Esboços para uma Arqueologia da Poesia Sonora Portuguesa

Joaquim António da Silva [JAS], ou J. A. da Silva , é, muito provavelmente, um nome desconhecido mesmo para aqueles que se dedicam ao estudo da Poesia Experimental em Portugal. É, apesar disso, um nome incontornável na história da Poesia Sonora Portuguesa e ‘Audio-Poem’, o único trabalho que se lhe conhece nesta área, é, apesar de curto, de uma expressividade e intensidade que não podem ser ignoradas.

A única referência que se pode encontrar ao seu nome vem, em primeira mão, da obra Poésie Sonore Internationale  em que é mencionado por Henri Chopin [HC], a par com E. M. de Melo e Castro com quem Henri Chopin manteve extensa correspondência e colaboração, como sendo um dos dois autores em Portugal a trabalhar no domínio da Poesia Sonora.
Sabemos, a partir da correspondência existente no arquivo do poeta sonoro francês1, que o contacto entre ambos se fez por iniciativa de JAS que em missiva enviada  a HC a 5 de junho de1971 se apresenta como crítico de poesia experimental no ‘Diário Popular’2 e declara o seu interesse quer pela Revue OU, quer por um possível aprofundamento do exercício  de uma prática poética próxima da poesia sonora. Esta intenção é reforçada na carta seguinte, de 15  junho do mesmo ano, em que JAS afirma:

Je cherche, pour le moment, de la documentation actuelle (textes théoriques et réalisations) concernant le poème sonore […]

A mesma carta dá também testemunho do envio de ‘Nocturno’, um poema visual, a HC, que volta a ser referido na carta seguinte, de 15 de junho. JAS refere que pensa associar a esse poema, mais tarde, um trabalho sonoro. Essa intenção é manifestada em duas outras cartas datadas de 2  e 4 de setembro de 1971, e embora não exista qualquer referência nas cartas de JAS a HC do envio efectivo do referido registo sonoro, a carta de 4 de maio de 1972 contém o agradecimento do autor português a HC pela publicação de ‘Nocturno’. As datas de publicação da Revue OU levam-nos a pensar que este ‘Nocuturno’ só poderá ser  o ‘audiopoem’ publicado na REVUE OU n.º 40-413 (ver vídeo).

Sur môn texte, dont vous connaissez l’exploitation visuelle, je pense assembler, plus tard, les expériences de sonorisation au magnétophone.

Vinil de Revue OU 40-41

As influências presentes na composição de ‘Audio-Poem’ são claras. A peça, com a duração de 1 minuto e 47 segundos, não envergonharia qualquer um dos autores ligados à Internacional Letrista. O sopro, a respiração, o ar que vem dos pulmões, é aqui matéria-prima para esta composição naquilo que HC descreveu como “Son très court poème: Nocturno, d’une durée de deux minutes, n’est pas indifférent. C’est presque un crirythme, dans le bâillement du sommeil, C’est un poème de l’ennui 

Sabemos, também, que JAS terá recebido o número 334 da publicação dirigida por HC. Disso nos dá conta a carta de 4 de setembro de 1971, a mesma carta em que JAS refere ter recebido, também, uma obra de R. Hausmann (RH). Não podendo com efeito determinar a que obra de RH se refere o autor português podemos supor que se trate da peça ‘Poème Phonétique’, incluída no álbum ‘Phonetische Poesie’5, de 1971, a que JAS tinha já aludido em carta anterior.

A correspondência termina abruptamente a 15 de julho de 1972. Dada a época em questão, em plena Guerra Colonial, e dadas algumas as referências que JAS vai fazendo ao longo do intercâmbio epistolar podemos conjecturar que JAS terá tido o mesmo destino de muitos dos seus colegas de geração: a guerra ou a deserção, motivo mais do que suficiente, em qualquer dos casos, para justificar a interrupção da plumitiva.

Em carta datada de 4 de maio de 1972, JAS refere o seguinte:

J’ai eu en outre beaucoup d’ennuis dernièrement, ce qui m’a empechê de vous rendre visite à Essex. J’espère , toutefois, être en Angleterre et à Essex encore cette année, malgré mon service militaire. 

Em carta datada de 15 de julho do mesmo ano, JAS volta a referir o assunto:

il m’est impossible de sortir de Portugal cette année. Je dois aussi quitter Lisboa. Je reviens chez moi seulement à l'”week-end” […] L’année suivant je ne sais pas encore si je serai en Afrique ou si je peux finalment être en Angleterre. 

A última referência encontrada, sobre JAS, é uma edição de autor intitulada ‘Semiótica e Nova Poética’, que reúne textos publicados, entre 1969 e 1971, no suplemento literário do Diário Popular bem como texto inédito, datado de 1972, sobre Murilo Mendes. Embora os textos sejam centrados, em grande medida, sobre a Poesia Concreta Brasileira, o autor não abandona as preocupações de natureza sonora. O texto sobre Caetano Veloso, com que se encerra este esboço arqueológico, é, a esse propósito, exemplificativo. Diz JAS:

“De facto, recorrendo a decomposições silábicas e recuperações sonoras de todo o material linguístico, desmontando ou moldando progressivamente a linguagem em composições não-lineares, Caetano Veloso atinge os limites da actual Poesia de Vanguarda. Em “Tropicália”, composição de colagens críticas ao ambiente brasileiro e que daria o nome ao movimento, a série de rimas e a repetição (em eco) das sílabas finais realçam e relançam toda a gama de (con)tradições que envolvem o Brasil actual: “viva a bossa-sa-sa/viva a palho-ça-ça-ça-ça-ça (…) viva a banda-da-da carmen miranda-da-da-da-da”. O arranjo, “tropicalista”, a cargo do compositor Júlio Medaglia, chegou a incorporar dados do acaso, dignos de um John Cage (designadamente uma citação inicial feita de improviso sobre Pero Vaz de Caminha […]”.

 

Share with: