Do you want to make a noise? Yes? Make one.

.                                                                                        Cornelius Cardew. 1968. Scooltime Special – B

Instruções de Execução

Notas à margem do workshop Partituras verbais: Ver e Fazer, por Sérgio Abdalla, entre 17 e 19 de Julho de 2018, na Lisboa Incomum.

Partitura é geralmente definida nos dicionários como um suporte gráfico para (a)notações inscritas/ impressas, construindo uma composição que será depois interpretada e traduzida em som. 
A amplitude de abertura desta descrição é tal, que este mesmo post poderia ser considerado, em sentido lato, uma partitura; contudo — galgando aqui a historiografia da notação musical 1 —, este será o aspeto convencional de uma partitura de “música erudita contemporânea” 2:

Heinz Holliger. 1981. Estudo II para Oboé [excerto]

Esta é a linguagem que a maioria dos músicos está habituada a ler 3. Mas há sempre momentos onde — em maior ou menor medida — as fronteiras são desafiadas, criando problemas de leitura e interpretação, clivagens de correspondência entre significante e significado, entre o ‘comando’ gráfico e a imagem sonora a reproduzir. 

Por um lado, tentam estender a linguagem técnica, incluindo sons não estipulados na construção standard dos instrumentos, alargando espetros sonoros. Este processo passa também pela adição, substituição ou cruzamento de tecnologia que vem preencher, contrapor-se e questionar a instrumentação existente. Por outro, são extremados campos concetuais cuja formalização excede os perímetros rotinados, introduzindo ou determinando elementos de indeterminação que, para além de dificultarem a leitura e execução, colocam em jogo paradoxos que por vezes chegam a anular a capacidade da própria execução da peça.

Veja-se este exemplo do próprio Sérgio Abdalla, Autoridade #1 (2017), em que cada música tinha uma instrução própria, diferente e desconhecida dos colegas, como por exemplo: a) escolha uma nota; tente que os outros fiquem nela, (…) c) espere que todos afinem; fique com ela; daí, toque outra e insista até que a outra desapareça…, etc..

Eis o resultado de um ensaio — Sergio Abdalla [na guitarra] com ensemble À Deriva — e repare-se no dilema do pianista, impossibilitado de cumprir a sua instrução, provavelmente por falta de condições para a perfazer.

 

Partindo do princípio que todos os participantes do workshop na Lisboa Incomum eram músicos/ compositores, tudo o que ali foi apresentado, discutido e criado tomou a aceção de partitura.
Um dos primeiros problemas discutidos direta correlação e dependência entre a noção de partitura e o contexto em que determinada obra é interpretada, logo desde a entrada do público que, engajando-se numa determinada agenda de programação cultural e entrando numa determinada sala, lança o primeiro dado no jogo de expetativas. De resto, a circunscrição do espaço performático serve ainda, na maior parte dos eventos, não só de proteção eficaz aos artistas, como também lhes imbui uma certa distância autoridade que poucas plateias optam por contrariar. No final, aplaudimos e saímos da sala.

 

No entanto, a relação do público com as prestações artísticas da contemporaneidade não tem sido amena ao longo do século XX, e compositores houve que se preocuparam em tentar desmistificar o assunto. Em 1949, Aaron Copland (1900-1990, USA) escreve Um modernista defende a música moderna [A modernist defends modern music]:

A maioria das pessoas usam a música como um sofá; querem ser almofadados, relaxados e consolados do stress da vida rotineira. Mas a música séria nunca teve como objetivo ser usada como soporífero. A música contemporânea, em especial, foi criada para te acordar, não para te pôr a dormir. Foi feita para te provocar e excitar, inclusive para te extenuar. Mas não é para esse tipo de estímulos que vais ao teatro ou lês um livro? Por que tem a música de ser uma exceção?
(Aaron COPLAND: 1949)

Em 1983, a revista do Centre national d’art et de culture Georges PompidouCNAC magazine — publica Dits Ecrits de Michel Foucault e Pierre Boulez que confrontam o mesmo tipo de problema em La musique contemporaine et le public: 

As obras tenderam a tornar-se eventos únicos que sem dúvida têm os seus antecedentes, mas são irredutíveis a qualquer esquema condutor admitido por todos a priori, o que pode com certeza dificultar a compreensão imediata. É pedido ao ouvinte que se familiarize com o curso da obra — para isso, deve escutá-la várias vezes; quando o percurso se torna familiar, a compreensão da obra, a perceção daquilo que ela pretende exprimir pode encontrar um terreno propício ao seu usufruto. 
(Pierre BOULEZ: 1983)

 

Outra singular concomitância pode ser encontrada nos caminhos aparentemente contraditórios tomados na exploração musical, um da mais extrema rigidez e complexidade na escrita e no esforço exigido aquando da execução quase impossível, outro de liberdade (aparentemente) total na improvisação, sem referências e a formalização de restrições que, por mais abertas que sejam, apresentam ainda assim um campo influenciado. No entanto, o resultado sonoro que resulta do contraste conceptual entre hiper-determinação e in-deterterminação é na prática frequentemente semelhante. Sérgio Abdalla questiona-se e procura um caminho que permita mais fruição a público e a intérpretes. Questionado acerca do grau de arbitrariedade das partituras gráficas, e ainda sobre se os problemas abertos pelas partituras gráficas não prolongariam a crítica relativa à improvisação livre, Abdalla defende que a formalização escrita de uma instrução, ainda que ténue, circunscreve os músicos a um certo tipo de interpretação e execução que não ocorreria se essa primeira instrução não existisse.

 

 

Ao público coube imaginar o que significariam aqueles eventos fragmentados, pois Kaprow advertira que “as ações não terão nenhum sentido muito claro para o artista”. Da mesma maneira, o termo happening não tinha significado: pretendia-se que indicasse “algo espontâneo, algo que acontece por acaso”. Não obstante, toda a peça foi cuidadosamente ensaiada…
(RoseLee GOLDBERG: 2012: 162)

 

 

Ver aqui uma Reinvention of 18 Happenings in 6 Parts (extract) por Rosemary Butcher. A artista não intentou a reprodução exata da performance de 1959 de Allan Kaprow (11927-2006, USA), aproveitando antes as partituras [scores] que Kaprow deixara da peça. O facto de ele ter deixado essas partituras no arquivo da sua obra só pode ser um convite à reinvenção do seu Happening.

 

 

 

Curiosamente, grande parte dos exemplos apresentados no workshop localizavam-se na década de 1960. Por lá vimos partituras de — entre outros — La Monte Young, George Brecht, Alison Knowles, Cornelius Cardew, Yoko Ono… Eis aqui sugestões para a contraparte sonora/ performática, nomeadamente de reinterpretações mais recentes…

 

La Monte Young (1935, USA)

La Monte Young. 1960. Composition #10 (“to Bob Morris”): Draw a straight line and follow it. [Desenha uma linha reta e segue-a]

Young: Composition #10 (“to Bob Morris”) – vídeo publicado por “cwolencki” a 10 de fevereiro de 2014.

Apartando-se da tradição musical, algumas peças são constituídas por instruções para eventos que por sua vez levam à criação de sons não consuetudinários. Compositions: 1960, #10 enquadra-se nesta categoria. Aqui, é pedido ao performer que ‘desenhe uma linha reta e siga-a’ (Draw a straight line and follow it) (DUCKWORTH: 1999: 234). Esta ação envolve som, mas não o habitualmente ouvido em concerto. Este conceito associa-se às peças performáticas anti-musicais de Jon Cage, nas quais os músicos jogariam uma partida de xadrez ou ouviriam rádio. 
Ao performar atos não-musicais num contexto musical, é questionada a relação entre os conceitos de som e música. Ao público cabe interrogar-se sobre o que separa som e música, e se de facto existe alguma divisão.
(Jennifer Ketchmark: 2007)  

 

George Brecht (1926-2008, USA)

 

(…) a arte de George Brecht, em geral, aglomera a sorte, a indeterminação e a liberdade através do jogo. (…) Os jogos não mimetizam apenas a incerteza do mundo, antes emprestam metáforas que concetualizam o mundo como incerto à partida. A ideia de sorte, como Brecht o reconhece, consiste numa ideia mundana que depende do equipamento capaz de a exemplificar.
(Peter MCDONALD: 2017)

 

“Word Event” by George Brecht, por FLUXCONCERT a 21&22 de fevereiro de 2009, 118 North 11th St., 3rd Floor, Brooklyn, NY.

Formado em química, Brecht passou os primeiros anos da sua carreira na Pfizer e na Johnson & Johnson, e paralelamente começou a experimentar processos de aleatoriedade  [chance] no desenho e na pintura. Aulas em registo pós-laboral permitiram a Brecht o contacto com os métodos do Dadaísmo e Surrealismo, bem como a action painting de Jackson Pollock e os métodos composicionais de John Cage. Começou a correspondência com Cage em 1956, e no ano seguinte escreveu um ensaio sobre métodos aleatórios na arte e na ciência.  
Quando Cage abriu um curso em composição experimental  na New School for Social Research em 1959, Brecht não falhou a oportunidade. Todas as semanas Cage instigava a composições estranhas e minimais, e na semana seguinte executavam-se e discutiam-se os resultados. Aqui, Brecht conheceu e colaborou com os futuros membros do Fluxos, um movimento artístico dos anos 1960 que tentou fundir arte e quotidiano. 
(Peter MCDONALD: 2017) 

Alison Knowles (1933, USA)

Alison Knowles. 1963. #6 Shoes of your choice [Sapatos à tua escolha]

#6 Shoes of your choice [Sapatos à tua escolha]: Um elemento do público é convidado a vir ao palco falar a um microfone, se algum estiver disponível, e a descrever um par de sapatos, seja aquele que traz calçado ou outro. É incentivado a contar onde os adquiriu, o tamanho, a cor, porque gosta deles, etc. Estreado a 6 de Abril de 1963, no Old Gymnasium of Douglass College, New Brunswick, NJ. 

Event Scores [partituras de ocorrência] consistem em simples ações, ideias e objetos do quotidiano recontextualizados em performance. Event Scores são textos que podem ser encarados como sugestões de peças ou instruções para ações. A ideia de partitura sugere musicalidade. Tal como uma partitura, as Event Scores podem ser levadas a cabo por outros artistas que não o criador, e estão abertas a variações e interpretações. 
(Alison KNOWLES )

Alison Knowles: Fluxus Event Scores publicado a 28 março 2012 por The University of Chicago.

Concentra-te na tarefa que tens em mãos. Estás apenas a fazer uma salada. Essas são as melhores saladas.
(Alison Knowles)

Cornelius Cardew (1936-1981, UK)

Cornelius Cardew. 1969. The Great Learning: Paragraph 7.

Paragraph 7, destinado apenas a cantores, é menos turbulento que Paragraph 2. Cada cantor escolhe um tom inicial para cantar a primeira linha (If) cerca de oito vezes, cada uma com a duração de um sopro. Move-se então pelo espaço, escutando os outros cantores, até ouvir um som à sua escolha, com o qual cantará a segunda linha (the root, cinco vezes). Cada um progride na peça desta maneira, como uma nuvem de sons que gradualmente coalesce em múltiplos clusters. O público movimenta-se pelo espaço, à imagem dos cantores, transformando a peça num caleidoscópio locomotor e aural.
(Stephen MILES, NMNC)

 

Cornelius Cardew: The Great Learning, Paragraph 7 (workshop, live) publicado a 10 novembro 2014 por Helsinki Chamber Choir; interpretação pelo Helsingin kamarikuoro sob direção de Nils Schweckendiek a 3.3.2014, Klang Concert Series.

Através deste processo de fixação verbal de procedimentos, aquilo que o compositor fixa tipograficamente corresponde ao seu processo de escrita e difere da receção auditiva. O que o autor escreve e aquilo que é lido são duas coisas diferentes pois a instância de mediação tipográfico-performativa (o conjunto de intérpretes) realiza sempre uma leitura pessoal que não corresponde ao que o compositor tinha em mente.
(Jorge dos REIS: 2012: 43)

Cornelius Cardew: Treatise publicado a 16 julho 2013 por Dmitry Shubin: SYNTAX Ensemble interpreta Treatise na Experimental Sound Gallery (ESG-21), St.Petersburg, a 14 de Julho de 2013.

Não consigo deixar de pensar que, de certa maneira, a peça ficou completa na minha mente e na dos músicos. Tal como em La Monte Young, o ato de pensar a peça como que a ativa. Como se partitura existisse a nível concetual, e imaginar as formas e as linhas me envolvesse nalgum processo sinestésico, e  assim se completasse a obra.
(…) E a música? É como se o resultado sonoro não interessasse — o importante aqui é o facto de estar a ser produzido um som. Pergunto-me se as regras estabelecidas pelos próprios músicos não acabam por limitar possibilidades. Surge de novo a ideia de Treatise [Tratado] como obra concetual — imagino-a performada em sacos plásticos ou por palavras [spoken word piece].
(C. James FAGAN: 2013) 

 

Jean-Pierre Caron (1982, BR)

Jean-Pierre Caron: Ícone. Intérpretes: Claudio Cabral; Daniel Brita; Igor Souza; Jean­-Pierre Caron; Julia Teles; Magno Caliman; Manu Falleiros; Paulo Dantas; Rafael Sarpa; Sanannda Acácia; Sergio Abdalla.

Como compositor mantive ainda a decisão de chamá-la de Ícone, sabendo, no entanto, que liberdades foram tomadas em relação ao texto estrito da partitura. A diferença se deve ao fato de a partitura não ter sido tomada como palavra final no contexto destas performances, e sim, como ponto de partida para uma ação coletiva. 
Neste sentido, diferentemente de um conjunto de músicos da tradição de concerto preparados a respeitar as indicações de uma partitura, nos comportamos como um grupo de jazz, ao nos apropriarmos das regras para Ícone como traços para a realização de uma performance. E foi esta última que passou a regular o que seria feito da obra: a decisão de incluir a secção final, contradizendo o texto da obra, foi tomada no sentido de realizar aquela performance singular.
(CARON: 2013: 29)

Sérgio Abdalla (2018) “Saia do Local”


Bibliografia

BOULEZ, Pierre & Michel Foucault. 1983 (mai-jun). “La musique contemporaine et le public”. In C.N.A.C. Magazine, Dits Ecrits tome IV texte n°333, pp. 10-12. http://1libertaire.free.fr/MFoucault267.html 

CARON, Jean-Pierre Cardoso. 2013. “Regras e indeterminação: ideias para uma morfologia da obra musical”. In Claves, n.º9. pp.16-33. http://www.periodicos.ufpb.br/index.php/claves/article/view/24151

COPLAND, Aaron. 1949. A Modernist Defends Modern Music. In https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/99/03/14/specials/copland-modernist.html?mcubz=0 

DUCKWORTH, William. 1999. Talking music: conversations with John Cage, Philip Glass, Laurie Anderson, and five generations of American experimental composers. 1st Da Capo Press ed. New York: Da Capo Press. Apud http://20thcenturyclassical.com/young%20link.htm 

GOLDBERG, RoseLee. 2012. A arte da performance: do futurismo ao presente. Lisboa: Orfeu Negro.

KETCHMARK, Jennifer. 2007. “La Monte Young”. In http://20thcenturyclassical.com/young%20link.htm20th Century American Experimental Music — From John Cage Through Minimalism: An Internet Resource.

MCDONALD, Peter. 2017 (jul.31). “The Impossible Reversal: George Brecht’s Playfulness In Deck: A Fluxgame”. In http://analoggamestudies.org/2017/07/the-impossible-reversal-george-brechts-playfulness-in-deck-a-fluxgame/ 

MILES, Stephen. “Notes on Cornelius Cardew”. In https://www.newmusicnewcollege.org/cardew.html

REIS, José dos. 2012. Três movimentos da letra: o desenho da escrita em Portugal: Segunda Parte: Libertação e Experimentação Tipográfica. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal.

SAAD Filho, Sérgio Abdalla. 2017. Partituras verbais e sua relação problemática com a música. São Paulo: USP.  http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27158/tde-06022018-100656/pt-br.php 

Share with: