O eclipse da matéria

ou a insubstancialidade do metalogramo 

 

 

 

 

Um dos primeiros dispositivos mecânicos a emergir do escuro 1, logo depois de um coleóptero luminescente — o seu estojo (koleos) acionando um relé-pirilampo, a cremalheira esforçando as asas (pteron) em deslumbrante metamorfose da mecânica em natureza esvoaçante —, foi uma frase de arame, um arame-frase, um metalogramo.

A instalação justapõe uma linha horizontal de arame torcido, distando um palmo do quadro branco; mais abaixo e afastada do quadro, uma roldana e uma tira de cabedal sobre a qual poisa uma vela que, acendida, ameaça luz sobre o arame volteado, lançando a sua sombra no vazio do plano. Subitamente, a sombra excede o material, e aguardamos expetantes o vaticínio daquela projeção que ora se clarifica, ora se ensombreia. Rodando a mani-vela, a vela avança em pulsação manuseada e, no sentido oposto, o emaranhado alambreado aproxima-se, endireitando-se por momentos num grafema, transformando os arabescos em traços alfabéticos, numa espantosa coincidência visual com signos reconhecíveis, identificáveis, legíveis até — a letra apruma-se, nascendo da sombra, e dá-se o milagre da leitura: “un mot ne convient  plus qu’ un autre…”, que aliás depressa se esfuma em enredados incompreensíveis.

O mecanismo opera como um eclipse, na sincronicidade e justaposição de três elementos: a luz, o objeto e o plano. Posteriormente, sob uma luz sem foco, o arame quedará inexpressivo, firme na sua definição e densidade material, mas vazio de significado — para quem presenciou a operação 2, o fio metálico será apenas depositário da memória (para outros, nem isso), ou a presença da ausência — título associado a Fred Eerdekens (1951, BL), que explorou em cobre as técnicas da lacuna 3 significante, do ângulo possível que potencia, a partir da multiplicidade, a estocástica do significado.

 

To create a dramaturgical device is to open devices, to create an event in which “things acquire their own delay and urgency, their remoteness and proximity, breadth and narrowness”

(HEIDEGGER: 1998. 43. Apud COSTA & SILVA. 2016. “Views on Absence/Presence:Theater and Technology”. [meu sublinhado])

 

O que transparece não é o negativo de um signo, mas a aproximação do significante à impalpabilidade do significado. No fundo, o método apenas sintetiza uma lógica simples, a da acumulação técnica de planos, tão intrigante como um projetor de imagem, ou, mais romanticamente, um daguerreótipo 4; em Je brasse de l’air o dispositivo é móvel, marcando a imagem volátil como um sopro, ao passo que nas obras de Eerdekens quase tudo é fixo, incidindo o foco na dispersão técnica das componentes, tornando transparente a Camera Oscura.

A surpresa advém da presença do fio de arame indelevelmente retorcido, estático e impenetrável como o são todos os objetos, mas que, no momento da exposição a um certo feixe luminoso, define um significado que transparece em palavras inequívocas; não se trata aqui da leitura arbitrária de um material ou de uma mancha gráfica, mas da clareza bruxuleante de uma sombra. Dentre todos, o elemento fixo — o fio de cobre, o mais material — é o mais inescrutável; apenas a sombra e, por incidência, a luz móvel, são evidentes na sua sincronia e significado.

Estamos habituados à inscrição, ao gesto positivo da marca, da tinta, do baixo-relevo — e mesmo com a tinta seguimos os traços em si, ignorando muitas vezes o espaço em redor, geometria espaciais que na tipografia são da maior relevância; ainda assim, essa conjugação ocorre no mesmo plano. Aqui, o que desconcerta é a aparente ausência de correlação entre o reflexo e aquilo que o proporciona, em contradição com a justeza da coincidência incisiva de aquele significado surgir sem que a sua expressão física o indiciasse. O potencial negativo da restrição da matéria providencia afinal conteúdos — o preenchimento está, precisamente, no vazio.

Is the meaning of a word in the word itself or in its surroundings? Eerdekens’s works suggest that both answers are viable, and, even more contradictorily, both are viable precisely because they exist simultaneously. … Language is inside and outside of Eerdekens’s work all at once, without simple resolution. We shouldn’t be too surprised then that his work is also inside and outside of language – again, all at once. 

(Terry R. Myers, “My sight is an invitation to look somewhere else: The work of Fred Eerdekens”)

Existe ou não inscrição? A criação escultórica dobra a matéria, e a resposta cai sob lâmina do simulacro, minando a lógica binária saussuriana com a mágica tridimensionalidade da instalação.

Outro passo seria encontrar a correspondente sonora 5 deste jogo — obliterar/ remediar/ sintetizar/ samplar a voz humana: abrir caminho ao cluster de frequências que tornassem percetíveis os fonemas. 

Eis uma reflexão, bem a propósito:

Matt Carlson (2016) The View From Nowhere. “An Enhanced Interrogation of Authenticity”.

 

 

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