Ultrascores

 

Pássaros, assobios, conversas, paradas, discursos… — tudo isto constitui material para o francês de ascendência martinicana Christophe Chassol (1976, Paris) 1 que, num espetáculo de sincronização magicamente irrepreensível, articula vídeo, som e acompanhamento instrumental em tempo real.

Esta será simultaneamente uma das críticas: a falta de espaço para a improvisação, a impossibilidade de cedência ao calor dos loops audiovisuais e gáudio do público, rapidamente cortado com a entrada da sequência seguinte. Fora isto, tudo o resto é uma viagem pela recolha quase etnográfica — no caso, de encontros no Carnaval da ilha caribenha da Martinica (região insular francesa) — de pequenas cenas que são cortadas em loop, de acordo com o som correspondente, e que assim vão rodando ao sabor da harmonia preparada por Chassol, nos teclados, e por Mathieu Edward, na bateria. Não é o canto que se liberta do discurso e harmonia; aqui, a linguagem é visualizada e seguida na sua expressão sonora. Neste preenchimento e improvisação harmónica da contraparte visual e sonora do material recolhido, Chassol concretiza as por ele denominadas ultrascores: harmonizações do real. A prosódia da linguagem transposta em sons — a carcaça da entoação — serve de partitura: o piano, o sintetizador, e percussão seguem as modulações vocais do discurso. O gatilho para uma interpretação musical não é escrito, como uma partitura, mas antes sonoro — o som alimenta som. A ligação à partitura não é estranha a Christophe Chassol, que, para além de uma formação musical clássica, compôs muitas bandas sonoras para cinema 2. No concerto, a captação sonora acurada associa-se à montagem dos vídeos de imagens vivas, quase serigrafadas, em fantásticos jogos de justaposição rítmica.

(Chassol Live at AB Pipornithology) Chassol. 2015. Big Sun. “Pipornithology, Pt. I”

 

Este tipo de trabalho de som para som foi também explorado, no contexto da performance vocal na leitura de poesia, por Reuven Tsur (1932, RO):

O que eu aqui tento fazer (…) é analisar o que os nossos ouvidos comunicam à nossa mente; ou seja, de que forma a informação acústica e fonética assumem importância estética. Eu trato aqui a dimensão sonora da poesia como se fosse música. O meu foco incide mais no fluxo dos sons diretamente percebidos do que na função referencial da linguagem. O significado surge (…) apenas após um período alargado (em milissegundos) de demora na informação sónica.
.                               (Reuven Tsur: 2012: 89, meu sublinhado e tradução)

Essa “demora na informação sónica” provoca o desvio da “função referencial da linguagem”, a qual deixa de ser ‘mero’ veículo comunicativo prenhe de significado para se tornar sinal acústico com o mesmo tipo de informação (ambígua) que os outros sons — os parâmetros são agora outros: altura, ataque, dinâmica, registo, aos quais se junta — alguns milissegundos depois — a perceção de um significado fonético que, pelo seu atraso, passa como elemento tímbrico.

Em entrevista, Chassol aponta três influências:

Johan van der Keuken (1938–2001, NL)

O seu cinema desenvolve-se na relação dinâmica entre o movimento e a montagem e, por isso, não é surpreendente a referência que faz ao documentário de vanguarda dos anos 1920-30, ressalvando a introdução da palavra e a deriva para aquilo que qualifica de “picturalismo comentado”.
(…)
Da música, e porventura das demais vanguardas artísticas do seu século, Van der Keuken adopta processos experimentais – o que não o aproxima, antes pelo contrário, do chamado “cinema experimental”, que considera “gratuito” – e pensamos aqui em particular na improvisação: “Sou um cineasta que improvisa. Improvisar também existe para as imagens. Para mim, improvisar e não improvisar constitui uma oposição muito mais importante do que, por exemplo, entre documentário e ficção. Para mim essa segunda ordem de oposição não funciona. Mas improvisar, isso é uma categoria real.”
.                        (Tiago Afonso: 2014)

Johan van der Keuken. 1994. On Animal Locomotion. Música de: Willem Breuker.

 

Steve Reich (1936, New York City)

Nas últimas décadas, Reich tem vindo a desenvolver ideias acerca de como o discurso pode gerar melodias e ritmos, e, a partir de fragmentos musicalmente sugestivos de vozes gravadas, desenvolveu uma série de obras, tais como Different Trains, The Cave, e Three Tales. A técnica lembra as assimilações de conversas em checo por Leoš Janácek  [1854-1928] nas óperas Jenufa e  A Raposinha Matreira;

em Steve Reich, tal como em Janácek, a melodia falada cria uma extraordinária transparência, de tal forma que, seja qual for a voz ou ânimo ou psicologia em análise, ela pairará à nossa frente. Different Trains é a peça do Holocausto de Steve Reich que, na sua montagem incomparavelmente lúgubre das vozes dos sobreviventes, dos motivos do quarteto de cordas e dos sons dos comboios, nos diz tanto em trinta e cinco minutos como As escolhas de Sofia em quatro horas. 
.                                   (Alex Ross: 2003) 

Steve Reich. 1988. Different Trains. Boiler Room. Com a London Contemporary Orchestra.

Hermeto Pascoal (1936, Alagoas, Brasil)

A combinação entre voz e flauta remonta à infância de Hermeto, em Olho d’Água da Canoa, nos anos de 1936 a 1946. Lembro ao leitor que, aos 7 anos, o músico começou a escutar a fala como se esta fosse uma melodia cantada, ao mesmo tempo em que começara a brincar de construir flautas artesanais de talo de mamona. Com essas flautas o garoto albino tocava em duo com os pássaros, imitando os índios Xucuru-Kariri e Kariri-Xocó, que utilizavam flautas, trombetas e chocalhos em seus rituais e festejos. Há, assim, um conjunto no qual estão imbricadas a flauta, a voz, os animais, a natureza, os índios e a religiosidade, abrangendo não apenas a música como som, mas também a esfera social da produção musical. 
.                                 (Luiz Costa-Lima Neto: 2014) 

Hermeto Pascoal no Zoo. 

 


Na produção nacional, recordo a faixa Expressive Idea, do álbum Directions (2017) do acordeonista de jazz João Barradas (1992, PT), que inicia com o mesmo processo de harmonização de uma conversa entre Wayne Shorter e Joe Lovano:

João Barradas em entrevista a Mariana Oliveira para a Razão de Ser/ Antena 3 a 9 de setembro de 2017.

É destacada a importância da ideia musical em detrimento do meio — do instrumento musical, no caso da improvisação. O recurso ao discurso como melodia acompanhável ou harmonizável é sempre deslumbrante, salientando-se o potencial musical da prosódia; todavia, perderia muito do seu impacto se não tivesse o original da conversa em fundo. 

Não se trata de uma mera imitação musical-instrumental do discurso humano; a tecnologia de gravação permite um processo mais detalhado de análise musical, construíndo-se a partir daí toda uma plataforma harmónica; a fala tornou-se mais uma linha no set, ditando o tema para depois os outros instrumentos desbravarem a improvisação; no entanto, este recurso funciona no seu modo concreto de discurso gravado, de imagem sonora fixa, como sample, como tema e não como improvisação. Caso se tratasse de uma voz ao vivo, esta operaria virtuositicamente como um instrumento, e perderia todo o estranhamento ou surpresa da fala que de repente se torna objeto musical. 

De modo inverso, este recurso permite também convocar a possível aproximação dos instrumentos à linguagem humana pela sua modulação prosódica, criando a ilusão de potencial conversa ou geração de fala instrumental/ musical.  Esta característica de objeto-sem-alma-comunicante é comum a muitos autómatos — com incidência nos engenhos construídos a partir do séc.XVIII —

Entre 1770 e 1790, havia quatro pessoas na Europa [abade Mical em Paris, Christian Gottleib Kratzenstein em S. Petersburgo, Wolfgang von Kempelen em Viena e Erasmus Darwin em Birmingham] a construir máquinas falantes, aparentemente sem conhecimento uns dos outros. Todos estes autores se serviram do órgãos humanos da fala como modelo para os seus autómatos falantes.
.                          (Sterne: 2003: 73)

— e tem despertado os sentimentos mais contraditórios e intrigantes: por um lado o fascínio de que algo inanimado pudesse falar, uma voz tecnicamente conseguida que se confunde com a voz do além; por outro, a desilusão e alívio pela ausência de alma humana que acabou por remeter estes gadgets para as feiras populares…3 

No entanto, por mais apelativo que seja o vocalizo paralelo com a gravação, o arranjo sonoro do discurso falado dificilmente se afastará de uma determinada tessitura: para além de nuances vocais quase impercetíveis — para não falar do timbre próprio de cada um, quase inimitável —, o registo não-cantado da comunicação verbal tende a minimizar a amplitude da enunciação, para bem da transmissão de sentido, cabendo então ao canto a exploração de outras ressonâncias do tubo acústico. Uma terceira abordagem, intermédia, que crie conflito entre as primeiras será a da poesia sonora, que percorre esses limbos do esconde-esconde entre comunicação/ não-comunicação, fala/ canto, informação/ corpo vocal, por terrenos não muito seguros para a linguagem.

 


Festival de Músicas do Mundo de Sines, dia 26 de Julho de 2018, no pátio do Castelo.

Bibliografia

AFONSO, Tiago. 2014. “Retrospectiva Johan Van Der Keuken”. In Doclisboa’14. https://www.doclisboa.org/2014/edicao-actual/seccoes/johan-van-der-keuken-retrospectiva-integral/
NETO, Luiz Costa-Lima. 2014 (mar 10). “O cantar natural de Hermeto Pascoal: compartilhando vozes e escutas por meio das gravações em disco – Parte II”. In Claves n.º10http://www.periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/claves/article/view/28198/15172   
ROSS, Alex. 2003 (jan 6). “Opera as History”. In The New Yorkerhttp://www.stevereich.com/threetales_info.html  
STERNE, Jonathan. 2003. The audible past: cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press.
TRAMMELL, Matthew. 2015 (jun 12). “Meet Chassol, The French Composer Bringing Classical Training To Carnival”. In Fader. http://www.thefader.com/2015/06/12/cristophe-chassol-big-sun-interview 
TSUR, Reuven & Chen GAFNI. 2012. “Poetry Reading—Rhythmical Performance:Triple-encoding, and voice quality: Six case studies”. In Thinking Verse II. pp.88-111. ISSN: 2049-1166. http://www.thinkingverse.org/issue02/Reuven%20Tsur,%20Poetry%20Reading%20Rhythmical%20Performance.pdf 

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