Encontros FONOVOZ

Os Encontros FONOVOZ curadoria de Manuel Portela e Rui Torresapresentam uma amostra da poesia sonora. (…) Trata-se de situar a nossa atenção nessa oscilação entre perceção fonográfica e perceção vocálica, que nos permite escutar os sons da língua e os sons da voz ao mesmo tempo. A poesia sonora oferece-nos uma arte da linguagem enquanto processo emergente da máquina fonadora do corpo humano. 

O encontro FONOVOZ de 2025 foi concebido a partir da articulação do par de palavras “dissonância” e “dissidência”. A modulação sonora que associa os dois conceitos parte destas duas perguntas: como evocar o momento político presente através da poesia sonora? O que pode a voz contra a linguagem violenta do poder? 

10 de outubro de 2025: Fernando Aguiar & Alessandra Eramo. O’culto da Ajuda, Lisboa. Misomusic.

Fernando Aguiar apresenta-nos, reinventado — sem livro, de folhas soltas, amarfanhadas algumas, com vídeo, com som, com voz —, o novo manual escolar, pleno de velhas práticas de aprendizagem do bê-á-bá.

A escola volta, literalmente, ou melhor, videograficamente, para trás: é este o ensinamento captado numa antiga escola primária em que um Fernando antigo (pré-gravado) caminha para uma ardósia e recolhe letras em gestos de quem as lançou antes, voando do quadro para a mão, resgatando-as da superfície de escrita, manuseando-as como quem apanha — no ar (pela gravidade) e no ar (como na rádio) — a fruta de letras que cai da árvore. O mestre Aguiar, que ao longo da performance é também o aluno prazenteiro, exemplifica e completa o exercício, tal como os miúdos fariam no recreio: ouvir a última faixa da banda preferida e tentar acompanhar, decorar a letra, fixar pedaços de canção, frases, rimas, errar, aproximar, aliterar, seguir a batida e capturar com a voz o que se ouve, (sempre) em retardo, em eco, mergulhar na cadência de hip-hop para emergir em hiccups (soluços). O prazer desfaz-se na boca como um bombom, perpetua na repetição de palavras que são quase movimentos de elasticidade mascada; juntar palavras porque sim, elaborar sequências em forma de ladainha e, mais do que isso, perceber o mecanismo, como se manobra e se desdobra a lengalenga, agitar freneticamente um cubo de Rubik ou recuar como o lagarto que para sair do poço sobe dois metros para descer um. 

Entrar numa sala de aulas e manejar os objetos à disposição com um viés de pertinácia infantil (se Mr Bean falasse…), apontar e tocar intrigado as palavras, como numa visita ao jardim zoológico (proibido mexer nos animais!). Ler-reler velhos poemas (de quarenta anos), balbuciar e avançar; o texto falado abre-se e também não escapa à diversão escatológica (três mijadelas de cão numa esquina, duas numa jante e uma num candeeiro). É simplesmente divertido. Amarfanhar poemas como quem amarrota folhas, esmurrar a mesa pelo gozo de ver pequenas letras a cair em cascata, admitir irra!-cionalidades que batem a pés juntos no irra!, expandir rimas por vizinhança fonética, adentrar narrativas pela goela, mais e mais fundo, até ao cerne incómodo de um “pelo na garganta”. 

Perto do fim revela-se a estrutura do poema: dobradinha, juntinha, apertadinha, expande-se numa armação de mandala, rota como um queijo suíço, e nesses vazios se lançam as descrições taxonómicas universais — espalhar papéis (tão úteis) como pirilampos —, que, não tão estratosféricas assim, cedem à gravidade terrena e caem murchas ao chão. 

Voltamos então ao alfabeto, ao bê-á-bá, que foi para isso que nos inscrevemos: apanhamos com as letras em cima (fisicamente atiradas ao público), a ver se a matéria entra nestas nossas cabeças. Todavia, no final, em gesto generoso, é o próprio Mestre que dá a mão à palmatória: é a nossa vez de recolher as letras caídas — as que restam, as que faltam, as que se encontram — e lançá-las à cabeça de quem lê, a ensaiar o bingo. Aqui (na poesia sonora) (a risibilidade) sai sempre!

Retrospetivamente, este manual impõe-se manifesto sem querer, (mal) disfarçado nas suas ferramentas (vídeos, karaoke, jogos, play along), na ternura pedagógica — são as aulas que nós adultos-feitos-criança queremos ter. 

Encomendada a partir da articulação do par de palavras “dissonância” e “dissidência”, a modulação sonora que associa os dois conceitos parte destas duas perguntas: como evocar o momento político presente através da poesia sonora? O que pode a voz contra a linguagem violenta do poder?. E Alessandra Eramo aferroa-nos desde logo com os agudos de uma gravação guinchante que nos cola ao tecto e nos empurra para o precipício — a margem angustiante de um som à beira da distorção, prestes a “picar”.

As palavras enunciam-se calmas e pausadas — “gentle”, “panico”, “stacatto”, “tsunami”, “disperso” —, mas não aplacam as frequências. Os lábios são a rémora que aplica cuidadosamente a ventosa e voga à boleia da baleia-som, amálgama gigante de espetros e ruídos, numa espécie de comensalismo texto-vocal, em que a voz-rémora suga parciais sonoros (sílabas, conjuntos de letras) e os revocaliza; entretanto, o ruído-baleia cresce. A baleia é o vaso, o intonarumori de Russolo que sorve toneladas de som-água e as expele, absorvendo apenas os mínimos significados-plâncton, errantes na sua etimologia (plagktón).

E se os intonarumori eram instrumentos produtores de ruído de concavidades sonoras — campânulas industriais — que refletiam o despertar de uma cidade (Risveglio di una Città), as bases de sons recolhidos por Eramo, em gesto etnomusicológico cuidado já desde os primeiros LPs, devolve-nos agora outros despertares, outras resistências: “bella ciao”.

O corpo da cantora, rémora-revocalizada, ora se liberta, ora se amarfanha, oscilando consoante a dor do ruído e a libertação da banda sonora incessante, entre o registo defunto amplificado e o corpo de voz presente. A voz elabora estridente sobre dejetos frásicos da baleia-ruído, é uma voz-comentário sobre registos de outras vozes; por mais que se duplique e triplique — como as vozes triplas/ three voices de Morton Feldman, ou as suas triadic memories, que, não sendo vocais, emanam do piano —, tudo isto é afinal “piano music”, declama Eramo. Resta saber se a dissidência não se dilui na dissonância, que em si apenas existe na coexistência de dois sons; como se, na congregação performática de cabos, microfones, tape e fala, se arriscasse a confluência. Curiosamente, no momento em que tudo mingua e se isola em gorjeio de pássaro — a voz canora de Eramo deixa à ave o que à ave pertence — e a performer volta à página, ao poema lido, às palavras próximas, multilingues (cf. inevitabilidade poliglota de Cia Rinne, na primeira edição de Fonovoz, ou os actos de fal(h)a de Américo Rodrigues), simultaneamente pontos de chegada e de partida, quando a voz é leitura de letras, sílabas, versos, e o poema nos transporta para um lugar de alguém-aquém, estranho e inatingível, eis o lugar da dissidência: a palavra corta, e exige, decepada, aos ouvintes, a cirurgia plástica do significado. Neste desencontro assenta um curioso fenómeno de proximidade e afastamento — se o poema nos foge, toca-nos mais um gemido, um rugido? —, nele reage (reagimos) a articulação entre a laringe gutural e uma combinatória de sons resultantes (dos órgãos e cavidades atravessados pelo sopro) que codificamos como texto. Vibra assim, espinhoso e ininterrupto na sua incontornável presença, tanto no performer como no ouvinte, o “pelo na garganta”.

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