daquele aspirante a polícia que baralhava todos os sistemas. O Afonso foi um deles.

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Apresentação da revista COLÓQUIO/Letras Nº 209 “A Voz na Literatura” (Zoom)

A apresentação do último número da revista Colóquio/Letras, cuja secção temática é dedicada ao tema “A Voz na Literatura”, terá lugar no próximo dia 15 de fevereiro de 2022, (amanhã) entre as 18h e as 19.30, via Zoom.

A secção temática inclui vários artigos produzidos por membros do projeto “Vox Media: A Voz na Literatura” do Grupo de Investigação “Mediação Digital e Materialidades da Literatura”.

Tópico: Colóquio/Letras: A Voz na Literatura
Hora: 15 fev. 2022 06:00 da tarde Lisboa

Ligação Zoom
https://videoconf-colibri.zoom.us/j/86718640499?pwd=anZuSHNqeTBaV3N1a3pWdmhvZVIvUT09

O Teatro Também Se Lê: Rui Mendes lê Bernardo Santareno

Numa leitura de excerto da peça “O Judeu”, Rui Mendes torna bem claros dos diversos destinatários do monólogo escrito por Bernardo Santareno, assim como uma profissão de fé (devidamente alegorizada) pelo teatro.

https://www.rtp.pt/play/palco/p9556/o-teatro-tambem-se-le-ii-o-judeu-de-bernardo-santareno?fbclid=IwAR1mNiV5BhKRT6C-xTKPHO1M30tmcdvMccBg8FEvFth7G5mzZblkFSei-NU

Doda Lingua en Limalandia

Como se o verbo obrigasse, rever a faixa áudio fez disparar inadvertidamente uma sequência de imagens: literalmente, Irse de lengua a partir de Doda Lingua.

grafismo por Héctor Delgado

Ao escutar de novo a recolha de Poesía sonora peruana por Luis Alvarado, esse duplo gesto de afastamento e chegada da língua à (ponta da trampolínea) língua — irse de lengua — destapou outro disco da Buh Records: Doda Lingua.

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COLÓQUIO/Letras (Jan 2022): A Voz na Literatura

COLÓQUIO LETRAS
N.º 209 (Janeiro 2022)
A Voz na Literatura

Não há literatura sem um processo de inscrição material que faz de cada signo uma coisa no mundo fenomenal, para ser vista antes de ser lida, e para ser lida (em silêncio ou não). Ou então, para ser dita, o que é uma outra forma de inscrição material, precedendo e dispensando a escrita ou seguindo-se a ela.
Os artigos do núcleo principal deste número exploram algumas dimensões do fenómeno literário afetadas pela voz enquanto medium da literatura. Não se trata de buscar um privilégio da Origem para o estudo da dimensão vocal do fenómeno literário, mas sim de admitir a relevância de tal estudo para uma versão mais completa, simultaneamente moderna e arcaica, de literatura. As dimensões da voz são estudadas em obras de Homero, Gil Vicente, Camões, Manuel Bandeira, Augusto de Campos e José Emílio-Nelson, respetivamente por José Manuel Cuesta Abad, Nuno Meireles, Matheus de Brito, Osvaldo Manuel Silvestre, Eduardo Sterzi e Pedro Serra.

[sumário]

Na secção de documentos, Mariana Maurício revela um conjunto de cartas que a pianista Maria da Graça Amado da Cunha (1919-2001) — notável intérprete das obras de Fernando Lopes Graça — escreveu aos amigos. Um deles, Alberto de Lacerda, lamentou “que Maria da Graça não tenha escrito memórias”: “conheceu, por assim dizer, toda a gente, de todas as gerações, gente célebre e menos célebre, de Casais Monteiro a Isabel da Nóbrega, de Jorge Peixinho a Manuel Dias da Fonseca e Arminda Correia, de Louis Saguer a João Gaspar Simões e Emmanuel Nunes, compositor que muito admirava. A lista seria interminável”. Ora, essas memórias ou essa autobiografia, embora não publicada, está nas mais de mil páginas enviadas por Amado da Cunha ao poeta e aos correspondentes que manteve entre 1934 e 2000, e de que Mariana Maurício nos apresenta agora uma amostra (em cartas para Ilse Losa, José Rodrigues Miguéis e Alberto de Lacerda).

Para ilustrar o número, João Penalva criou a série O Telefone de Jean Heiberg.

Podcast Vox Lit – Episódio 3

Vox Lit – um podcast que põe a literatura a falar

Vox Lit é o podcast que dá a ouvir a voz das materialidades da literatura. Um desafio entre exploração e divulgação da nossa constelação matliteana.

Vox Lit é uma iniciativa Vox Media com participação ativa de outros estudantes e doutorados do Programa Doutoral FCT em Materialidades da Literatura.

Episódio 3:
carta falada (Elizama Almeida)
Técnica e Utopia (Ana Marques)
Hipoglote (Tiago Schwäbl)
Comprimido de Leitura (Mafalda Lalanda e Elena Soressi)
Vozes de Gil Vicente (Nuno Meireles)

“Rimas e Batidas”: hip hop no presente

Na rádio Antena 3 (Portugal), emite-se de 2ª a 6ª a rubrica “Rimas e Batidas”.

Da autoria de Rui Miguel Abreu, o programa tem abordado alternadamente Batidas sem rimas e Rimas com batidas, essa poesia cantada em forma de hip hop.

Desde 26 de Set 2016, fizeram-se mais de 1200 episódios até à data, com duração aproximada de 5 minutos por episódio.

O programa leva-nos ao sítio Rimas e Batidas, de que é director e editor o mesmo Rui Miguel Abreu. Rimas e Batidas.pt apresenta-se como

revista digital sobre música criativa e desafiante: a que se estende entre o hip hop e a electrónica, entre África e o jazz, entre a dança e a contemplação e mais além.