“Il faut pulvériser notre langage usé — c’est-à-dire faire scintiller le mot” (Pierre Garnier 1)
Basta um breve mastigar de palavras e sons, qual ritual de feitiçaria ou golpes de tacão no país de Oz, e eis que se nos apresenta o vasto reino da poesia sonora. O Grande Américo dá o mote; a partir daí, sem grandes explicações, cada um solta ou tange as cordas vocais à sua maneira. A inibição desaparece lesta e a voz começa a saltitar por caminhos que emprestam nova expressão às lamúrias quotidianas.
Como seria o nosso dia-a-dia se ao falar entoássemos com as bochechas o ranger dos dentes e o bater dos lábios, o assobio da língua e o apertar da garganta? O potencial vocal absorve qualquer recurso normalmente aplicado noutras funções (beber, mastigar, etc.): aqui tudo é valência sonora.
Algo de inesperado e maravilhoso acontece: incríveis vozes de capacidades extravagantes emergem subitamente — que gozo seria um mundo comunicante em poesia sonora…!
Os jogos vocais baseiam-se na interferência desregrada das convenções gramaticais. A escrita pode existir ou não de forma declarada, mas, no caso deste workshop, o propósito era desafiar a leitura vocal perante textos — à letra — desordenados e desalinhados, e reagir-expandir espontaneamente (a)os impulsos oculares, explorar e provocar falhas nos códigos de leitura. Admitida a presença da voz, surge nova problemática: duas pessoas com o mesmo papel produzem registos completamente diferentes.
Apesar de circularem em meios diferentes que aparentemente não se tocam, visual e vocal parecem espelhar-se, unidos umbilicalmente por uma mesma relação de direta correspondência, convencional e arbitrária, é certo, mas ainda assim existente: linhas contínuas de texto para melodias longas e monocórdicas, quebra de linha para cadência de leitura mais dinâmica, branco da página para o espaço enfático; prosódia, pontuação e convenção são convocadas a cada leitura. Desenvolvendo-se literalmente o texto — expandindo-o, aumentando-o, dinamizando-o, movimentando-o —, o que resultaria na vocalização? E, inversamente —abrindo a voz —, qual o reflexo na escrita? Ou, negativamente, observe-se a rarefação de palavras a par da rarefação vocal nalgumas peças de “poesia sonora” (?)….
Martyn Schmidt (2014) “Brlo Metrolekt”2
Percebemos a relatividade dos signos, a sua extensão até ao limite, atribuímos-lhe valor de letra, e a voz, ludibriada pelo estímulo habitual de letra-leitura, percorre os traços enclausurada na amplitude normal da fala. Lentamente ouvimos de facto o que estamos a dizer (o que estamos a dizer?), ou melhor, ouvimos que a nossa boca pronuncia coisas e produz sons; distanciamo-nos do sentido, embora ele por lá apareça, pontual, interrompendo a vocalização — e vice-versa, a voz interrompendo significados potenciais —, acrescentando-lhe outros decorrentes do nosso despertar para tudo o que antes era inconsciente, esquecido ou ignorado para bem da correção da linguagem e da comunicação.
“…Il ne s’agit plus de “communiquer”, mais de “créer”, d’opérer la transmutation du langage “populaire”, quotidien, en langage d’invention ouvert au merveilleux poétique.” (WEISBERGER: 1986: 6523)
As regras são fáceis: tudo menos ler ‘normalmente’, aplicar a voz de forma nunca antes praticada, confrontar a escrita através da voz, perceber a (não-)justaposição dos dois meios, permitir a descolagem um do outro.
Observa-se a ligação direta entre o cluster/ aglomeração escrita e a vocal: a profusão visual permite recursos aleatórios, quase estocásticos da voz. Ao longo dos diversos exercícios, os textos vão mudando no seu carácter e apresentação: a escrita de elementos que se destacam clara e assertivamente e/ou com menores recursos gráficos dificultam a improvisação vocal, exigem uma (pre)determinação, opções vocais concisas. Para além disso, elementos há que são exclusivamente visuais e funcionam em pleno nesse contexto. A adaptação vocal obriga — com alguma frustração — a escolhas e ao fundamento de nova convenção e coerência na correspondência, em dialéticas de distanciamento ou proximidade entre os elementos vocais finais e a visualização dos primeiros elementos gráficos….
Existem escritos ou guias visuais — partituras? — destinados à reprodução/ interpretação vocal, e outros não dedicados a isso de todo, textos, composições de signos ou colagens numa pintura, cuja função não pressupunha exploração vocal (como ler uma cor, um tamanho, uma serifa, um espaço?). Será que tudo é legível/ escrevível?
Fechamos os olhos e traçamos — de forma automática — uma linha contínua numa folha, deixando a caneta e a tinta deslizar-garatujar. Tentamos ler os rabiscos; partimos do princípio que servem de significantes e correspondem a som (alguma vez abandonámos a dupla caracterização de Saussure?). A voz liberta-se um pouco mais do trilho do traço e ensaia um percurso sonoro sem restrições, acentuando-se a clivagem entre desenho e voz. O corpo possui os dois mundos e serve de charneira à (inter)relação entre os dois polos que coexistem cada um na sua vastidão desconcertante. Cada ambiente — visual e vocal — quase se exclui um ao outro no universo de possibilidades privadas que acarretam. De repente, a matéria parece-nos tão outra, tão antipodal, que nos perguntamos como foi sequer possível associar som e escrita — a falta de correspondência é lancinante.
Se por um lado a voz é minúscula na sua utilização diária e em comparação com os meandros de intrínsecos e indescodificáveis esquissos, por outro, sons há que não encontram correspondência sígnica, sinalização ou convenção que os integre num sistema de escrita e leitura, de recriação, transposição ou reinterpretação; sons que detetam a falha e se intrometem (estalidos, rangidos, gemidos…) lúdica, pleonástica e onomatopaicamente no texto e para fora dele.
O jogo fremente da aparição fugaz de sentido desdobra infinitamente as fronteiras entre linguagens ou códigos diferentes; assim, ler é igualmente um jogo de possibilidades que arromba constantemente os parâmetros da linguagem.
Aconteceu na manhã do dia 13 de Janeiro 2018 no Salão Brazil em Coimbra.
Oficina com Américo Rodrigues: processos de interpretação fonética e de sonorização vocal de poemas visuais de Ana Hatherly, E. M. de Mello e Castro, Salette Tavares e Jorge dos Reis.
Projecto DAS PALAVRAS NASCEM SONS DOS SONS NASCEM IDEIAS do Serviço Educativo JACC (Catarina Pires)
Fotos: João Duarte