Desescrever, proposta de Márcia Lança, Rafael Frazão e Carolina Campos para uma das performances que perfazem Gerúndio, festival organizado por Miguel Oliva Teles1, apresentou, no dia 29 de outubro de 2024, em Lisboa, “formas materiais e concretas de desescrever palavras.”
Foi na Travessa do Calado/ Fórum Dança que, calados, mas soltando aqui e ali um ah de êxtase, assistimos, qual enxame de curiosos, à deflagração erosiva da matéria. Numa sala-estaleiro, palavras (Segurança, Oferta, Inspirador, Prémio, Luxo, Novo, Único, Exclusivo, Elegante, Desconto, Sucesso, Moderno, Resultado, Extra, Útil, Comprovado, Rápido, Confiável…) articuladas em diferentes elementos (ferro, giz, verniz, manteiga, berlindes, fósforos, espuma, ímanes…) aguardam a intervenção (pisadura, esmagamento, raspagem, derretimento, vaporização, aspiração, ignição, choque, vibração, escorrimento, dobragem, pintura, amalgamento, pulverização, descongelamento, deglutição…). Os performers/ guias/ técnicos/ cientistas (?) vão aplicando as forças e os reagentes, e o público avalia os estragos.
A ação, sem o sabermos, começava logo à porta da garagem do Fórum, onde “Segurança”, a giz, ia sendo pisada e esborratada a cada nova entrada do público, involuntariamente participante, que só retrospectivamente a enquadrará no happening. Outros exemplos: a “Oferta”, em letras de manteiga, vai a derreter no microondas; “Inspirador” é o mel que, cuidadosamente meluscrito numa bandeja subitamente verticalizada, veremos escorrer melifluamente; “Prémio” será vaporizado; o “Luxo” em pó devidamente aspirado; um alinhamento “Novo” de berlindes sofrerá o choque de berlinde externo, como se de bilhar se tratasse; “Único” incendiar-se-á; “Exclusivo” encarquilhar-se-á nas agruras de um ácido; a palavra “Elegante” será passada a ferro; “Desconto” arderá em sequência de fósforos acendidos; “Sucesso” diluir-se-á em espuma; “Moderno” será raspado da sola do sapato; “Útil” desinscrever-se-á acetonamente do verniz das unhas; “Resultado” desbaratar-se-á na confusão da atração e repulsa dos imanes que o compõem; “Extra”, sobre uma coluna de som, trepidará sobre inaudíveis graves; “Comprovado” limpar-se-á a limpa-vidros; “Rápido” e “Confiável” descongelarão. No final, seremos convidados a provar a sopa de letras.
O exercício é simples, embora quimicamente complexo, se explicado em detalhe, e registamos, novos alquimistas, a deslumbrante transformação das palavras na aresta do seu desaparecimento. Ignoramos o comportamento dos vocábulos diante de circunstâncias com as quais nunca foram confrontados. Público e performers, lado a lado neste happening, estes tão ávidos como aqueles, testam o material teimosamente presente, que se altera, estica, espalha, cai, mingua… Predeterminada a reação, a transfiguração não surpreende; o falhanço do substrato2 foi cuidadosamente planeado. Então porquê o interesse, a nossa atenção fixa? Por um lado, queremos (ardentemente) ver as palavras na fogueira, porque é bonito, porque nos interessa; por outro, no melhor espírito voyeur, comentar quanto e como elas ardem. No entanto, não isentos de compaixão, também torcemos pela palavra, até ao ponto de quebra (e não forçosamente da sua libertação…). A maneira como a palavra cede às circunstâncias químicas pode divergir do comportamento sintáctico ou lexical da palavra no seu contexto frásico. Mais tarde ou mais cedo, é o que irá acontecer a todas as palavras “velhas”, inexoravelmente remediadas.
Coursing in multiple directions, the visual and linguistic parts do not separate neatly; rather, the visual poem functions as an intermedium between image and text. The effect is even more pronounced when the written text is transformed into sound: invigorated by speech and spontaneous performance decisions, the Gathas operate between art media (image and text) as well as between art and life media (imagetext and improvisational utterance). (HIGGINS 2002, 93)
Anna Higgins toma como referência 2nd Gatha (1961) de Jackson Mac Low3, mas destaque-se “the effect is even more pronounced when the written text is transformed” e enumere-se à frente qualquer uma das matérias usadas em “Desescrever” para constatar que “the visual and linguistic parts do not separate neatly”. Por um milagre da metamorfose química acelerada, vemos uma matéria a atuar — na hora, mais célere do que um fungo de cozinha —, resultado da combinação entre tempo passado e aproximação química que força a modificação do composto (mas não necessariamente o significado da palavra); agindo sobre duas camadas, a residual e a concetual, o impacto que a palavra tem no nosso quotidiano correlacionar-se-á temporariamente com o nível de densidade, resistência e destruição a que é sujeita.
Neste hangar, a escrita congrega (letras elevadas a) símbolos, “desescrever” parece puxar — à letra — pelas letras, fisico-quimicamente manobradas. É o que se verifica, fluída, fluxuzmente, quase por extensão do happening Fluids de Allan Kaprow:
Em Kaprow (ou nas reencenações “históricas”) observamos o assentar dos blocos de gelo; no Fórum Dança a montagem acontece previamente (toda uma outra performance de bastidores). De certo modo, a ideia da palavra escrita permanece, ou melhor, a curiosidade pela sua corrosão e regressão reside na plena noção do significado inicial e avaliação retrospetiva, a cada momento do desgaste, do estado do significado em cada momento da matéria. Centrando-se o happening no desfazer, na curva descendente após a explosão, a ação cria por isso uma ilusão mais flagrante de efemeridade. (Como tal, aludem — ou ecoam — metaforicamente ao seu potencial uso vocal.)

formas materiais e concretas de desecresver [sic] palavras. o que fica de uma palavra que desaparece? Como encontrar desfaçatez no que se desfaz? Haverá poesia no fim, movimento na ruína? poderá a ausência dizer alguma coisa?]
Outra particularidade assoma aquando da averiguação se certa matéria e certa palavra/ conceito exigem certo reagente, ou seja, se se prestam a tipos específicos de combina-ações materiais (aspirador – pó – luxo, microondas – manteiga – oferta, etc.), ou se qualquer palavra é passível de se (re)construir noutras formas. Constata-se que matéria e palavra facilmente se dissociam, e instaura-se a suspeita de aleatoriedade, que simultaneamente contradiz e reforça a pulsão humana para particularizar o referencial de cada palavra, dado que cada transformação será narrativamente justificada por qualquer leitor. Desfiar a matéria em “desescrever” não equivale todavia a desmaterializá-la, uma vez que a matéria não parte para a esfera imaterial; quanto ao seu significado, esse paira aparente e independentemente das operações performáticas, num afastamento, seja superior ou fundamental, sempre anterior à exteriorização física, ao plasmar da palavra onde quer que seja. O esborratar/ ruir/ desmantelar da matéria promove, paradoxalmente, o foco na matéria, ou seja, a sua materialização, contrariando a invisibilização funcional, como anota Craig Dworkin nas suas citações:
In Ron Silliman’s 4 account, we are conditioned to ideologies of textual transparency that create the illusion of the “disappearence of the word” in the service of strategies for consuming texts solely for their summarizable “content”: “In its ultimate form, the consumer of a mass market novel such as Jaws stares at a “blank” page (the page also of the speed-reader)”. (DWORKIN 2003, 54)
Dworkin analisa, no caso, um poema de Charles Bernstein (Veil, 1976) que perpetra uma overdose textual — palimpsesto amplificado/ in extremis —, mas onde, argumenta Dworkin5, se parte da ilegibilidade ao encontro da inteligibilidade. Ao passo que Veil encobre o processo e nos apresenta um texto obstaculado, decorrente da sobre-impressão obsessiva, em “Desescrever” as palavras intactas são perceptíveis antes do toque, colocam-se à disposição, esperam pacificamente a operação química que incidirá sobre a casca das palavras e espoletará o estímulo destrutivo (que, na verdade, percepcionamos como transformativo).
Por acompanharmos o acto de “desescrita” desde o início, o acontecimento “desescrito” permite ainda a leitura (apesar de condicionada, dado que cada palavra se associa e se impregna, na sua construção física, de um compósito determinado); o resíduo final — parcial ou totalmente anulada a leitura, a par da erosão do seu composto — não impedirá a memória do significado, bem pelo contrário, evidenciá-lo-á: nós testemunhámos o crime (raptadas as letras, capturadas as palavras, amarradas a uma matéria própria), confrontámo-nos com a ação dolosa, a perpetração química que deixou as palavras sem sentidos.
To combat the “habituation” of “automatic” perception, and instead “impart the sensation of things as they are perceived, and not as they are [familiarly] known, Shklovskii6 argues that the defamiliarized art object works “to make forms difficult, to increase the difficulty and length of perception”. (DWORKIN 2003, 54)
Aqui são as palavras que passam por dificuldades: estraçalhadas pela matéria, literalmente estragadas, submetidas às “malas artes”, por indução, combustão, frequências sonoras, aspiração, expiração… Palavras arruinadas por um ato de “desescrita”.
O que in loco, no salão do Fórum Dança, sentimos como humilde e urgente território experimental, na pós-escrita o cenário soa a atrocidade ortográfica, ato sádico e infantil de esmifrar uma formiga, observação prazerosa de como se desfaz uma palavra, invenção das melhores armadilhas e dispositivos, experiências químicas de desestruturação semântica: como o verbo afeta as letras. Imaginemos a (futura?) Associação de Proteção às Palavras, os seus alertas críticos para as salas de tortura. Este sofrimento não é comum, as palavras não estão habituadas (nem nós) à fisicalidade, à sua existência granular — estas linhas nem foram impressas. Noutra perspetiva, isto passa por vingança. O que nos fizeram as palavras para merecerem tratamento tão agressivo? Investiguemos: o que têm Luxo, Prémio, Sucesso, Oferta e Segurança em comum? Esclarece Márcia Lança no final que se incluem na lista das palavras mais usadas em publicidade. Já todos fomos vítimas de palavras cativantes que nos levaram a ações vergonhosamente comerciais. E agora, perante palavras manietadas à nossa frente, a tentadora oportunidade: sob a égide do “happening”, a turba aproveita para atazanar performaticamente as palavras lascivas, que atraíam e atraiçoavam o público inocente, e lançá-las ao cadafalso, rugindo de satisfação. Como se não bastasse o quadro léxico-comercial a que eram alocadas, sofrem agora um duplo abuso, a desforra artística de um inventivo “desescrever”.
Quem aparecer no final já só irá perceber o borrão, a imagem do processo que as desfez. Só quem assistiu do início carrega em si, de um estaleiro para o outro, de uma operação para a outra, como pólen nas patas das abelhas, arrastada, a perceção conjunta, finalmente imaterial, das palavras que eram (pré) fixas; memória combinada, não estática de um elemento, uma letra, uma palavra, de um ato que não chegou sequer à fala.
Bibliografia
DWORKIN, Craig Douglas, 2003. Reading the illegible. Evanston, Ill: Northwestern University Press. Avant-garde & modernism studies. ISBN 978-0-8101-1926-0.
DWORKIN, Craig Douglas, 2013. No medium. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press. ISBN 978-0-262-01870-8.
HIGGINS, Hannah, 2002. Fluxus experience. Berkeley, Calif.: Univ. of California Press. ISBN 978-0-520-22867-2.
SHKLOVSKY, Victor, (1965) 1995. Art as Technique. In: LODGE, David (ed.), Modern criticism and theory: a reader. 10. impr. London: Longman. p. 16–30. ISBN 978-0-582-49460-2.
SILLIMAN, Ronald, (1987) 2003. The new sentence. 4. print. New York, NY: Roof Books. ISBN 978-0-937804-20-9.

