Germana Tânger, actriz, professora de dicção e “dizedora” de poesia (Lisboa, 1920-2018), tinha no seu círculo de amigos muitos poetas: “Disse muitos poetas e tive grandes amigos poetas. Olhe, o José Régio, o Jorge de Sena. Todos eles. […] graças a Deus sempre tive o carinho dos poetas” (entrevista dada a Maria Ramos da Silva, Jornal i, 12 de Abril de 2013)[1]. Germana Tânger reconhece que foi “através da poesia” que os conheceu, como, por exemplo, a José de Almada Negreiros:
O Almada foi um grande amigo. Está ali [num quadro que Almada lhe ofereceu] escrito por ele: “Chegar a cada instante pela primeira vez”. Eu gostava muito dessa frase e ofereceu-ma escrita. Foi muito engraçado. O meu marido […] um dia no Chiado disse-me: “Sabes onde vamos hoje à noite? A casa do Almada”. Para mim o Almada era assim um símbolo. Eu estava nervosíssima. Depois ele disse-me: “Eu sei que você diz versos”. Eu estava a trabalhar “O Corvo” do Edgar Poe, traduzido por Pessoa, e digo-o. Ficámos muito amigos. Tudo o que fazia chamava-me para colaborar.
Nesta toada ligeira da anedota, Germana Tânger recorda também José Régio:
Disse a “Toada de Portalegre” em Portalegre. Fiquei muito amiga do José Régio. Ele até esteve mal e um dia quando estava farto do hospital disse-me para arranjarmos um almoço. Convidou um casal amigo e fomos os quatro almoçar a Alfama. Ele queria uma feijoada, para se libertar da comida do hospital.
Outro poeta de quem Germana Tânger recorda a amizade é Mário Cesariny: “O Cesariny escreveu-me uma dedicatória num livro que eu achei piada: “À poeta dos poetas.” E explica depois o porquê, na sua opinião, de tal epíteto:
[Eu] tinha uma voz muito bonita, sobretudo expressiva. Eu não dizia os poetas a fazer brilhar os poetas, mas sim a senti-los. Isso é que acho que foi o meu segredo. Daí a poeta dos poetas.
Acerca da sua voz “bonita” e “expressiva”, Germana Tãnger, que sempre fumou “e se chegar aos 100 anos hei-de fumar”, esclarece que nunca teve grandes cuidados com ela: “A minha voz era natural. Não fazia nada de especial. A voz é que era especial. Tudo corria bem.” Contudo, aos 93 anos “a minha voz já não é a mesma. Está enrouquecida.” Germana Tânger continua a dizer poesia “mas só entre amigos.” Porém ainda sabe de cor os poemas que gosta de dizer: “É uma coisa de há muitos anos. Não tem nada de especial. Eu só faço o que me apaixona. De modo que a coisa está bem fixa.” Foram poemas que disse muitas vezes, ao longo de uma “vida muito cheia” em que percorreu o mundo a dizer poesia:
Fui a Portugal inteiro e ao estrangeiro. Deixei amigos por toda a parte. Mas sabe, eu vivi demais e muitos já morreram. Por exemplo, o João de Freitas Branco, que me levou a Macau. Lá ia. Mas lá tive uma decepção enorme, quase ninguém falava português.
O repertório dos poemas ditos por Germana Tânger — “Só não consigo dizer poemas quando são maus poemas. Má poesia não leio.” — mostra todavia uma opção por uma geração de poetas: “Gosto muito de poesia moderna”. E esclarece quais os poetas que mais a marcaram:
Apaixonei-me por Pessoa […]. Mas sabe que hoje estou mais apaixonada pelo Sá Carneiro que pelo Pessoa. É um poeta espantoso. Portugal não tem grandes prosadores ou desenhadores, tem uns poucos, mas a poesia é um grande património. […] E quero ver se ainda consigo que a câmara municipal faça uma grande homenagem ao Sá Carneiro. É muito desconhecido. Julgam sempre que é o político [risos]. Matou-se muito cedo.
De facto, foram os poetas de Orfeu que Germana Tânger gravou no Livro/CD editado pela Assírio & Alvim em 2004: Poemas de Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa ditos por Germana Tânger. A utilização do verbo “dizer” no título do CD para exprimir o que sucede na performance oral poética, que se generalizou entretanto em Portugal, tem talvez em Germana Tânger, que recusa o rótulo de declamadora — “Pois, eu não declamo. Sou contra a declamação. Eu digo. A gente deve sentir o que diz, sentir o poeta” — uma das principais defensoras, se recordarmos que foi professora da disciplina de dicção do Conservatório durante 25 anos e mestra da arte de dizer de toda uma geração de actores.
Germana Tânger lembra-nos também que se somos um país de poetas, somos também por vezes um país (o reflexo de um mundo) avesso a ouvir poesia. Conta o que lhe sucedeu uma vez:
na televisão, quando disse parte da “Ode Marítima”. Uma pessoa qualquer é que me ligou a perguntar porque é que chateava o público com aquilo. Não devia perceber nada de nada. Fui a primeira pessoa a dizer a “Ode Marítima”.
Germana Tânger não foi a primeira pessoa a dizer a “Ode Marítima” — Manuela Porto tinha-o feito já em 1938. Um lapso no momento da entrevista, desculpável a uma venerável dizedora.
Bem curiosa, por fim, é a afirmação de Germana Tânger, um pouco anarquista no seu desprezo pela actividade governativa: “Os poetas nunca são de um governo, estão sempre acima dele. E eu também.” A capacidade de intervenção da poesia na sociedade, a sua capacidade transformadora reside na total liberdade de quem a escreve, de quem a diz.
José Geraldo
Excerto (actualizado) da tese de doutoramento em Materialidades da Literatura:
Registos Sonoros de Interpretação Poética – análise da performance vocal em Portugal
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2015
[1] As citações de Germana Tânger são retiradas desta entrevista.